Quem diria: nos próprios EUA, a ideia de que os Estados “só podem gastar o que arrecadam” – mito central da ditadura financeira – balança. Abre-se espaço para a mudança, começando por serviços públicos de excelência e Renda Básica
O ciclo virtuoso
Hoje temos 820 milhões de pessoas passando fome, quando há comida sobrando por toda parte: só de grãos o mundo produz mais de um quilo por dia por pessoa, sendo que o Brasil produz 3,5 kg, isso sem contar tubérculos, frutas, legumes etc. Não há nenhuma razão econômica ou técnica para faltar alimento para ninguém. O mundo produz, com um PIB da ordem de 85 trilhões por ano, o equivalente a 18 mil reais de bens e serviços por mês, por família de quatro pessoas. No Brasil, o PIB de 2019, 7,3 trilhões de reais, equivale a 11 mil reais por mês por família de quatro pessoas. É dizer que no mundo não faltam recursos. Nosso problema não é econômico, é de organização política e social.1
A lógica de um sistema que funcione não apresenta mistérios. Como ordem de grandeza, o bem-estar das famílias depende em 60% de dinheiro no bolso, e em 40% de acesso aos bens de consumo coletivo, a escola para os filhos, a saúde e a segurança para todos uma rua asfaltada, um córrego tratado. O dinheiro no bolso permite pagar o aluguel e a compra no supermercado, mas não se compra a delegacia, o hospital, a escola: precisamos ter acesso, são bens que funcionam melhor sob forma de salário indireto, como serviço público, gratuito e universal. Assim que assegurar uma sociedade que funcione, e o bem-estar generalizado das famílias, não apresenta mistérios em termos econômicos: trata-se de assegurar o básico para todos, por exemplo com uma renda básica universal, e o acesso aos bens de consumo coletivo, em particular as políticas sociais. Como vimos, o que o planeta hoje produz permite assegurar o básico para todos, tanto em termos de renda básica como de bens de consumo coletivo, bastando para isso reduzir moderadamente a desigualdade. O mundo é hoje suficientemente rico para começar a pensar no uso inteligente do que temos.
Reduzir a desigualdade não representa um custo, e sim um estímulo à economia. No Brasil as empresas trabalham usando cerca de 70% da sua capacidade. Um empresário escreve em “O Estado de São Paulo” que realmente “está mais barato eu contratar, mas para que vou contratar se não tenho para quem vender? ” A empresa efetivamente produtiva não precisa de discurso ideológico, de uma fada chamada “confiança”: precisa de uma população com dinheiro para ter para quem vender, e de crédito barato para poder financiar a produção. No Brasil não tem nem uma coisa nem outra. O que aqui nos interessa, é que em condições de subutilização das capacidades produtivas, mais dinheiro assegurado na base da sociedade gera consumo de massas e, portanto, demanda para as empresas, que por sua vez passam a produzir e a contratar mais. Ambos geram mais receitas para o Estado, através do imposto sobre o consumo e dos impostos sobre os processos produtivos, equilibrando a conta do Estado.
Esta lógica básica do ciclo econômico é transparente e funciona. Funcionou ao tirar os EUA da crise de 1929, com o New Deal do Roosevelt, com as políticas de Estado de Bem-estar do pós-guerra em numerosos países, e é como funciona hoje na China, na Coreia do Sul, nos países nórdicos, na Alemanha e outros, com sistemas políticos diferenciados, mas com a mesma lógica básica de equilíbrio no ciclo econômico, entre a demanda das famílias, o investimento produtivo das empresas, e o investimento público em infraestruturas e políticas sociais. O que não funciona, é precisamente quando a desigualdade trava o consumo das famílias, reduzindo por sua vez a intensidade de produção das empresas, o que gera desemprego, e todos esses fatores reduzem os recursos do Estado, aprofundando o déficit. No Brasil, em nome de combater o déficit – a boa dona de casa só gasta o que tem – quebrou-se a economia, e está-se repassando rios de dinheiro aos intermediários financeiros.
O círculo vicioso
O dinheiro do governo é o nosso dinheiro. Saber o que acontece com ele é essencial, e não é complicado. Digo isso porque tanta gente vira as costas quando aparece o primeiro cheiro de números, de tanto que disseram que é a economia é “complexa”. Aqui não tem nada de complicado. E os grupos que controlam o dinheiro preferem que fiquemos discutindo sobre as grandes prioridades sociais, caminhos da educação, da saúde ou outras políticas em termos gerais, mas não sobre o dinheiro que é essencial para assegurá-las. Trata de dinheiro sim, é o que permite ter serviços de saúde, educação, segurança, cidades sustentáveis, políticas que fazem sentido. Os volumes são grandes, mas a conta é simples, ainda que seja apresentada usando termos que os não especialistas têm dificuldade em entender. Aqui vai a decodificação.
Seguir o dinheiro (follow the money, dizem os americanos) é muito esclarecedor, faz entender a política, as grandes opções, muito mais do que ouvir discursos políticos. A tabela abaixo, nas três primeiras colunas, é uma simples transcrição da tabela apresentada pelo Tesouro Nacional. São dados oficiais. Os números ajudam muito a desmistificar a farsa que justificou o golpe de 2016, e os caminhos que temos pela frente.
Extraímos os dados de 2003 a 2019, para se entender a evolução das contas públicas, porque a comparação no tempo é que torna as coisas claras. E acrescentamos uma coluna sobre a variação do PIB, dados do IBGE e não do Tesouro, para efeitos de acompanhamento. Peço ao leitor que acompanhe com atenção, não precisa ser economista: esses números são a nossa vida.
