Romero Jucá, o ‘maior inimigo’ dos Yanomami

Político e ex-governador de Roraima foi um dos emblemáticos defensores do garimpo nos territórios indígenas; no currículo, uma desastrosa passagem pela Funai e propostas de reduzir a TI Yanomami

Por Eduardo Nunomura*, em Repórter Brasil

Romero Jucá (MDB) anda silencioso. Permanece em Brasília, mas optou por manter uma postura discreta desde que não foi reeleito ao Senado, em 2018. De lá para cá, raramente tem atendido a imprensa. Ficar longe dos holofotes é compreensível. Nos últimos anos, Jucá teve seu nome envolvido em casos de corrupção, sempre se esquivando deles. Mas o passado desse carimbado personagem da política brasileira está umbilicalmente ligado à atividade garimpeira em Roraima. Tanto que, em 2016, Dário Kopenawa Yanomami, presidente da HAY (Hutukara Associação Yanomami) e filho do líder Davi Kopenawa, o chamava de “o maior inimigo dos povos indígenas do Brasil“.

Entre maio de 1986 e setembro de 1988, no governo de José Sarney, Romero Jucá foi conduzido à presidência da Fundação Nacional do Índio (Funai). Sua passagem pelo órgão foi mais que desastrosa para os Yanomami. Ainda assim, saiu premiado do governo. De 1988 a 1990, Jucá foi nomeado por Sarney, seu padrinho político do MDB, para ser o primeiro governador do território de Roraima, que depois se tornaria o Estado.

No contexto do projeto Calha Norte – criado em 1985 sob o pretexto de povoar as fronteiras com Colômbia, Peru e Venezuela, e levar infraestrutura para os povoados da região –, o governo Sarney via na mineração em terras dos Yanomami a saída perfeita para um iminente problema social. Um ano antes, o garimpo de Serra Pelada, no Pará, dava sinais de esgotamento para a lavra manual, o que significava que cerca de 80 mil garimpeiros ficariam sem ter o que fazer. O maquinário pesado iria entrar em operação. Com as bênçãos do então chefe da Casa Militar Rubens Bayma Denys e de Jucá, na Funai, uma nova frente garimpeira poderia absorver esse contingente sedento por ouro, diamante e outras riquezas minerais.

Em 1986, Jucá permitiu que o garimpo ilegal em Roraima avançasse a partir da ampliação de uma antiga pista de pouso, na região do Paapiu e Couto de Magalhães, na fronteira do Brasil com a Venezuela. A obra da Força Aérea Brasileira (FAB) facilitou o ingresso dos invasores, já que nenhuma guarnição militar foi construída no local. No ano seguinte, Jucá expulsou ONGs e missões religiosas e determinou a retirada de equipes de saúde da TI Yanomami, em plena pandemia de malária e gripe. E em agosto de 1988, já no fim de seu mandato à frente da Funai, chegou a propor a redução em 75% do tamanho da TI Yanomami.

No estudo “(Des) territorialização e Conflitos Sociais na Luta por Espaço em Roraima”, de France Rodrigues, professora da Universidade Federal de Roraima, consta que “em meio às denúncias de conflitos entre índios e garimpeiros, Romero Jucá apresentou a José Sarney o “Projeto Meridiano 62″, que propunha a criação de reservas garimpeiras em áreas de maior concentração de lavras de mineração, permitindo a atividade por dois anos. Desde as grandes mineradoras, comerciantes, empresários, até os garimpeiros aclamaram, em praça pública, o governador Romero Jucá como o ‘salvador dos garimpeiros’”. 

A capital do ouro

“O número de pistas clandestinas é incalculável, mas, extra-oficialmente, são 80. Mas se a FAB e o DAC [Departamento de Aviação Civil] quisessem, elas não seriam construídas, nem os aviões partiriam sem planos de voo”, afirmou o então deputado federal Plínio de Arruda Sampaio (PT-SP), em 28 de junho de 1989 em reportagem da Agência Estado. A frase permanece rigorosamente atual, 32 anos depois. Naquela mesma reportagem, há a informação de que o aeroporto de Boa Vista, que não dispunha de radar, era o segundo em movimentação no Brasil, com 300 pousos e decolagens diários. Estimadas “85% da produção aurífera de três quilos diários” se evadiram de Roraima.

