Jacarezinho e a manutenção da ordem social

Testemunha da operação no Jacarezinho conta como jovem desarmado foi executado por um policial. Massacre foi mais um rito de um país onde “limpam-se” favelas para mostrar aos pobres seu lugar, escreve Philip Lichterbeck.

DW

A mulher não quer que seu nome apareça na imprensa. Ela tem medo. Não de criminosos, mas da polícia. Ela é testemunha da operação policial mais mortal da história do Rio de Janeiro, que ocorreu em 6 de maio na comunidade do Jacarezinho e deixou 28 mortos, incluindo um policial.

Há provas claras de que a própria Polícia Civil infringiu a lei na operação, que supostamente ocorreu para fazer cumprir a lei. Houve execuções extrajudiciais. Mas agora não são aqueles que cometeram os crimes de uniforme que estão com medo, e sim as testemunhas que acabaram envolvidas contra sua vontade.

Meu encontro com a testemunha é marcado na casa de uma pastora evangélica no Jacarezinho. Antes de a testemunha chegar, a pastora conta que ela própria viveu uma situação dramática naquele 6 de maio. Um traficante invadiu sua casa durante a operação policial e se escondeu atrás do altar. “Eu o conhecia de vista, ele estava sempre em uma boca de fumo próxima”, conta a pastora.

Quando os policiais bateram à sua casa, ela disse que não tinha ninguém ali, e os agentes seguiram caminho. Ela deveria tê-lo denunciado? Em um Estado de direito que funciona, teria sido o correto. Mas no Brasil? A pastora deveria ter visto uma pessoa sendo executada em seu local de oração?

“Nunca me sentirei segura com essa polícia”

Depois de um tempo, chega a testemunha com quem eu tinha combinado. A mulher de 43 anos não vive mais no Jacarezinho. Ela se mudou com seu marido e sua filha alguns dias após a operação policial. Os dois trabalhavam no Jacarezinho, estavam bem enraizados na comunidade e estáveis financeiramente. Eles desistiram de tudo isso. “O medo da polícia é maior que o desafio de recomeçar mais uma vez”, diz a testemunha do massacre.

Ela conta que, no dia da operação, um traficante entrou em seu apartamento. Ele estava desarmado, vestindo apenas uma bermuda. O pé dele havia sido baleado, então sangrava muito. O rastro de sangue que ele deixou nos becos da favela acabou levando um policial até o apartamento da família. O agente conseguiu entrar e empurrou a mulher. “Eu disse a ele que havia uma pessoa ferida no apartamento.”

O traficante, que tinha 21 anos, como agora se sabe, se escondeu no quarto da filha de 9 anos. Aparentemente ele se deitou na cama e fingiu estar dormindo. O policial, que a testemunha descreve como “endemoniado”, entrou no quarto com armas em punho. “Onde está a pistola?”, gritou ele, segundo a dona da casa. Depois, ouviram-se tiros.

Tudo isso aconteceu pela manhã, mas o corpo do traficante só foi retirado do quarto da criança à tarde, enrolado em um tapete. Os relatos não apontam outra conclusão a não ser que uma execução ocorreu naquele quarto. “Nunca vou me sentir segura com essa polícia”, diz a testemunha.

Gerar medo, em vez de proteger

Muito mais além disso, é perfeitamente claro que as operações policiais como a do Jacarezinho são totalmente inúteis. Quando visitei a favela duas semanas após a operação, não faltavam rapazes fortemente armados nem bocas de fumo bem abastecidas com drogas. O tráfico continua seus negócios como antes.

Então, qual foi o objetivo da operação? A justificativa da Polícia Civil, de que queria proteger os jovens do recrutamento pelo tráfico, não poderia ser mais equivocada. A maioria dos jovens é levada ao tráfico pela falta de perspectivas na favela.

O que a operação conseguiu em vez disso: aumentou ainda mais a desconfiança em relação ao Estado. Vidas de pessoas completamente inocentes foram estilhaçadas. Trabalhadores do comércio que não conseguiram chegar a tempo no trabalho por conta da operação foram demitidos. Pessoas como a testemunha com quem conversei precisaram deixar a comunidade. E em vez de salvar os jovens do tráfico, muitos ficaram traumatizados. A filha de 9 anos da testemunha, em cujo quarto o traficante foi morto, pergunta até hoje o que aconteceu com o rapaz e como ele está.

Uma sociedade que comemora massacres

Naturalmente, operações policiais como a do Jacarezinho também têm a função de satisfazer as classes média e alta do Brasil. Fica-se feliz com cada pobre a menos como um perigo potencial. Existe uma lei não escrita no país que diz que a polícia deve “limpar” as favelas de vez em quando para deixar clara a ordem social. Nas redes sociais e na seção de comentários dos jornais, massacres como o do Jacarezinho são comemorados.

A testemunha segue então me dizendo que os moradores da favela perderam a fé na justiça. Eles são comumente tachados de “bandidos”, enquanto a mídia sempre afirma que “vamos averiguar os fatos…” sobre os criminosos de colarinho branco da Zona Sul do Rio.

A operação policial no Jacarezinho, portanto, foi um dos rituais de um país onde, de vez em quando, se deve mostrar aos desfavorecidos a que lugar eles pertencem. Não se trata de uma questão de lei e ordem, mas de manter uma ordem social.

Como sempre, as execuções do Jacarezinho não terão consequências. O maior massacre em uma operação policial na história do Rio logo será esquecido. 

Operação policial mais mortal da história do Rio deixou 28 mortos, incluindo um policial, em 6 de maio

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

20 + 8 =