Mantivemos aqui a numeração e títulos da tabela do Tesouro. Para deixar claro, a primeira coluna, IX Resultado Primário do Governo Central, é o resultado da conta do governo nas ações próprias : o quanto arrecadou, e o quanto gastou com o custo da máquina, investimentos em educação, saúde, infraestruturas etc. Na segunda coluna, X Juros Nominais, são os juros transferidos para os que aplicaram dinheiro em títulos da dívida pública, representam a parte dos nossos impostos que, em vez de financiarem justamente educação, segurança etc., é transformada em rendimentos para o setor privado, essencialmente bancos, seguradoras, os chamados “investidores”. A terceira coluna, XI Resultado Nominal do Governo é simplesmente a soma das duas primeiras, e se chama resultado nominal, mas poderia ser chamada de resultado final. É o número que aparece nos noticiários, é aí que se mede realmente o tamanho do déficit do setor público.
Cada coluna mostra os valores, em milhões de reais, e ao lado quanto esses valores representam em porcentagem do PIB. A última coluna, variação do PIB, foi acrescentada para termos pontos de referência em termos de crescimento, recessão ou estagnação da economia em geral. No passo a passo as contas se tornarão claras.
Para facilitar a leitura, podemos tomar o ano de 2013, último ano do que o Banco Mundial chamou de “A Década Dourada da economia brasileira” (21003-2013). É o ano da virada do período distributivo para o período da austeridade, e uma leitura possível é pegar o ano 2013 na horizontal. Na primeira coluna, IX Resultado Primário do Governo Central, vemos o resultado das contas públicas antes do pagamento de juros sobre a dívida, e constatamos que houve um superávit de 75 bilhões, 1,4% do PIB. Ou seja, entre as receitas do Estado e os investimentos públicos e funcionamento da administração, não houve déficit. Na segunda coluna, X Juros Nominais, vemos que foram pagos 185 bilhões de juros, essencialmente para bancos e outros interesses financeiros, um dreno de 3,5% do PIB. Vemos que é aí que se gerou o déficit. Na terceira coluna, XI Resultado Nominal do Governo Central, temos o resultado: os 75 positivos da coluna IX menos os 185.8 negativos da coluna X nos levam ao resultado negativo de 110 bilhões, um déficit equivalente a 2,1% do PIB. É um déficit moderado, na Europa um déficit até 3% do PIB é considerado tolerável. Essa é a conta básica que o governo faz para cada ano.
O importante para nós aqui é que o déficit não foi gerado por investimentos em saúde, educação, infraestruturas e semelhantes, ou seja, a economia real do governo (coluna IX), mas pelo pagamento de juros sobre a dívida, transferência de boa parte dos nossos impostos para os grupos financeiros e rentistas em geral. A última coluna, variação do PIB, mostra um crescimento ainda significativo em 2013, 3%. Se você comparar com as contas da sua família, significaria que no funcionamento da sua casa você gastou menos do que recebeu, mas o dinheiro que sobrou foi para pagar os juros sobre a dívida, e aí entrou no vermelho. E os juros que você não conseguiu pagar aumentam a dívida.
Mais interessante ainda, no entanto, é fazer a leitura comparando os anos, na vertical. Veja-se na primeira coluna, das atividades da economia real do governo, que de 2003 a 2013 não há nenhum ano deficitário, nem mesmo no ano da crise de 2008. Em 2014, com o golpe já em curso, inclusive com o impacto da Lava jato que monopoliza o debate político e a paralisa de gigantes como a Petrobrás e a Odebrecht – ainda sob governo formal da Dilma, mas com políticas em fase de inversão – aparece um déficit muito limitado de -20 bilhões. Mas de 2015 em diante, já com os banqueiros no controle, o déficit nesta primeira coluna explode para 116 bilhões em 2015, e 159 bilhões em 2016, e se mantém no vermelho inclusive no ano de 2019, antes da pandemia. O que é estranho pois estavam “economizando”, travaram as políticas sociais com a lei do teto de gastos, e segundo a propaganda vieram para consertar o déficit. A contradição é óbvia. Na realidade, como contraíram a economia, entrou menos dinheiro nos cofres do Estado. Ferrar as famílias e as empresas produtivas também ferra o Estado. Não é boa expressão em ciências econômicas? Bem, representa com precisão a situação: estamos ferrados.
Mas o déficit realmente forte encontra-se na coluna dos Juros Nominais, que são recursos do governo transferidos para grupos financeiros. Todos os anos são deficitários, de 2003 a 2019. Lembremos que esta transferência a título da dívida pública vem de 1996 quando se criou a taxa Selic, pagando na época de Fernando Henrique Cardoso uma média superior a 20% ao ano, quando no resto do mundo os juros sobre a dívida pública são raramente superiores a 1% ao ano. Foi um presente para o sistema financeiro, apropriação de parte dos nossos impostos, acompanhado de outro presente que foi isentar os lucros assim gerados do pagamento de impostos (lei de 1995, isenção de impostos sobre lucros e dividendos distribuídos). A leitura da coluna mostra que os governos Lula e Dilma sempre pagaram este pedágio aos rentistas, mas também que este vazamento dos recursos públicos para o setor financeiro aumenta radicalmente a partir de 2015. Isso se dá às custas, evidentemente, dos investimentos no SUS, nas infraestruturas e em outros investimentos públicos. O dinheiro não pode servir simultaneamente para investimentos sociais e rentismo financeiro.
