Carros europeus usam couro envolvido em desmatamento da Amazônia

Frigoríficos como JBS e Minerva vendem produto para Volkswagen, BMW, Daimler, Peugeot e Renault, que ignoram destruição do bioma; autora do estudo diz que rastreamento da cadeia de consumo talvez só aconteça quando “não tiver mais floresta para desmatar”

Por Julia Dolce, em De Olho nos Ruralistas

O couro que a Europa compra do Brasil vem de empresas que podem ter desmatado  1.345.118 hectares de floresta amazônica em dois anos, de julho de 2018 a junho de 2020. Os dados são do estudo “Conduzindo o desmatamento: a contribuição da indústria automotiva europeia para o desmatamento no Brasil” (em inglês), feito pela organização Aidenvironment a pedido da Rainforest Foundation Norway.

O estudo conclui que, apesar de depender do couro brasileiro, a indústria europeia não tem qualquer tipo de fiscalização sobre a origem do produto. “Atualmente, ninguém comprando couro de empresas brasileiras pode garantir que a origem não veio do desmatamento”, afirma Joana Faggin, responsável pela pesquisa.

Enquanto 80% da carne bovina é processada e consumida em território brasileiro, a mesma porcentagem do couro bovino é exportada, tornando o Brasil líder na exportação do produto, movimentando anualmente cerca de US$ 1 bilhão. Grande parte do couro brasileiro vai para o setor automotivo europeu, que o transforma em cobertura para bancos, painéis e volantes de carros.

A pesquisa analisa os fluxos comerciais entre o Brasil e as manufaturadas de couro automotivo na Europa e documentos que provam a exposição ao desmatamento. Oficialmente não há políticas ou medidas fiscalizatórias por parte das automotivas europeias, ou por parte de qualquer outra empresa consumidora de couro brasileiro, como nos setores de moda e decoração.

A invisibilidade da contribuição da cadeia produtiva do couro para devastação dos biomas brasileiro é inquestionável. A pesquisadora aponta, como uma das razões, os mais de vinte diferentes atores diretos e indiretos, que vão de grileiros a pecuaristas até chegar no abatedouro, nas indústrias e nos consumidores finais.

ITÁLIA CONCENTRA 80% DAS INDÚSTRIAS QUE PROCESSAM COURO PARA O SETOR

Para Joana, essa realidade só deve mudar a partir de uma política de boicote das indústrias e dos consumidores europeus ao couro brasileiro. O relatório dá luz a essa realidade e vem provocando reações:

— A indústria do couro é muito certificada em relação aos processos industriais, de poluição, de químicos, e é uma indústria muito pesada neste sentido, leva isso em consideração, gera muita poluição química. Mas ninguém conversa sobre o gado. Na esfera europeia, antes era um assunto muito restrito à academia. Com o estudo, a sociedade civil começou se movimentar.

O movimento Amsterdam Partnership Declaration, criado por representantes de sete países europeus (Bélgica, Dinamarca, Alemanha, Itália, Holanda, Noruega, Espanha e Reino Unido), discute as políticas antidesmatamento e incluiu o couro na lista dos produtos a serem analisados do ponto de vista de toda a cadeia produtiva.

Por concentrar mais de 80% das indústrias processadoras de couro para o setor automobilístico, a Itália é o destino da maior parte da produção. Lá esse couro passa por um processo chamado relabilling (reclassificação), ou seja,  ao ser processado, o que era brasileiro vira italiano, acabando com a possibilidade de rastreamento. Além da Itália, há uma grande indústria processadora de couro na China e nos Estados Unidos.

No discurso institucional, a indústria do couro costuma se defender dizendo que utiliza um subproduto da carne, um material que seria jogado fora e, com isso, afetaria o ambiente. Para Joana, é preciso colocar o couro em um patamar tão importante quanto a carne: “Essa cadeia de valor precisa dividir a responsabilidade da criação do gado, porque, na verdade, a pegada da carne e do couro está no animal e não na indústria”.

