Famílias que dependiam do rio Paraopeba, contaminado por rejeitos da barragem que rompeu em 2019, sofrem com distribuição insuficiente de água potável pela mineradora. “Não querem dinheiro, querem água”, diz advogada.
Por Nádia Pontes, Deutsche Welle
Lúcia* não consegue falar sobre sua vida antes do desastre de Brumadinho sem chorar. Desde o rompimento da barragem de rejeitos da Vale naquele 25 de janeiro de 2019, que contaminou o rio Paraopeba, a família dela passou a “mendigar” água – como ela mesma diz.
A tragédia matou 270 pessoas, incluindo duas grávidas. Dois anos depois, os bombeiros ainda buscam os corpos de dez vítimas que seguem desaparecidas, e a falta de água potável compromete, silenciosamente, a vida de famílias que vivem no entorno do Paraopeba e a renda de pequenos produtores. E traz e sofrimento psicológico.
“Nossa água antes vinha de um poço artesiano que hoje está contaminado porque está perto do rio”, explica Lúcia. “Não temos uma gota na nossa caixa d’água”, conta aos prantos.
Um levantamento obtido com exclusividade pela DW Brasil, feito pelo Instituto Guaicuy – uma das três assessorias técnicas independentes nomeadas pela Justiça para apoiar moradores de áreas impactadas pelo desastre na busca por reparação –, mostra que o volume de água distribuído pela Vale está dez vezes abaixo das necessidades mínimas dos atingidos.
Segundo o dado mais atual divulgado pela mineradora, foram fornecidos 353 milhões de litros de água para consumo humano até 9 de dezembro de 2020. A população afetada na bacia do Paraopeba, por outro lado, necessitaria de pelo menos 3,1 bilhões de litros para sobreviver nesse mesmo período.
As projeções, feitas a partir dos dados do Censo e do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, apontam pelo menos 28 mil pessoas sem rede de abastecimento, que dependem diretamente ou indiretamente do rio. Segundo a média de consumo de água de cada município atingido, a demanda diária dessa população seria de 4,5 milhões de litros. A Vale forneceu por dia cerca de 517 mil litros.
A recomendação atual dos órgãos ambientais é que a água do Paraopeba não seja usada sob hipótese alguma. Concentrações de metais como chumbo, manganês, ferro e mercúrio são monitoradas e atingem níveis preocupantes para a saúde humana de acordo com a estação chuvosa, apontam boletins do Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam).
Intimidados e invisíveis
Para encaminhar as reclamações às assessorias técnicas, os moradores precisam vencer o medo. Eles relatam sofrer chantagem de porta-vozes da Vale, que ameaçam cortar qualquer benefício caso falem sobre o problema. Por isso, os que conversaram com a DW Brasil pediram pra não terem seus nomes verdadeiros revelados.
Lúcia faz parte desse grupo de atingidos quase invisível. Eles estão ao longo do curso do Paraopeba, mais distantes do epicentro da tragédia, onde os danos físicos são mais escandalosos.
Esse também é o caso de Sônia*, moradora na zona rural de Pompéu, a 200 quilômetros de Brumadinho. Ela criava gado, mas teve que vender os animais às pressas porque eles não tinham mais como matar a sede depois que os rejeitos atingiram o rio. A Vale chegou a fornecer água, mas interrompeu a distribuição em abril de 2020. A interrupção a partir desse mês também foi relatada pelos outros moradores ouvidos pela DW Brasil.
“Nossos filhos foram embora pra cidade. Tenho depressão, ansiedade”, conta Sônia. A família se endividou para perfurar um poço, que, quando possível, começará a ser pago em diversas prestações.
“A vida é muito sofrida sem água. Se a Vale limpasse o rio, não precisava de mais nada. Eu era feliz, eu era alegre, a gente tinha tudo do que precisava”, lamenta. “A Vale acabou com a minha família.”
Chico* não pode mais criar tilápias em tanques, cultivar milho ou criar gado, como fazia antes. “Em 2020, a Vale cortou o fornecimento de silagem e ração. Eu peço para eles perfurarem um poço, mas eles negam”, conta.