Para ter ordens de grandeza, é bom lembrar que o Bolsa Família representa uma transferência da ordem de 30 bilhões, enquanto em 2019, como se vê na tabela, foram transferidos 310 bilhões para os rentistas, 10 vezes mais. Ultimamente, a taxa Selic foi reduzida, mas como o estoque da dívida pública aumentou muito, as transferências continuam muito elevadas. O que quebrou as contas públicas foi claramente a transferência do dinheiro dos nossos impostos para os intermediários financeiros, que aliás já ganham rios de dinheiro com a agiotagem direta sobre as famílias e as empresas.
Tivemos a lei do teto de gastos, que limitou o acesso das famílias a bens públicos, mas nenhuma “lei de teto de juros”. O ano de 2020 não aparece na tabela, mas o fato é que com a transferência de 1,2 trilhão de reais, a maior parte para bancos, o dreno financeiro dos recursos públicos continua vigoroso. Voltaremos a isso mais adiante. O resultado que aparece na terceira coluna, somando as duas primeiras, é igualmente eloquente. O déficit muda radicalmente de patamar, quando se passa da fase redistributiva da economia, entre 2003 e 2013, para a fase concentradora (“austeridade”) de 2014 em diante. Em 2019, com tanta propaganda sobre a redução do déficit, tivemos um rombo de praticamente 400 bilhões, isso sem falar dos 513 bilhões de 2015.
Claramente, os banqueiros, Temer e Guedes não vieram consertar, vieram fazer uma farra financeira, aumentando radicalmente a apropriação privada de recursos públicos. Lembrando que quem faz aplicações financeiras com taxa Selic é essencialmente a classe média alta, e em particular as grandes fortunas e intermediários financeiros. Como são ganhos sem contrapartida produtiva, tecnicamente constituem rentismo, diferentemente dos lucros, por exemplo, de um empresário produtor de sapatos, hoje sobrevivente da era produtiva do capitalismo. Lucros sobre a produção, e rentismo especulativo, constituem dinâmicas diferentes.
Acrescentamos a última coluna, que é de outra fonte, do IBGE, com os dados da variação do PIB, porque é muito útil comparar o desempenho das contas públicas com o crescimento da economia. A taxa média de crescimento dos anos 2003 a 2013, apesar da crise de 2008, foi de 3,8%, muito elevada. E o resultado foi conseguido apesar das transferências volumosas para os bancos. A média dos anos 2014 a 2019 foi de -0,4%, praticamente meio por cento negativo, em que não se assegurou nem as políticas públicas (reduzidas pela lei do teto de gastos e outras medidas recessivas) nem o equilíbrio das contas. Estamos entrando no oitavo ano de paralisia, com muita demagogia, contas absurdas, e um atolamento generalizado da economia, e uso da pandemia como justificativa.
A explicação não é complexa: quando a partir de 2003 se procedeu à recuperação do salário mínimo, e ao desenvolvimento do conjunto das políticas sociais, melhorou muito a capacidade de compra das famílias. Com a demanda estimulada, o que se chamou na época de “demanda de massa”, as empresas tinham para quem vender, expandindo a produção e reduzindo consequentemente o desemprego, que caiu de 12% em 2002 para cerca de 5% na fase final da era redistributiva. Tanto o consumo mais elevado como a produção e o emprego dinamizados geraram mais recursos para o Estado, que pôde em consequência financiar tanto as políticas sociais como as infraestruturas, sem gerar déficit. O dinheiro na base tem efeitos multiplicadores, e isso explica as contas muito mais equilibradas na fase distributiva.
É importante notar que as políticas de expansão econômica da fase redistributiva foram fortemente limitadas pelos juros tanto da taxa Selic como do crédito privado. O governo Lula herdou a liquidação do artigo 192º da Constituição, que estipulava um teto de juros reais de 12% ao ano: a agiotagem ficou legalmente liberada. (PEC de 1999 transformada em EC em 2003). 2 Foi arrastando este peso financeiro nos pés que se conseguiu um dos avanços econômicos e sociais mais significativos que o Brasil já conheceu.
A lógica do sistema financeiro como hoje funciona não é de estar a serviço da economia, e sim de enriquecer os seus acionistas e aplicadores financeiros. O dreno que vimos aqui, envolvendo o dinheiro dos nossos impostos, não se limitou ao setor público. Uma referência simples é o endividamento das famílias. Em 2003 a dívida das famílias representava menos de 20% da sua renda, em 2012 representava mais de 40%. As taxas de juros no crédito livre nos bancos, em abril de 2020, atingiram 96% para pessoa física e 44% para pessoa jurídica (ANEFAC, 2020). Na Europa ambas são inferiores a 5% ao ano. Atualmente, temos 61 milhões de adultos “negativados”, atolados em dívidas (SPC, 2020). Com dívidas crescentes, e pagando juros de agiotas, as famílias passaram a consumir menos, fragilizando por sua vez a produção das empresas.
Resumindo, comparando as fases distributiva, de 2003 a 2013, e a fase da austeridade, de 2014 a 2019, e calculando as médias de cada fase, temos o seguinte: Na primeira coluna (IX), em termos de políticas próprias de governo (administração, saúde, educação etc.) na fase distributiva tivemos mais políticas implementadas, e ainda sobraram em média 64 bilhões de reais ao ano. Na fase da “austeridade”, de 2014 a 2019, tivemos um déficit médio de 103 bilhões ao ano, isto que as políticas sociais foram reduzidas.