Em 1991, o italiano Luigi Eusebi em seu livro “A barriga morreu” (Edições Loyola), que trata do genocídio dos Yanomami, afirmou que Jucá era conhecido como “o homem dos 35 garimpos”. Assim, não foi surpresa que em março de 1996, já como senador por Roraima pelo PFL, Jucá tenha apresentado o Projeto de Lei 1.610 para liberar a mineração em terras indígenas. Em dezembro de 2014, ele pediu a retirada do projeto, ainda em tramitação na Câmara de Deputados, alegando, na tribuna do Senado, que a questão da mineração seria “um preço que não quero mais pagar”. 

Foi uma reação depois de ter sido apontado pela Comissão Nacional da Verdade, também em dezembro de 2014, como principal responsável por permitir a invasão de 40 mil garimpeiros na TI dos Yanomami quando esteve à frente da Funai. O relatório final estimou que ao menos 8.350 Yanomami morreram em decorrência da ação direta de agentes governamentais ou omissão.

Interesses familiares

Romero Jucá é pernambucano, onde se formou em economia e iniciou sua carreira política. Ocupou uma secretaria municipal do Recife, em 1984, quatro anos antes de chegar a Roraima, para ser governador do então território de Roraima. A transferência de moradia fez bem ao patrimônio familiar. Os Jucá se tornaram donos do maior conglomerado de comunicação do estado roraimense.

Hoje, as empresas do grupo estão em nome da mulher do ex-senador, Rosilene de Brito Pereira Jucá, e dos filhos. A TV Imperial, afiliada da Rede Record, tem como sócio o enteado, André Felipe de Brito Pereira Costa. A emissora Buritis Comunicações, afiliada da TV Bandeirantes, é registrada em nome de Rosilene e do filho Rodrigo Menezes de Holanda Jucá, que por sua vez tem outras empresas em seu nome. Uma delas é a agência de publicidade Uyrapuru Comunicações, em que Rodrigo Jucá aparece como sócio da Societat Participações, a única empresa do grupo que fica em São Paulo. A Societat, que presta serviços de informação, também tem como sócia a filha Marina de Holanda Menezes Jucá Marques. É também no nome de Marina e da mulher Rosilene que constam a sociedade da Rádio Equatorial e a Editora Online, responsável pelo site Roraima em Tempo. 

Marina, em particular, é um personagem que conhece bem o mundo do garimpo em Roraima. Ela é proprietária da Boa Vista Mineração. No site da Agência Nacional de Mineração, a reportagem localizou um pedido da empresa da filha de Jucá para minerar ouro em Amajari, na Serra do Tepequém, nas proximidades da TI Yanomami. Mas em 2015 a Boa Vista Mineração protocolou um pedido de desistência da mineração dessa lavra. 

Em 2017, em entrevista ao site Poder360, o político justificou que sua desistência de legalizar o garimpo em terras indígenas nada tinha a ver com o fato de sua filha Marina, enteada de Maria Teresa Surita, ser dona de uma mineração. Teresa Surita, prefeita eleita para cinco mandatos na capital Boa Vista, concluindo suas últimas gestões com aprovação acima dos 75%, já foi casada com Romero Jucá, ex-senador e ex-governador de Roraima. Na capital roraimense, atribui-se a sua primeira eleição a Jucá, em 1992, embora ele próprio tenha sido derrotado nas urnas dois anos antes para o governo do recém-criado estado de Roraima.

Romero Jucá foi procurado pela reportagem, diretamente e por intermédio da assessoria de imprensa, em três ocasiões, mas não quis dar entrevista.

A política local

O delegado federal Adolpho Albuquerque, da Delegacia de Repressão ao Crime Organizado da Polícia Federal, cita que um dos principais desafios para o combate ao garimpo ilegal em Roraima é o que ele classificou como “apoio massivo de políticos e autoridades para com as pessoas que atuam nessa atividade”. 

