Desde 2020, a partir das campanhas de solidariedade, o MST já doou comida equivalente a 1000 caminhões cheios de alimentos nas periferias urbanas e rurais pelo país
Por Lays Furtado, na Página do MST
Enquanto o governo Bolsonaro ceifou mais de meio milhão de vidas durante a pandemia do Coronavírus e o ministro da economia Paulo Guedes defendeu que a população pobre deveria comer restos de comida, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) doou mais de 5 mil toneladas de alimentos e 1 milhão de marmitas no combate à pandemia da fome por todo o Brasil.
Além disso, desde 2020, por meio do trabalho de base das campanhas e brigadas solidárias nas periferias urbanas e rurais – contra o avanço do Covid-19 e da fome – foram formados(as) mais de 2 mil Agentes Populares de Saúde, que distribuíram cerca de 30 mil máscaras de proteção para população mais vulnerável, em conjunto a campanha nacional “Periferia Contra o Coronavírus”.
Ano passado, o Brasil já era apontado como o pior país na gestão da pandemia, segundo levantamento da Lowy Institute. Desde então, tem sido a partir dos movimentos, instituições e entidades populares, que a classe trabalhadora do campo e da cidade vem se organizando comunitariamente e reivindicando o direito à vida, ecoando: “Vacina no braço, comida no prato e Fora Bolsonaro”.
Por isso, o MST tem feito de cada ato de solidariedade também seu protesto contra o governo frente à uma grave crise sanitária, econômica e política, que se agrava perante as apurações de crimes de corrupção, “rachadinha” e prevaricação feitas durante a CPI do Covid-19, avalia Kelli Mafort, da Direção do MST. “As mobilizações ocorrem em meio a uma crescente, do ponto de vista das denúncias que envolvem o governo Bolsonaro. E que ajudam a gente a levantar a voz pelo fora Bolsonaro articulado para salvar vidas na pandemia, do vírus e da fome”.
Agronegócio sustenta a fome no Brasil
Mesmo frente à ausência de subsídio emergencial à produção de alimentos dos povos do campo, com os vetos presidenciais ao PL Assis de Carvalho I e enfrentando dificuldades de fomento à comercialização, com a redução de 87% de compra do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), as(os) agricultoras(os) Sem Terra continuam compartilhando os produtos da Reforma Agrária Popular pela subsistência alimentar da classe trabalhadora.
Segundo números do projeto de lei orçamentária anual, o valor para programas de segurança alimentar e nutricional este ano tiveram corte orçamentário de mais de 75% em relação aos R$ 1,12 bilhão reservados no ano passado e declarados no Portal da Transparência, mantido pela Controladoria Geral da União (CGU). Dentre as políticas públicas atendidas por esses recursos, estão a aquisição e distribuição de alimentos da agricultura familiar e a distribuição de alimentos a populações tradicionais.
Neste cenário, apesar das corporações do agronegócio sustentarem a ideia de que “alimentam o Brasil”, comemorando safras recorde de produção e lucro, com 254,1 milhões de toneladas em colheitas, atingindo R$2 trilhões do Produto Interno Bruto (PIB) do agronegócio em 2020. Neste mesmo período, todo esse valor que corresponde a 26,6% do PIB nacional, não serviu para evitar que 55,2% dos lares brasileiros, ou seja, cerca de 125 milhões de pessoas passassem fome ou não tivessem a garantia de comida na mesa das famílias brasileiras, segundo dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar em contexto do Coronavírus.
Dessa forma, a maior parte da população está de volta ao mapa da fome e convivendo com a insegurança alimentar, em meio ao desemprego recorde que atinge 14,8 milhões de brasileiras(os) e afetando principalmente as classes médias e mais pobres. Onde a falta de alimentos é mais severa em lares chefiados por mulheres, pessoas com baixa escolaridade, negras(os), na população rural e ainda pior em localidades onde há dificuldades de acesso à água. Há âmbito internacional, um estudo da Oxfam de 2020, revela que 12 mil pessoas podem morrer de fome por dia durante a pandemia.
Mapa da fome afeta mais as famílias do campo, mulheres e negras(os)
Apesar de ser no campo o local onde se produz alimentos, a falta de subsídios para famílias agricultoras refletem nos índices de insegurança alimentar presentes no Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, que aponta que a fome atinge 12% dos domicílios rurais, enquanto afeta 8,5% dos lares urbanos.
Outro levantamento feito pela Universidade Federal de Minas Gerais em conjunto com Universidade de Brasília e Universidade Livre de Berlim alerta que 27% das famílias do campo estão passando fome.