Em termos de transferência de dinheiro público para os bancos e grandes aplicadores financeiros (X), na fase distributiva foram transferidos em média 130 bilhões ao ano, enquanto na fase da austeridade foram em média 321 bilhões de reais. Ou seja, durante as duas fases os governos pagaram pedágio para o sistema financeiro, mas na fase da “austeridade” as transferências foram multiplicadas por 2,5.
Em termos de resultado final das contas (XI), somando as atividades do governo e o pagamento de juros, temos, na fase distributiva, um déficit médio de 67 bilhões, essencialmente devido aos juros para o sistema financeiro, e na fase da austeridade o déficit médio anual sobe para 424 bilhões, ou seja, o déficit foi multiplicado por 6. Lembremos que o déficit foi a grande narrativa para o golpe de 2016: a boa dona de casa só gasta o que tem.
E a média anual de crescimento do PIB é, durante a fase distributiva de 2003 a 2013, 3,8%, uma dinâmica muito forte, isso que inclui o impacto da crise mundial de 2008, e com uma forte progressão das políticas sociais e de infraestruturas. Na fase da “austeridade”, de 2014 a 2019, temos um crescimento do PIB negativo da ordem de -0,4%, isso incluindo os dois anos recessivos em 2015 e 2016, e uma estagnação da ordem de 1,1% nos anos seguintes. Como a população cresce cerca de 0,8% ao ano, 1,1% de crescimento do PIB nos últimos três anos, de 2017 a 2019, em termos de resultado para a população, o chamado PIB per capita, temos 0,3%, ou seja, estagnação. Montou-se uma farsa, com argumentos de como tudo ia mal e passou a funcionar bem na fase da “austeridade”. A cada ano que passa, nos informam que já estamos nos recuperando, e que no ano seguinte as medidas de austeridade mostrarão os seus efeitos. Repetindo, é o oitavo ano de economia parada.
Não há “volta ao normal”
Dizer que as coisas vão voltar ao normal é supor que a “normalidade” antes da pandemia funcionava. Na realidade, a partir de 2014 não funcionou nem em termos econômicos, nem em termos sociais ou ambientais. É um sistema estruturalmente deformado, como constatamos nas contas entre 2014 e 2019. Na fase da pandemia as contas ainda são inseguras, em particular porque foram liberados mais de 1,2 trilhão de reais em 2020, cerca de 16% do PIB, para enfrentar as dificuldades surgidas, recursos essencialmente apropriados pelos bancos. A queda da economia em 2020 foi de 4,1% – o pior resultado de uma série estatística do IBGE iniciada em 1996. O ano de 2021 ainda não permite previsões, já que dependemos muito do progresso das vacinas e de outras medidas. Mas sabemos que a massa de dinheiro público repassada para os grupos financeiros, seja sob forma de juros sobre a dívida pública, seja sob forma de repasses diretos ligados à pandemia, não pode ser simultaneamente investida em políticas sociais e ambientais.
As discussões na mídia comercial e no governo estão centradas na falta de recursos. Isso gera uma aparência de responsabilidade, mas na realidade esconde o principal, que é para onde vai o dinheiro. Os 310 bilhões de reais transferidos em 2019 para bancos e outros grupos financeiros sob forma de juros sobre a dívida pública, e já com a Selic baixa, continuam drenando a capacidade financeira do Estado. Os financiamentos extraordinários de 1,2 trilhão de reais foram apenas em pequena parte para ajudar as famílias, o essencial foi para bancos, onde segundo Paulo Guedes ficou “empoçado”. Os bancos se defendem dizendo que precisam ser responsáveis, e que a situação é de risco. No essencial, tratou-se de um presente para os bancos.
Mas o dreno dos recursos financeiros vai muito além da apropriação do dinheiro dos nossos impostos: todas as famílias e empresas são submetidas a taxas de juros que constituem agiotagem (usura) mal encoberta pela apresentação dos juros “ao mês”, com mensalidades que “cabem no bolso”. O detalhe desta apropriação do dinheiro do público sem a contrapartida produtiva correspondente foi apresentado no livro A Era do Capital Improdutivo3. Como ordem de grandeza, os bancos e outros intermediários financeiros (o comércio a prazo inclusive) se apropriam, por meio de juros extorsivos e de diversas taxas e tarifas sobre o setor privado, do equivalente a cerca de 15% do PIB.
A extração de recursos das famílias e das empresas por taxas de juros elevadas é uma característica brasileira: nenhum país no mundo usa o nível de agiotagem que praticam os bancos ou as grandes redes comerciais no Brasil. Isso fragiliza a capacidade de compra das famílias, e também a capacidades de financiamento das empresas, tornando ainda mais frágil, como vimos, o fluxo de impostos para o Estado. É o conjunto que é paralisado.
Um terceiro eixo de financeirização, além da dívida pública e do endividamento do setor privado, é o pagamento de dividendos elevados para aplicadores financeiros, simplesmente. O exemplo da Samarco é ilustrativo, e dá uma boa medida de como funciona o sistema nos grandes grupos. A Samarco exporta minério de ferro que não precisou produzir, e os lucros são muito elevados. Não teria dinheiro para financiar barragens sólidas, conhecendo os riscos? O Brasil tem excelentes engenheiros, construímos Itaipu. Mas a pressão dos aplicadores financeiros, donos das ações, tanto na Vale como no Bradesco e na Billiton, é suficientemente forte para que a empresa desconsidere os riscos. A remuneração dos executivos da empresa é aprovada pelos acionistas, e gera-se uma solidariedade perversa na extração do máximo de dividendos, mesmo prejudicando o investimento produtivo, preocupações ambientais e sociais. O processo decisório é simplesmente perverso, e gera uma desresponsabilização generalizada nas corporações.