E em agosto de 1988, já no fim de seu mandato à frente da Funai, Jucá chegou a propor a redução em 75% do tamanho da TI Yanomami

“Aqui em Roraima especialmente tem a questão da cultura local. O estado foi fundado na exploração mineral, as pessoas vinham para cá buscar uma nova vida em razão da exploração do ouro especialmente. Então culturalmente há uma aceitação social dessa atividade. É aquele lema que eles utilizam: ‘Garimpeiro não é bandido’”, esclarece.

Mais que isso, o garimpo rende votos. Surfando na onda bolsonarista, Antonio Oliverio Garcia, o Denarium, foi eleito governador de Roraima em 2018 com 136.612 votos. Nascido em Anápolis, em Goiás, e vivendo em Roraima desde os anos 1990, elegeu-se pelo PSL com discurso inflamado na mesma toada de Jair Bolsonaro, declaradamente anti-imigraçao e pró-garimpo.

Denarium, seu apelido, vem de “denário”, a moeda de prata com maior circulação durante o Império Romano. Ele assumiu o governo antes mesmo da posse, quando foi nomeado interventor federal via decreto do então presidente Michel Temer (MDB). Roraima enfrentava um colapso financeiro e político, enquanto os servidores estaduais faziam greves e protestos contra meses de atraso salarial. Era o fim da gestão de Suely Campos, esposa de Neudo Campos, ex-governador apontado como líder do ‘escândalo dos Gafanhotos’ e impedido de se candidatar em 2016 pela Lei da Ficha Limpa.

Até aquele ponto, Denarium era visto como um empresário do agronegócio (da soja e do boi), ex-diretor do Banco Bamerindus – cuja função o trouxe para Roraima – mas desconhecido na política local, ainda que seus adversários o acusassem de agiotagem, o que ele sempre negou. Uma vez no poder, o governador revelou-se um fiel aliado do garimpo ilegal, seguindo os trilhos do presidente Bolsonaro. 

No fim do ano passado, quando o estado registrava 700 mortes pela Covid-19, Denarium se preocupava em apresentar à Assembleia Legislativa de Roraima o Projeto de Lei 201/2020, o “PL do Garimpo” (suspenso desde fevereiro pelo Supremo Tribunal Federal), de flexibilização do licenciamento ambiental da atividade de lavra garimpeira. A norma abriria as terras do estado para a mineração, permitindo ainda o uso de maquinário e mercúrio, substância altamente tóxica a humanos, plantas e animais.

O mercúrio, aliás, entrou no PL graças a uma emenda do deputado estadual Eder Lourinho (PTC). Igualmente estreante na política, foi eleito em 2018 com 2.581 votos após campanha feita ao lado do próprio Denarium e de Airton Cascavel, recentemente conhecido como assessor direto do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello. Dos militares a Romero Jucá, de Denarium a Bolsonaro, tudo o que reluz no garimpo é, sim, ouro, mas boa parte vindo do sangue Yanomami.

*Colaboraram Clara Britto e Kátia Brasil

Equipes da série Ouro do Sangue Yanomami

Amazônia Real: Kátia Brasil (editora-executiva); Eduardo Nunomura (editor de especiais); Alberto César Araújo (editor de fotografia), Elaíze Farias (editora de conteúdo); Maria Fernanda Ribeiro, Clara Britto e Alicia Lobato (repórteres); Bruno Kelly (fotografia do sobrevoo) e Paulo Dessana (fotógrafo); Lívia Lemos (mídias sociais); Maria Cecília Costa (assistente executiva); Giovanny Vera (mapa); César Nogueira (montagem); e Nelson Mota (desenvolvedor).

Repórter Brasil: Ana Magalhães (coordenadora de jornalismo); Mariana Della Barba (editora); Mayra Sartorato (editora de redes sociais); Piero Locatelli e Guilherme Henrique (repórteres); Joyce Cardoso (estagiária).

Durante seu período na presidência da Funai, Jucá determinou a retirada de equipes de saúde da Terra Indígena Yanomami, em plena pandemia de malária (Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado/2018)

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