No mapa da fome, as regiões Norte e no Nordeste apresentam os índices mais preocupantes, onde atingem, respectivamente, 18,1% e 13,8% dos domicílios, enquanto menos de 7% nas demais regiões do país, superando a média de 9% referente ao índice nacional.
Além da perspectiva entre o campo, cidade, e grandes regiões, o recorte de gênero, raça e nível de escolaridade também são importantes para compreendermos onde a fome está presente no país. Pois os domicílios em que a pessoa responsável é uma mulher, de cor preta ou parda e de baixa escolaridade, apontam os piores índices de insegurança alimentar.
Dessa forma, foi estimado que 11,1% das famílias chefiadas por mulheres passam fome, e outros 15,9% enfrentam insegurança alimentar. Em lares chefiados por homens, a fome atinge 7,7% dos domicílios e outros 7,7% estão na situação de insegurança alimentar. Cerca de 10,7% dos domicílios de pretas(os) e pardas(os) convivem com a fome e em 13,7% não têm a garantia de alimentos suficientes para suas famílias. Em lares de famílias brancas esse mesmo percentual referente à insegurança alimentar é de 8,9%.
Além dos mais pobres, as famílias consideradas classe média com renda per capita (por indivíduo) superior a um salário mínimo, também foram atingidas pela insegurança alimentar, que subiu de 20,7%, em 2018, para 34,7%, em 2020.
Mais desemprego menos auxílio
Neste cenário de crise no país, as mulheres e a população negra também foram as primeiras a perderem emprego e renda durante a pandemia. O aumento do desemprego ultrapassou a margem de 14,8 milhões da população e a falta de opções de renda levou mais de 60 milhões à pobreza e quase 20 milhões a viverem em situação de miséria.
Cristiane Martins, Agente Popular de Saúde da campanha Mãos Solidárias, da qual o MST faz parte no Recife, Pernambuco, é articuladora de um dos bancos da Rede de Banco Popular de Alimentos que recebe doações em seu bairro. Ela comenta que o perfil das pessoas que recebem as doações de alimentos das ações solidárias vem sendo de pessoas que antes da pandemia tinham alguma renda para o sustento de suas famílias e hoje em dia mal conseguem alimentar seus lares:
“No caso aqui do meu bairro, ele tem sim as áreas, as comunidades que são mais afetadas. E que não têm e nunca teve uma situação financeira boa. Mas aqui precisamente, na minha região, do Chapéu do Papa, eram famílias que tinham seus empregos, que tinham sua renda, que tinham de onde tirar. E com a pandemia derrubou muita gente, entendeu? Todo mundo tinha o seu trabalhozinho, cada um vendia sua coisinha, tinham seu comércio, mas agora estão precisando demais de ajuda.” – comenta Cristiane.
Um estudo feito pelo Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Universidade de São Paulo (Made-USP), apresentado este ano, evidencia alguns dados importantes para entender o recorte de gênero e raça das desigualdades que se agravaram após a crise sanitária no país.
Em 2019, o desemprego entre pessoas brancas era de 8,7%; e de 13,5% para a população preta. No ano seguinte, essa taxa subiu para 11,5% entre brancas(os) e 17,2% para pretas(os). Entre 2019 e 2020, o corte de gênero também mostra que o desemprego atingiu mais as mulheres, respectivamente com 13,1% a 16,4%; já entre os homens foi de 9,2% a 11,9%.
Antes da pandemia, a pobreza atingia cerca de um terço da população negra e um sexto da população branca. Com a redução do Auxílio Emergencial em 2021, esses mesmos indicadores devem subir a 38% para mulheres negras, 36% para homens negros e 19% para pessoas brancas.
A taxa de extrema pobreza, antes da crise sanitária e agravamento da crise econômica, era de 9,2% entre mulheres negras, 8,9% entre homens negros, 3,5% entre mulheres brancas e 3,4% entre homens brancos. Ou seja, a extrema pobreza é quase três vezes maior entre a população negra.
E considerando a redução do benefício do auxílio em 2021, a miséria deve chegar a níveis ainda maiores, respectivamente, 12,3% entre mulheres negras, 11,6% entre homens negros, 5,6% para mulheres brancas e 5,5% para homens brancos. Com isso, negras(os) têm cerca do dobro do percentual da população vivendo em situação de miséria, comparado aos brancas(os).
*Editado por Fernanda Alcântara
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Solidariedade Sem Terra. Arte: Katira/Alex Almeida e design por Guto Palermo