O poder dos grupos financeiros
A situação se agravou de maneira radical durante a pandemia. Em 2020, segundo Washington Post, “a pandemia levou a sofrimentos indescritíveis para muitos americanos, com dezenas de milhões de famílias relatando que não tem o suficiente para comer, e milhões mais sem trabalho devido à redução de empregos e lockdowns. Os mais ricos da América, por outro lado, tiveram um ano bem diferente: os bilionários como classe acrescentaram cerca de US$ 1 trilhão às suas fortunas desde que começou a pandemia. ”4 Os 651 bilionários hoje têm o dobro de riqueza acumulada do que têm 165 milhões de pessoas, a metade mais pobre do país.5 Como ponto de referência, o PIB do Brasil em 2019 foi de US$1,5 trilhões.
No Brasil, em 4 meses, entre 18 de março e 12 de julho, os 42 bilionários em dólares aumentaram as suas fortunas em US$ 34 bilhões, cerca de 180 bilhões de reais. Isso representa um aumento de fortunas pessoais equivalentes a 6 anos de Bolsa Família, para 42 pessoas, em quatro meses, com a economia em queda. E são montantes que não estão sujeitos a impostos, graças à lei de 1995 que isenta lucros e dividendos distribuídos. O mecanismo de apropriação é baseado essencialmente em juros e dividendos. O fato dos bilionários aumentarem suas fortunas e as bolsas irem tão bem, quando justamente a economia está em queda, mostra que se trata de apropriação improdutiva. Não é investimento produtivo, é dreno financeiro. A economia brasileira vaza por todos os lados.
A Oxfam, baseada em estudos da Forbes, que entende tudo de bilionários, resume a transformação que vivemos no Brasil: “Estima-se que um terço da riqueza dos bilionários tenha origem em heranças. Esses níveis de herança criaram uma nova aristocracia que vem minando a democracia. Uma vez garantidas, as fortunas dos super-ricos ganham um impulso próprio: as pessoas mais ricas podem simplesmente sentar e observar o crescimento da sua riqueza. Um aumento que contou com a ajuda de contadores muito bem remunerados, que lhes garantiram um retorno médio anual de 7,4% sobre sua riqueza nos últimos dez anos. ” 6 Uma pessoa que tenha um bilhão, apenas aplicado a 7,4%, aumenta a sua fortuna em 203 mil reais ao dia, no chamado “efeito bola de neve” financeiro. Hoje fazer aplicações financeiras rende mais do que produzir. O capitalismo está mudando.
A publicação Valor Econômico: Grandes Grupos apresenta a evolução dos 200 maiores grupos econômicos do país. Baseado em dados de 2019, portanto antes do impacto da pandemia, o estudo constata que “dos quatro setores analisados, apenas o setor de Finanças registrou aumento no lucro líquido (27,1%). Comércio (-6,8%), Indústria (-7,8%) e Serviços (-34,8%) caminharam para trás. ” Trata-se não do conjunto da economia, mas dos grandes grupos, onde as finanças predominam. O estudo ressalta “o bom desempenho da área financeira, sobretudo bancos, cuja fatia no lucro líquido consolidado dos 200 maiores aumentou de 37,7% para 48,9% ”. (p.12) 7 Traduzindo, o que rende no Brasil é ser banco, e de preferência grande. Que a praticamente a metade dos lucros vá para grupos financeiros que apenas intermedeiam o dinheiro dos outros, sem produzir nada, é simplesmente espantoso. Ninguém come dinheiro, nem letras.
É essencial entender que não se trata de fortunas que resultam de atividades produtivas dos seus detentores. Trata-se, como o qualificam Marjorie Kelly e Ted Howard, de “capitalismo extrativo”. Outros como Zygmunt Bauman, o chamam de “capitalismo parasitário”, Gar Alperovitz se refere à “apropriação indébita”. O essencial está no fato que se trata de acumulação de patrimônio improdutivo, sob forma de consumo de luxo, mas sobretudo de imobilização de capital para que “renda”, no sentido de rentismo improdutivo. Um produtor de alimentos, por exemplo, pode também enriquecer, mas gera produtos úteis à sociedade, torna mais pessoas produtivas com os empregos criados, e paga impostos, o que permite que o Estado por sua vez crie as infraestruturas e assegure as políticas sociais necessárias à sociedade. Os bilionários de hoje são essencialmente improdutivos. É o próprio processo de acumulação de capital que se desloca.8
Insistimos aqui no processo de esterilização do dinheiro, porque as finanças não constituem um “setor” da economia, como agricultura ou indústria, constituem atividades meio. O dinheiro em si não tem nenhum valor, podemos imprimir dinheiro e o país não ficará mais rico. Mas quem o controla define as prioridades: será aplicado para render mais juros e dividendos, ou será investido em produção industrial, educação ou saúde? Se a China, o Vietnã e outros países têm um desenvolvimento dinâmico, é porque controlam o uso do dinheiro, canalizando-o para investimentos produtivos, infraestruturas e políticas sociais. O dinheiro não pode ao mesmo tempo enriquecer especuladores e financiar o desenvolvimento. Não haverá gestão social competente sem os recursos correspondentes. E em particular, com o poder financeiro dos grandes grupos, o fato é que sem uma mudança de comportamento das próprias corporações, a dinâmica dificilmente poderá mudar.