Segundo ele, uma análise de solo recente recomendou que o produtor não plantasse mais às margens do Paraopeba. “Estou impedido de viver”, diz.
“Não querem dinheiro, querem água”
Gabrielle Luz Campos, advogada popular e supervisora de medidas emergenciais na coordenação de Direitos das Pessoas Atingidas, no Instituto Guaicuy, diz que a mineradora é que dita as regras quando se trata de fornecer água.
“A Vale não entrega água para alguns atingidos por criar critérios unilaterais. Ela diz, por exemplo, que só vai fornecer água para quem estiver a 100 metros da margem do rio. Mas isso não foi estabelecido judicialmente, então ela passa a negar água para as pessoas”, diz Campos à DW Brasil.
Carolina Morishita, defensora pública de Minas Gerais, confirma que o caso é difícil e desgastante. “A Vale diz que os critérios [para distribuir água aos atingidos] são dos órgãos ambientais, já esses dizem que nunca criaram esses critérios”, aponta. “O desentendimento é grande, tentamos medidas extrajudiciais, adequação de fornecimento de volume e cronograma adequados, mas a maior parte dos casos se tornam procedimentos longos.”
Pelo fato de a Vale não dar andamento às reclamações na velocidade em que as pessoas atingidas precisam, a saúde emocional delas é duramente atingida, comenta a defensora. “E a questão dos animais de criação têm também impacto na renda”, pontua.
Na região de atuação da assessoria técnica Nacab, que atende comunidades situadas na calha do rio em dez municípios, entre Esmeraldas e Paraopeba, pelo menos 1.063 pessoas pediram ajuda por estarem sem água.
“São pessoas que tiveram a fonte para consumo comprometida, que teriam direito ao fornecimento de água mineral pela Vale. Muitos atingidos têm poços perto do rio e têm dúvida da qualidade”, detalha Lauro Fraguas, gerente de qualidade de água e avaliação de risco à saúde do Nacab.
Fraguas considera os motivos alegados pela mineradora para negar o fornecimento esdrúxulos, e aponta que poucos casos são resolvidos. “Somente 22 das 1.063 demandas foram resolvidas. Apesar desse trabalho que a gente faz de notificar a Vale e instituições de Justiça, o índice de resolubilidade é baixíssimo.”
O grupo atendido pelo Guaicuy e Nacab é formado por moradores que perderam não só o acesso à água potável, mas a possibilidade de cultivar alimentos e hortaliças e criar animais, reforça Campos.
“Eles deixaram de beber água do rio, de nadar, de pescar. Muitos animais abortam, animais nascem sem casco, morrem depois de beber água”, relata.
“As pessoas não querem dinheiro, querem água. Não podem esperar. Muitas foram obrigadas a sair do território. Famílias foram desestruturadas”, adiciona a advogada.
“Eu só queria ter uma vida digna”
Questionada pela DW Brasil sobre a interrupção de água aos atingidos pelo desastre de Brumadinho amparados pelas assessorias técnicas, a Vale não explicou os motivos ou detalhou os critérios adotados.
Por e-mail, a empresa disse “que qualquer questionamento sobre critérios de elegibilidade, problemas na entrega e outras questões deve ser feito diretamente em nosso canal de atendimento para a comunidade, pelo telefone: 0800 031 0831”.
Sobre a distribuição atual, a mineradora afirmou que entrega água engarrafada em cerca de 1.800 pontos (núcleos familiares) e água potável via caminhão-pipa em outros 620 pontos. “Para isso, a Vale utiliza tecnologia inédita para aumentar a confiabilidade e a rastreabilidade de todo o trabalho dos 62 caminhões-pipa, que percorrem diariamente 12,4 mil km por dia na região da bacia do Paraopeba.”
Para Lúcia, não adianta investir em tecnologia se o item básico não chega aos atingidos pelo desastre causado pelo rompimento da barragem dentro da própria mineradora.
“Queria que a Vale tivesse compaixão e olhasse para o que gente está vivendo. Eu não pedi pra isso acontecer. Eu só queria ter uma vida digna”, diz Lúcia, que afirma bater diariamente na casa de vizinhos com um balde nas mãos.
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*A pedido dos entrevistados, a reportagem usou nomes fictícios.