JBS, MINERVA E MARFRIG ABASTECEM AS MULTINACIONAIS DO CARRO

As principais fornecedoras de couro analisadas na pesquisa são também as gigantes do mercado da carne no Brasil: JBS, Minerva e Marfrig. Quem compra delas são as empresas que beneficiam os couros que irão para carros da Volkswagen, BMW, Daimler (dona da Mercedes-Benz), o grupo PSA (antes PSA Peugeot Citröen, hoje FCA, dono das marcas Chrysler e Fiat) e a Renault.

Os dados apresentados mostram que apenas a JBS tem 182 toneladas de couro exportado oriundos de áreas que sofreram desmatamento. O grupo tem seus próprios curtumes e é o maior exportador de couro do Brasil. A Minerva também tem seu curtume e absorve o material de outros pecuaristas e frigoríficos. A Marfrig associa-se às empresas Viposa e com a Vancouros, que beneficiam o produto.

A indústria automobilística europeia foi pressionada e criou uma gama grande de políticas ambientais para fornecedores de matéria-prima, mas que estão muito focadas na mineração. Não existe nada para o couro. Segundo Joana, o único cuidado dos fornecedores é autodeclarar, em alguns contratos, que o produto fornecido não está ligado ao desmatamento.

Ela lembra que o couro não é mais um nicho da indústria para carros de luxo, hoje é um componente que está em todas as categorias de carro: “É um objeto de desejo do capital, já está inserido, com todo o discurso da durabilidade do couro, de que é mais resistente”.

A Europa já tem um sistema de certificação, o Leather Working Group (Grupo de Trabalho do Couro), que garante um selo para as empresas do setor. Para a pesquisadora, no entanto, o rastreamento é limitado, já que vai no máximo até o curtume e raramente inclui o frigorífico: “Você pode até eliminar algum nível de risco, mas não vai ter certeza que o couro não está ligado ao desmatamento. É o mesmo problema da indústria da carne: da onde vem o gado antes de chegar no frigorífico?”

A falta de compromisso com o tema é histórica. Em 2009, após denúncia do Greenpeace, os grandes frigoríficos, entre eles a JBS, assinaram um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), no qual assumiam criar, até 2011, um monitoramento de todos os fornecedores. Nada foi feito. Na sua política de greenwashing, a JBS tem a plataforma JBS 360, onde a partir o código do couro é possível ver em qual frigorífico foi abatido. Joana aponta que, mais uma vez, não se chega ao elo final da cadeia.

Em setembro do ano passado, a Marfrig e a JBS assumiram pela primeira vez que precisam monitorar os fornecedores indiretos, após a sociedade civil cobrar acesso aos dados das Guias de Transporte de Animais (GTAs), o documento sanitário de movimentação do gado. Só que os prazos são extremamente largos: dez anos. “Em cinco anos a indústria da carne pode acabar com uma parte considerável da floresta, ela tem esse potencial”, aponta a pesquisadora. Ela se lembra ainda da conjuntura, dos crimes de grilagem à política antiecológica do governo Bolsonaro.

‘EUROPA AINDA NÃO SABE O QUE BOLSONARO ESTÁ FAZENDO COM AMBIENTE’

O rastreamento da cadeia do couro pode se efetivar com pressão da sociedade civil, mas é possível que isso só aconteça “quando não tiver mais floresta para desmatar”, alerta Joana, pesquisadora que vive na Holanda.

Ela diz que ainda existe, fora do Brasil, a sensação de que o país tem uma boa política ambiental: “Ainda não chegou aqui na Europa exatamente o que o Bolsonaro está fazendo no sentido de enfraquecer a fiscalização, esvaziar o Ibama, passar os projetos de lei no Congresso”. O Ibama é o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis.

“Ninguém fora do Brasil entende muito Bolsonaro, ninguém conversa, não é um governo que está no diálogo”, afirma. “E, como ninguém entende, os atores do exterior se baseiam mais no discurso das empresas, nas políticas de garantia”.

Algumas indústrias sinalizam boicotes, como uma importante produtora norueguesa de salmão que usa a soja para ração e já tirou a Cargill de seu portfólio, por causa da ligação com o desmatamento no Cerrado. “Esse tipo de medida pode ajudar, com certeza”, atesta Joana.

Foto principal (Victor Moriyama/Rainforest Foundation Norway): indústria do couro está ligada ao desmatamento

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