As pessoas tendem a interpretar as contas segundo quem querem culpar. Agora, provavelmente, o governo buscará culpar o vírus. Mas o essencial para nós, olhando com recuo para as quase duas décadas, é que com a inversão das prioridades, da política distributiva para a política de austeridade, e isso envolve inclusive a fase final do governo Dilma, as coisas desandaram para a economia, para a população, e para o funcionamento da democracia, enquanto se tornavam radicalmente favoráveis aos que vivem do sistema financeiro, que desempenha no Brasil uma função de dreno especulativo.
A massa de dinheiro que se transfere para o mundo dos rentistas paralisou a economia. A nós aqui não interessa a quem culpar – isso faz parte das narrativas – e sim o que funciona. Claramente, e em particular com esta pandemia, temos de voltar aos processos redistributivos, porque funcionam, e porque somos um dos países mais desiguais do planeta. A economia que funciona é a que é direcionada para as prioridades e o bem-estar das famílias. Temos de voltar ao bom-senso.
Os desafios do desenvolvimento sustentável
O tema é amplamente pesquisado internacionalmente, em particular por cientistas como Marjorie Kelly, Joseph Stiglitz, Michael Hudson, Ann Pettifor, Thomas Piketty, Mariana Mazzucato e inúmeros outros. E a pressão, frente aos desastres planetários, tem se manifestado inclusive nas próprias corporações. Em 2019, 181 das maiores corporações norte-americanas assinaram uma declaração de grande repercussão, se comprometendo a levar doravante em conta os impactos sociais e ambientais das suas atividades, indo além da priorização dos dividendos aos acionistas. Um compromisso semelhante foi assinado por 130 das maiores corporações financeiras.9 Não se espera transformações radicais, pois o greenwashing é tradicional, mas para fazerem tais declarações de compromisso, as corporações estão sentindo a pressão de tantos meios que começam a ver o comportamento corporativo como criminoso, ou no mínimo inadmissível.
A maior parte das corporações do mundo hoje estão submetidas a gigantescas multas por comportamento irresponsável, fraudulento ou criminoso. A Volkswagen não sabia que morrem milhões em consequência das partículas emitidas por veículos? A Lehman Brothers não sabia o que é alavancagem, emprestando dinheiro que não tinha? A Enron não sabia que suas contas eram falsificadas? A GSK não sabia que o Wellbutrin não é pílula de emagrecimento? A Deutsche Bank não sabia das fraudes financeiras que praticava? A Wells Fargo não sabia que tinha criado mais de 3 milhões contas fictícias, fraude generalizada? Todas elas já estão pagando multas bilionárias. Não estamos falando de situações excepcionais, mas da norma: qualquer marca de grande corporação colocado na internet junto com a palavra “settlements”, ou seja, acordos judiciais, abre a ficha corrida de praticamente todas as grandes corporações. A deformação é sistêmica. O que na literatura econômica americana era mencionado como “too big to fail”, ou seja, empresas que não vão quebrar porque os governos vão ter de cobrir os seus desmandos, virou hoje “too big to jail”. O próprio Joseph Stiglitz, frente ao tamanho dos desmandos que se evidenciaram na crise de 2008, exclama “como foi que ninguém foi preso”?
As condenações são seguidas de amplas campanhas de relações públicas, operações de cosmética que permitem dizer que “a empresa é saudável, houve um deslize pontual, os responsáveis foram afastados” e continuamos no caminho de sempre. Isso simplesmente não funciona. Uma razão se deve à própria dimensão das corporações. Os ativos da Black Rock são da ordem de 8,7 trilhões de dólares, seis vezes o PIB do Brasil, que é a nona potência econômica do mundo. A Black Rock não produz, basicamente gere finanças, commodities, derivativos. Os SIFIs (Systemically Important Financial Institutions) resgatadas pelos governos na crise de 2008, são 28 bancos cujos ativos são todos superiores ao PIB do Brasil. O poder financeiro constitui hoje poder político. São atividades-meio, custos para a sociedade, um dreno generalizado. O Roosevelt Institute calcula que apenas 10% do que extraem volta para a economia real. 10
Uma pessoa que faz uma aplicação financeira, por exemplo comprando ações de uma empresa, terá a impressão, e isso lhe será dito, de estar “investindo”. Mas se trata de uma aplicação, a pessoa não produziu nada, apenas transferiu o dinheiro que tinha para “render” com papéis financeiros, hoje apenas anotações nos computadores do intermediário. Mas ao ter aplicado em ações de uma empresa que efetivamente gera produtos, o “investidor” pensará estar estimulando atividades produtivas. Indiretamente, seria produtivo. O raciocínio é correto, enquanto o aumento da produção e dos lucros da empresa produtiva que receber o dinheiro for superior ao que terá de pagar em dividendos. No que acontece na realidade, e Marjorie Kelly já apresentou isso há anos, é que os dividendos pagos sobre as ações são administrados por gigantes financeiros, os institutional investors, que extraem mais do que financiam. Isso permite que as grandes aplicações financeiras rendam no mundo entre 7% e 9%, enquanto o avanço da economia real, o PIB, mal ultrapassa 2,5% ao ano.
