Trincheiras indígenas: os dois mundos de Clara Idioriê

Filha de mãe das etnias javaé e karajá, nasceu na cidade mas logo voltou à terra do pai, do povo xavante, no MT. Hoje estuda jornalismo em Goiânia, e sonha transitar entre a cidade e a aldeia, ensinando e aprendendo a cultura dos dois lados

Relato de Clara Rewaiõ Idioriê Xavante a Angela Pappiani, na coluna Trincheiras Indígenas nas Cidades, em Outras Palavras

Clara Rewaiõ Idioriê Xavante está com 24 anos, nasceu na cidade de Nova Xavantina, a 200 km da aldeia Wederã, Terra Indígena Pimentel Barbosa, onde vive sua família paterna. Isso por um cuidado especial de sua mãe, Severiá, que aos 35 anos temia algum problema no parto. Clara diz que viveu sempre entre os dois mundos, o dos A’uwê Uptabi, que significa Povo Verdadeiro, autodenominação do povo Xavante, e o mundo dos warazu, os brancos, os estrangeiros.

Na história de Clara, esse encontro entre mundos começou com sua mãe. Severiá nasceu de mãe Javaé e pai Karajá, povos que habitam as margens do rio Araguaia. Foi adotada aos 7 anos e levada para Goiânia onde viveu até se formar na faculdade de Letras e conhecer o jovem Cipassé Xavante, por quem se apaixonou. Severiá então fez o caminho inverso, de volta para a aldeia, passou pela cerimônia tradicional de casamento, com reclusão e pinturas corporais, reaprendeu a viver em interação com a natureza, com as tradições, com uma nova língua, novos costumes e desafios. E desse encontro entre etnias diferentes, entre mundos indígenas e urbano, nasceu Clara. A menina cresceu na aldeia, totalmente envolvida pela tradição Xavante, fala fluentemente a língua paterna e português, passou pelos rituais de formação de seu povo e tem como meta concluir logo o curso de jornalismo para seguir trabalhando no projeto de comunicação da aldeia, dentro da estratégia dos A’uwê Uptabi para manter sua tradição e território, num tempo de tantas ameaças e desafios.

O povo Xavante cedeu ao contato com as frentes de ocupação do centro oeste no final da década de 1940, depois de muitos conflitos, epidemias e mortes. Vivem no Mato Grosso, em nove Terras Indígenas, com uma população total de cerca de 20 mil pessoas e realidades muito diferentes entre as aldeias. Na Terra Indígena Pimentel Barbosa está viva a tradição de formação do guerreiro. Desde o contato, o povo vem desenvolvendo estratégias de convivência com os warazu para preservar seu território e modo de vida, buscando enfrentar os problemas ambientais, políticos e sociais causados pelo agronegócio que cerca as terras indígenas e praticamente acabou com o bioma do Cerrado.

Clara Idioriê é bisneta do grande chefe Ahopoen, conhecido como Apoena, que liderou a aproximação e pacificação dos warazu, considerados muito violentos e capazes de levar à total extinção o povo A’uwê Uptabi. Desde então, muitas ações de reconhecimento, aprendizado, aproximação e controle na relação com “os brancos” marcaram o povo de Pimentel Barbosa, como a iniciativa de preparar um grupo de crianças para viverem junto a famílias na cidade de Ribeirão Preto, retratada no documentário “Estratégia Xavante” e no livro “Entre dois mundos”; o Projeto Jaburu, de gestão e manejo do território, ganhador do prêmio Gestão Pública e Cidadania, da Fundação Getúlio Vargas; a realização de documentários, CD de música, livros, exposições e apresentações de canto e dança nas cidades; além de parcerias com músicos de renome como Milton Nascimento e a banda Sepultura.

Clara Idioriê é filha de Cipassé Xavante, um dos meninos que na década de 1970 aprendeu a língua e o pensamento dos warazu para regressar e defender o território de seu povo. Ela representa agora uma nova geração que segue as orientações dos ancestrais e a missão de proteger o conhecimento tradicional, mantendo o diálogo com as novas tecnologias e desafios.

