‘Como achar que um negro é dono de uma bicicleta tão cara?’, reflete antropólogo ao criticar ‘racismo estrutural’ em caso no Leblon

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O cenário é a calçada em frente ao Shopping Leblon, na tarde do último sábado. Em meio aos muitos pedestres que vêm e vão, Igor Martins Pinheiro, de 22 anos, agacha-se ao lado de uma bicicleta elétrica, como mostram câmeras de segurança instaladas na rua. Em menos de dois minutos, o rapaz rompe a corrente do cadeado com um alicate, à luz do dia, e deixa o local empurrando o equipamento, sem chamar atenção ou ser incomodado. Cerca de meia hora depois, no mesmo local, Tomás Oliveira e Mariana Spinelli, proprietária do item furtado, interpelaram Matheus Ribeiro, que estava sobre uma bicicleta elétrica similar, relatando o crime recém-ocorrido. A abordagem do casal, filmada pelo instrutor de surfe, gerou intensos debates e virou caso de polícia. Igor, preso na manhã desta quinta-feira por agentes da 14ª DP (Leblon), é branco e loiro. Matheus é negro e usa cabelo no estilo black power. Especialistas ouvido pelo EXTRA enxergam no ocorrido um exemplo do chamado “racismo estrutural”.

Para o antropólogo Roberto DaMatta, professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio, o episódio remete ao passado escravocrata do país, que ainda deixa marcas na sociedade brasileira. Na avaliação de DaMatta, não é preciso que o ocorrido seja tipificado pela polícia como racismo para que configure, ainda assim, um exemplo de “preconceito estrutural”.

— Como você vai achar que aquele negro pode ser dono de uma bicicleta elétrica tão cara? Ao mesmo tempo, se alguém se aproximasse do rapaz branco no momento do furto, talvez avaliasse que ele estava com algum problema e oferecesse ajuda. Não são coincidências. Temos um passado de escravidão muito forte, um histórico que sempre colocou negros em posições inferiores. E é um passado que nos persegue e vem à tona em situações como essa — analisa DaMatta. : — O racismo está tão entranhado que, nesse caso, não precisou nem aparecer como crime, a ser necessariamente tipificado em delegacia como tal. Mas ele está ali, presente no nosso cotidiano.

A também antropóloga Vera Rodrigues tem visão semelhante. Professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) e seminarista no Centro de Estudos Afro-Latino-Americanos da Universidade de Harvard, Vera afirma que “é preciso reconhecer que o Brasil é um país racista”:

— Casos como esse são um tapa na cara de quem está disposto a ver, porque exemplificam o “racismo à brasileira”, em que pessoas brancas partem de um lugar social no qual acreditam ter uma pseudoautoridade sobre negros. Me parece bastante improvável que tudo acontecesse exatamente igual, com o mesmo tom de abordagem, se o rapaz também fosse branco — diz a professora.— E tem mais: o que aconteceria se a polícia tivesse sido chamada de imediato? Ou se outros populares tivessem decidido fazer justiça? Não dá pra dissociar esse episódio do fato de que a cada 23 minutos um jovem negro como ele é assassinado no Brasil.

Conhecido como ‘Lorão’

Os policiais chegaram até Igor a partir da análise nas imagens de câmeras. Minutos depois do furto, o circuito interno do prédio onde ele mora, em Botafogo, registrou a chegada do rapaz com a bicicleta de Mariana. No apartamento em que o rapaz vive com a mãe e o irmão, foram localizados a bermuda que ele usava no momento do crime e ferramentas como o alicate usado para romper os cadeados.

Entenda o caso: Jovem negro denuncia casal branco por racismo, no Leblon, após precisar provar ser o dono de bicicleta elétrica

Conhecido como “Lorão”, Igor tem 28 passagens na polícia, metade delas por furtos de bicicletas. Ele já foi preso pelo menos sete vezes por ações semelhantes à de sábado — em 2018, por exemplo, o rapaz foi apontado pela polícia como responsável por mais de dez furtos de bicicleta na Zona Sul em um período de dois meses.

— Eu recebi essa notícia há pouco e estou muito aliviado por eles terem achado o verdadeiro culpado. Espero que o casal resolva o problema e que eles vejam que o perigo não vem só do negro. Como vocês viram, foi um branco que cometeu o crime — desabafou Matheus pouco após a prisão.

Ao serem ouvidos na 14ª DP, onde o relato do instrutor de surfe foi registrado como crime de calúnia, Tomás e Mariana negaram terem abordado Matheus “em razão de cor de pele”. De acordo com o casal, o comportamento teria sido o mesmo caso se tratasse de uma pessoa branca.

— Diante da narrativa tanto do Matheus quanto das pessoas que estão sendo investigadas, em nenhum momento foi mencionada a existência de nenhuma ofensa expressa verbal de caráter racial. Essa menção não foi nos trazida por parte do Matheus ou do casal. Então, por isso, a gente investiga esse caso como calúnia e não injúria racial — explicou a delegada Natacha Alves de Oliveira, titular da 14ª DP.

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