De forma semelhante, ao oferecer um crédito a uma empresa, o banco pode dizer que está “financiando” atividades produtivas, portanto dinamizando a economia. No entanto, se a taxa de juros que cobra da empresa for superior ao que a empresa possa ganhar em termos de lucro sobre a produção, o resultado será uma empresa que vai passar anos renegociando a dívida, sangrada no longo prazo, sem capacidade de reinvestir. A desindustrialização não é apenas um caso de falta de mercado. O sistema de “superdividendos” que hoje impera trava os investimentos produtivos, em proveito de rendimentos improdutivos. Tecnicamente, tanto no caso dos dividendos como dos juros, trata-se de uma descapitalização da economia. Thomas Piketty apresentou isso em detalhe no seu Capital no Século XXI. É a chamada financeirização.
Neste sentido, quando buscamos uma economia que funcione, temos de resgatar o sistema de remuneração, ou seja, um mínimo de proporcionalidade entre a remuneração dos agentes econômicos e o seu aporte produtivo. Tal como funciona hoje, é um sistema que não só não contribui, mas trava o desenvolvimento ao generalizar o rentismo. O problema de termos hoje no mundo 1% de ricos que têm mais riqueza acumulada do que os 99% seguintes não é de termos inveja do seu “sucesso”, mas desse sucesso se basear na extração de riqueza produzida por outros.
Quando a British Petroleum (BP) comunicou aos acionistas financeiros que teria de reduzir os dividendos para poder pagar as multas pelo desastre no Golfo do México, os grupos gestores de ações ameaçaram o conselho de administração da corporação, forçando-o a vender campos de petróleo, portanto a descapitalizar a empresa, mas não reduzir os dividendos. Esses últimos, pagos, evidentemente, a agentes financeiros que não produzem.
Antigamente, antes do chamado neoliberalismo, o banco oferecia crédito, ou intermediava venda de ações, para fomentar a economia. Hoje, o sistema extrai. Basta comparar, como o fez Piketty, quanto rende o investimento produtivo e quanto rende a intermediação financeira. Os americanos resumem com uma frase simples: “The tail is waving the dog”, a rabo abana o cachorro. Isso permite entender que hoje, com a economia real em crise, as fortunas financeiras estejam crescendo de maneira dramática e as bolsas estejam bombando. Quando se extrai muito dinheiro dos setores produtivos, trava-se a economia, mas gera-se retornos para os grupos financeiros. Henry Ford não era flor que se cheire, mas produzia. Hoje os acionistas da Ford têm outras opções.
Os desafios que hoje enfrentamos não consistem apenas em melhorar um pouco o comportamento corporativo, controlar a corrupção, repassar uma ajuda aos pobres. As regras do jogo têm de mudar. Não à toa o Roosevelt Institute publicou o relatório New Rules for the 21st Century, novas regras para o século 21.11
O novo pacto global sustentável
Estamos frente a esse desafio: construir um novo pacto global. Em inglês, o nome que se generalizou é Global Green New Deal, palavra de ordem que aparece em relatórios da ONU, e numerosos títulos de livros e de conferências que apresentam como denominador comum o fato de propor um sistema que funcione. Ann Pettifor nos oferece uma boa sistematização12.
A construção das ideias do pacto se desenvolveu essencialmente nos Estados Unidos e na Inglaterra, com pequenas variações. Um desafio central é o fato que o sistema financeiro opera em escala global, reduzindo drasticamente o espaço das iniciativas nacionais. “A globalização financeira teve sucesso nos seus objetivos justamente porque a regulação democrática não consegue funcionar em escala global. Os mercados que operam na estratosfera financeira não podem ser controlados (held to account) por cidadãos, mesmo quando eles efetivamente governam a economia de uma nação (69).”
Aqui as propostas vão no sentido de um resgate da nação, e dos sistemas colaborativos: “no futuro, as nações continuarão a compartilhar e acordar metas de carbono, ideias, conhecimento, habilidades, hospitalidade e regras regulatórias e acordos. Mas um princípio chave da economia do Green New Deal é seguramente que os países e os seus povos serão tão autossuficientes como possível” (75). E a orientação tem como pré-condição assegurar o básico para todos: “As necessidades básicas (basic needs) constituem, portanto, precondições universais para a participação efetiva em qualquer forma de vida social” (65). Trata-se aqui, além da renda básica, de assegurar o acesso às políticas públicas, como saúde, educação, segurança e semelhantes. “Os serviços públicos constituem um veículo poderoso de redistribuição. De acordo com a Oxfam, asseguram aos mais pobres o equivalente de 76% da sua renda pós-tributação” (102).
Um ponto chave que está se tornando cada vez mais claro, é que as contas públicas não se equilibram reduzindo a dimensão do Estado e as políticas sociais, mas usando o Estado para dinamizar as atividades econômicas e sociais, que por sua vez geram receitas para o Estado. “Os investimentos públicos fornecerão os bens e serviços que a sociedade e o ecossistema precisam, e ao estimular tanto o setor privado como o setor público se gera a renda necessária para financiar essa transformação” (105). Pettifor insiste nesta visão que hoje se torna mais evidente com a paralisia econômica que resulta das políticas de “austeridade”: o investimento e o emprego são os que expandem os recursos para financiar o desenvolvimento.