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“Me chamo Clara Rewaiõ Idioriê Xavante, sou mestiça dos povos Xavante, Karajá e Javaé. Me apresento como Clara Idioriê, o sobrenome que peguei de minha mãe. Atualmente estou morando em Goiânia porque estou cursando a faculdade de jornalismo. Faz um tempo que estou aqui e me adaptei bem, pois eu sempre vivi nos dois mundos. Minha mãe foi criada em Goiânia por sua família adotiva, por isso tive sempre esse entendimento, tanto do mundo indígena, quanto do mundo branco. Apesar de ter em mim essas três etnias, eu sou muito mais ligada ao povo Xavante.

Eu não nasci na aldeia, mas na cidade de Nova Xavantina, porque a mamãe se sentia mais à vontade em ter o parto de sua primeira e única filha no hospital. Também porque tinha uma questão de idade, ela me teve com 35 anos, com esse medo da idade atrapalhar na gestação e no parto.

Minha mãe é Javaé e Karajá, viveu na última família Karajá de Crixás, porque os Karajá vivem ao longo do rio Araguaia e a única família remanescente que tinha lá era a dela. Quando os pais faleceram, ela não tinha para onde voltar, os outros parentes estão em outros lugares do Araguaia, não onde ela nasceu e passou a primeira infância, até os 7 anos. Então ela viveu e estudou em Goiânia e depois adotou o povo Xavante, assim como a família do papai a adotou. No início, ela fala que foi bem difícil porque tem as questões tradicionais do povo Xavante. Meu pai, naquela época, tinha uma noiva prometida, o que é da tradição do povo, e desfazer o casamento tradicional era uma coisa muito complicada, levou anos até a minha avó realmente falar: você é minha nora, de fato. Mas com tantos anos de convivência, ela conhece muito mais a cultura do povo Xavante. Foi por causa dela também que eu me inseri muito no povo Xavante.

“Minha mãe foi criada em Goiânia por sua família adotiva, por isso tive sempre esse entendimento, tanto do mundo indígena, quanto do mundo branco”

Morei na cidade de Nova Xavantina até uns 4 anos, mas como era perto, toda hora estávamos na aldeia. Minha mãe conta que nós voltamos definitivamente porque em uma das idas para passar as férias na aldeia, na hora de ir embora, depois de me despedir dos primos, quando o caminhão fez a curva na estrada e ninguém mais podia me ver, eu estava chorando, em silêncio, as lágrimas escorrendo pelo rosto. Então ela decidiu que estava na hora de voltar porque isso seria bom para mim, ela sentiu que eu estava precisando desse contato mais permanente com a aldeia.

Minha língua materna é o português, porque aprendi com minha mãe que não fala sua língua por ter se afastado de seu povo muito pequena. Quando fui morar na aldeia, desenvolvi bem a língua Xavante. Convivi, aprendi, vivi toda a força da tradição A’uwê, dos 4 aos 14 anos, quando tive que ir para a cidade por causa dos estudos. Na época lá não tinha o ensino médio. Aprendi a língua, o modo de vida, sou formada nas cerimônias na tradição Xavante, conheço muito a realidade.

Não tenho uma memória de quando comecei a morar na aldeia. Quando lembro da minha infância, a memória é só da aldeia, pescando com os primos, brincando. É muito natural para mim, porque eu sempre estive lá. Mas dentro do costume indígena, minha criação foi especial, foi diferente. A cultura Xavante é muito patriarcal, então, por eu ter a experiência de minha mãe, criada fora da aldeia, e de meu pai que também tem uma visão mais aberta de outro mundo, pude viver de uma forma mais livre que as meninas. Acho que eu fui criada como um menino Xavante.

“Quando eu tive realmente que sair do meu mundo, do coletivo da aldeia onde todo mundo me conhecia, todo mundo sabia o que eu pensava, e ir para um lugar completamente novo, apesar de conhecido, deu um pouco de medo”

Como sempre vivi os dois mundos, quando tive que sair para estudar em Água Boa, que é uma cidade ainda mais perto da aldeia, parecia que não era um corte radical. No começo não caiu a ficha que estava morando na cidade, porque eu sempre voltava para a aldeia no fim de semana, nas férias, nos ritos de passagem.

Mas na verdade, quando eu tive realmente que sair do meu mundo, do coletivo da aldeia onde todo mundo me conhecia, todo mundo sabia o que eu pensava, e ir para um lugar completamente novo, apesar de conhecido, deu um pouco de medo, foi um pouco complicado. Quando eu ia para a cidade era mais uma visita, ficava uns dias, conhecia novas pessoas, mas sabia que ia voltar para a aldeia. Então, nessa época, eu fiquei assustada. Pensava: como vai ser agora que terei que conviver com essas pessoas e essa realidade diariamente? Como as pessoas me receberiam, sabendo que eu sou indígena, se teriam algum preconceito. Como eu sempre vivi muito com adultos, sempre escutei sobre as lutas indígenas, do quanto é complicado.