Isso envolve o controle dos juros, de forma a não gerar um endividamento cumulativo: trata-se de “regular o sistema bancário privado, e administrar as taxas de juros no conjunto do espectro de empréstimos” (104). Os bancos centrais terão de “assegurar que o crédito seja direcionado para atividades produtivas e que geram renda, e não especulação, e mantendo os juros baixos” (136). Para as empresas funcionarem, os juros têm de ser menores do que os lucros obtidos. Os juros demasiado altos “levam as empresas a extrair mais valor agregado da sua força de trabalho, do seu estoque de capital e ultimamente do ecossistema”. Isso envolve por sua vez que os recursos dos bancos centrais sejam concedidos “às empresas ativas na economia real” (138).
Este novo pacto social implica, portanto, uma visão de conjunto, reorientando a economia para o bem-estar da sociedade e a sustentabilidade ambiental. “Se formos empreender os desafios ambiciosos do GND (Green New Deal) – educação e saúde para todos e uma economia baseada na energia renovável e transporte público sustentável – então teremos de levantar grande quantidade de dinheiro para investir nesses setores, especificamente em projetos que criam atividade econômica e especialmente empregos.
Ao gastar e investir em empregos, os governos irão gerar receita a partir de impostos, reduzir os custos sociais e inclusive administrar melhor a dívida pública” (131). Uma condição básica, portanto, é “regular e subordinar o setor financeiro globalizado aos interesses da sociedade como um todo” (161).
Em termos econômicos, não é nada revolucionário, é bom-senso organizado: “Num processo circular que mantém a estabilidade e o equilíbrio, as receitas tributárias aumentam em consequência das iniciativas do banco central e dos bancos comerciais, com investimentos na atividade econômica, em particular no emprego” (147). De forma geral, essa visão do Green New Deal, de ir além de um elenco das nossas necessidades, para apresentar um processo que funcione simultaneamente nas suas dimensões econômicas, sociais e ambientais, ajuda na construção de novos rumos, tarefa cada vez mais urgente.
Voltamos ao paradoxo básico: temos mais que dinheiro e produtos suficientes para assegurar a todos uma vida digna e confortável, com pouco que se reduza a desigualdade. Temos todos os sistemas de informação necessários, sabemos onde estão os problemas mais dramáticos, nadamos em estatísticas e relatórios. Temos as tecnologias, os meios de comunicação e transporte, sabemos como resolver os problemas. E temos gigantes corporativos cheios de diplomados que estão levando o planeta para um desastre em termos ambientais, sociais e econômicos. O nosso planeta está maduro para um reset global. Não se trata de um sonho, trata-se de evitar o pesadelo.
1 A organização Le Brésil Résiste publica uma excelente sistematização dos dramas econômicos e sociais do Brasil, disponível em https://lebresilresiste.org/wp-content/uploads/2021/01/2020-BAROMETRE-Coalition-Solidarite-Bresil.pdf ; no site da organização, www.lebresilresiste.org o documento de 2020 está em francês, e o da edição anterior em português.
2 Hermes Zaneti descreve com precisão, no livro O Complô, a batalha dos bancos para derrubar o artigo 192º da Constituição, veja-se em particular as páginas 157 e seguintes.
3 L. Dowbor – A Era do Capital Improdutivo – Ver em particular o capítulo 12 – https://dowbor.org/2017/06/l-dowbor-a-era-do-capital-improdutivo-outras-palavras-autonomia-literaria-sao-paulo-2017-316-p.html/9
4 Christopher Ingraham, Washington Post, 1 de janeiro de 2021, https://www.washingtonpost.com/business/2021/01/01/bezos-musk-wealthpandemic/?
5 Chuck Collins, Billionaire wealth, December 9, 2020 – https://inequality.org/great-divide/updates-
billionaire-pandemic/
6 Oxfam, Janeiro de 2020 – Tempo de Cuidar, página 7 – https://rdstation-static.s3.amazonaws.com/cms/files/115321/1579272776200120_Tempo_de_Cuidar_PT-BR_sumario_executivo.pdf
7 Valor Econômico: Grandes Grupos – dezembro de 2020, Ano 19, Nº 19, www.valor.globo.com
8 O capital financeiro constitui essencialmente um mecanismo de concentração de recursos entre os mais ricos. Nos Estados unidos, 88,1% das ações e papéis que rendem dividendos estão nas mãos dos 10% mais ricos. – https://www.visualcapitalist.com/5-undeniable-long-term-trends-shaping-societys-future/
9 A declaração, assinadas pelos presidentes de empresas como Amazon, Apple etc. no quadro do Business Round Table de 6 de setembro de 2019, compromete as corporações a “dar suporte às comunidades onde trabalhamos. Respeitamos as pessoas nas nossas comunidades e protegemos o meio ambiente ao adotar práticas sustentáveis em todas as nossas atividades. ” Ver o documento completo em https://dowbor.org/2019/10/ladislau-dowbor-a-economia-desgovernada-novos-paradigmas-14-de-outubro-de-2019.html/12
10 Epstein e Montecino – The High Cost of High Finance – https://dowbor.org/2016/09/ladislau-dowbor-o-alto-custo-do-sistema-financeiro-resenhaartigo.html
11 New Rules for the 21st Century, https://dowbor.org/2019/04/roosevelt-institute-new-rules-for-the-21st-century-2019-77p.html/
12 Ver o pequeno livro de Ann Pettifor, The case for the green new deal, em https://dowbor.org/2020/03/ann-pettifor-the-case-for-the-green-new-deal-verso-london-new-york-2019-185-p.html
–
Egon Schiela, “Mulher sentada com joelho dobrado” (1917, detalhe)