A princípio, eu não senti o preconceito. As pessoas se espantavam por eu falar bem o português, sem sotaque, porque estão acostumadas com o povo Xavante que não fala bem, que não compreende bem a língua. Era mais um choque: nossa, você fala português direitinho, você entende tudo… Isso pode ser visto como preconceito? Pode. Existe aquele tipo de preconceito por pura ignorância, mas as pessoas estão dispostas a aprender e entender o outro lado. Mas tem o preconceito que é muito condenatório, a pessoa olha para você e já não gosta de você, não sabe o porquê, não tem argumento, não consegue expressar… é uma coisa generalizada.

Em alguns momentos tive contato com pessoas muito curiosas, querendo entender a minha realidade, sem julgamento nenhum, apenas querendo conhecer a Clara, não por ela ser indígena, não por ela falar bem, simplesmente por conhecer. Mas, quando eu estava com o pessoal da aldeia, que essas pessoas da cidade consideram realmente indígena, eu sentia mais esse preconceito que machuca. Quando falavam que os indígenas são sujos, estão sempre fedendo, que não sabem falar as coisas direito… Aí machucava, o sangue fervia. Porque, na verdade eles não me viam muito como indígena. Diziam: você fala tão bem, você é descendente? Eu respondia: não, eu sou indígena mesmo, de pai, mãe, avô, avó.

Eu sempre procurei reagir explicando: não é bem assim, cada povo, cada pessoa tem seu modo diferente de viver, o que é cheiroso para mim, o que eu acho bonito, é diferente para você, então busque entender por que eles se vestem assim ou por que estão dessa forma. Eu explicava, mas sem violência, de forma mais didática. Acho que muito por causa dos meus pais, como minha mãe é professora e meu pai, como liderança, sempre procurou o diálogo, eu aprendi dessa forma, a procurar dialogar primeiro. Mas às vezes não dá, sai uma faisquinha, a gente perde a paciência.

“Quando falavam que os indígenas são sujos, estão sempre fedendo, que não sabem falar as coisas direito… Aí machucava, o sangue fervia”

Na época da faculdade foi mais radical. Eu escolhi Goiânia por causa da minha mãe, porque a família adotiva dela está aqui e eu teria o apoio dessa família. Na época meu pai estava morando em Água Boa porque era chefe da regional da Funai e minha mãe estava fazendo mestrado em Cuiabá. Apesar de ela estar morando ali, eu não me sentia a vontade em Cuiabá. E eu também queria conhecer o mundo por mim mesma, sem ter esse suporte dos pais, ver como era mesmo! Então, decidi vir para Goiânia porque era uma cidade onde, apesar de só ter vindo algumas vezes nas férias, para visitar meus avós, eu sempre me senti muito a vontade, muito em casa. Foi por isso que escolhi Goiânia.

“Na aldeia Wederã … se desenvolvem projetos culturais mais ligados à área do áudiovisual. Aí eu peguei o gosto pela comunicação, de falar, de fotografar, fazer vídeos”

A reação das pessoas aqui é bastante diferente. Quando eu me mudei para cá, eu já não tinha tantas características que são próprias dos Xavante, que os identifica, como o corte de franja retinho. Como eu já estava fora da aldeia há um tempo, tinha deixado meu cabelo crescer, a franja crescer. Quando mudei para cá não teve tanto estranhamento. Geralmente as pessoas olham para mim e perguntam se eu sou japonesa ou peruana. Mas nunca acertam que sou indígena. Quando falo que sou indígena, ficam em choque, dizem: tem certeza, não está confundindo, não é descendente? Não, sou indígena mesmo, de pai, mãe. A curiosidade aqui é bem maior, querem saber como funciona, como vivem os indígenas, como cheguei até aqui. É uma curiosidade mais saudável.

Eu escolhi fazer jornalismo porque ainda na época da aldeia eu me envolvi muito com áudiovisual. Comecei na fotografia, porque na aldeia Wederã, de onde eu vim, da Terra Indígena Pimentel Barbosa, se desenvolvem projetos culturais mais ligados à área do áudiovisual. Aí eu peguei o gosto pela comunicação, de falar, de fotografar, fazer vídeos. Muito disso entrou em mim porque desde pequena estou envolvida nesse meio. Eu quis fazer cinema, só que na época o vestibular já tinha encerrado. Na área de comunicação, o que eu vi mais próximo do que gosto, que é sempre estar aprendendo e sempre ter uma voz, foi o curso de jornalismo. Porque busca trazer a realidade, documentar, dar voz aos outros, sempre atento às questões.

Estou numa faculdade particular. Por não ter feito o ensino médio em escola pública, não pude concorrer a vagas de cota indígena. Minha mãe estava preocupada com o meu aprendizado e me colocou numa escola particular, onde ela conhecia a orientadora, onde eu teria um acompanhamento especial. A escola da aldeia é muito diferente, focada na cultura Xavante, segue o calendário que possibilita o pessoal continuar nas atividades do dia a dia, a matemática é mais ligada às atividades do povo, o português também, sempre foi um ensino multicultural, então eu nunca tinha tido um ensino mais técnico, mais próximo ao da cidade.

“Eu gosto desse diálogo que minha vida me permitiu ter”

Para o futuro, eu penso em estar lá e cá. Eu gosto muito dos dois mundos, como cresci dentro das duas culturas, me sinto bem nas duas. Se eu ficasse o tempo todo na cidade, se me desligasse da aldeia, isso não me faria bem. Assim também, estar completamente imersa na aldeia, sem um pouco da cidade, não seria tão bom. Eu gosto desse diálogo que minha vida me permitiu ter. Tanto explicar para os indígenas como funciona a cultura dos brancos, como também estar no meio dos brancos e possibilitar esse diálogo para eles entenderem como a gente vive na pluralidade, o que a gente tem, que não é legal generalizar, assim como eles não gostam de ser generalizados. Eu sempre me vi caminhando entre os dois mundos, uma temporada lá, uma temporada aqui. Eu gosto de estar me movimentando, não gosto muito de um lugar fixo. É uma característica indígena, de povo nômade. Eu pretendo aprofundar esse diálogo. No ano passado, não deu para eu voltar para a aldeia. Aconteceu um ritual muito importante e não consegui voltar por causa dessa pandemia, não podia colocar em risco meu avô e as outras pessoas, então estou sentindo falta de voltar para lá.

Agora, estou querendo terminar logo a faculdade para voltar a trabalhar na aldeia. Apesar da tecnologia ter estado sempre presente, agora é que eles realmente precisam mais. Por causa da pandemia, as escolas estão muito conectadas. Minha mãe é coordenadora de uma das escolas lá na aldeia e ela percebe que está faltando essa formação técnica, onde eu posso entrar e contribuir.

Durante todo este tempo, o indígena, querendo ou não, aprendeu coisas ruins que o branco trouxe, mas também muita coisa boa, principalmente relacionada à tecnologia, assim como os brancos também poderiam aprender mais com os indígenas, principalmente as questões espirituais. Isso é bem complicado, mas é possível.

“… independente de ser indígena, da religião, da cor, de qualquer coisa, o ser humano precisa se olhar mais, olhar mais o outro”

Não dá para generalizar, nunca vai ser um mundo perfeito, mas é possível todo mundo estar melhor do que está hoje, por isso os povos indígenas caminham, eles querem ter o direito de ser quem são. Assim como os não indígenas também lutam, porque o preconceito não atinge só os indígenas, está também em outras causas. As questões ruins estão no olhar das pessoas, e isso tem que mudar, diminuir. Buscar entender o outro é importante, independente de ser indígena, da religião, da cor, de qualquer coisa. O ser humano precisa se olhar mais, olhar mais o outro.

Em abril se comemora o dia do índio. Essa é uma data estranha. Não deixo de ser indígena antes ou depois desse dia, mas assim como em outras datas, as pessoas precisam entender que todo dia é de luta para todo mundo. Muitas línguas se perderam ao longo do tempo, principalmente indígenas, algumas estão se perdendo atualmente. Buscar entender, buscar o conhecimento, é uma questão importante. Foi o que meu avô Wazaé falou para mim: o conhecimento é o que liberta as pessoas, é o que possibilita o diálogo, conhecer o outro, tentar não julgar, se colocar no lugar do outro.”

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