Sociedade civil pede revogação de portaria do Ministério da Saúde que inclui no SUS contraceptivo sem consulta aos grupos atingidos

Pedro Calvi/CLP​

Em abril deste ano, o Ministério da Saúde publicou portaria incluindono Sistema Único de Saúde (SUS) o implante subdérmico de etonogestrel, para a prevenção da gravidez não planejada por mulheres adultas em idade reprodutiva entre 18 e 49 anos.

Já em maio, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) publicou uma recomendação direcionada ao Congresso Nacional, Ministério da Saúde, conselhos de gestores do Sistema Único de Saúde (SUS) e Ministério Público, cujo objetivo seria impedir a implementação da portaria.

No Congresso Nacional, tramita o Projeto de Decreto Legislativo  nº 176, de 2021, que prevê a sustação da portaria do Ministério sobre esse método contraceptivo.

O pedido do Conselho Nacional de Saúde aos parlamentares é que o PDL seja avaliado “em regime de urgência”.  O Conselho afirma que a nova portaria “não contempla as diretrizes da Política Integral da Saúde da Mulher, o princípio da universalidade nos serviços e ações de saúde do SUS”.

Nesta sexta (15/7), três comissões da Câmara dos Deputados discutiram o tema em uma audiência pública virtual. As Comissões de Legislação Participativa (CLP), de Defesa dos Direitos da Mulher (CMULHER) e a de Seguridade Social e Família (CSSF).

Pela CLP, pediram a realização do debate as deputadas Natália Bonavides (PT/RN), Talíria Petrone (PSOL//RJ), Erika Kokay (PT/DF) e Maria do Rosário (PT/RS).

Poderão receber o implante mulheres em situação de rua; com HIV/AIDS em uso de dolutegravir; que usem talidomida; que estejam privadas de liberdade; as trabalhadoras do sexo; e aquelas em tratamento de tuberculose com uso de aminoglicosídeos, no âmbito do SUS.

Para a deputada Erika Kokay (PT/DF), “esta portaria tem que ser discutida, qual o sentido dela e como repercute nesses segmentos. É uma tentativa de exclusão, sem respeitar os corpos e feita somente do ponto de vista econômico. Não podemos reforçar desigualdades sociais sob pretexto de ampliação de direitos”.

Antônio Braga Neto, diretor do Departamento de Ações Estratégicas do Ministério da Saúde, reconhece que não esperava que a iniciativa tivesse maiores questionamentos. “Entendemos a preocupação, mas queremos deixar claro que o uso não será obrigatório. Vai haver orientação para o planejamento familiar, empoderamento em relação aos seus direitos, apoio na manutenção do medicamento e acompanhamento de possíveis reações. A incorporação de um contraceptivo na rede SUS é um ganho, até hoje só tínhamos o DIU e pílulas. Com a falta de recursos, priorizamos um grupo mais vulnerável”.

Braga Neto informa que foi feita consulta pública antes da portaria e que cerca de 350 mil mulheres poderão ter acesso ao método. 

Respeito e justiça reprodutiva

“Não participamos da consulta popular e, mesmo assim, fomos colocadas como público-alvo. Nós, trabalhadoras sexuais já somos esterilizadas nos hospitais sem dar autorização. Somos um grupo historicamente criminalizado e estigmatizado, quem garante que nossa vontade vai ser respeitada? Pedimos que essa portaria seja revista e que sejamos ouvidas, porque interfere em nossas vidas e corpos”, afirma Santuzza Souza, vice-presidente da Central Única de Trabalhadoras Sexuais (CUTS).

Para Thais Dias, da Sociedade Brasileira de Medicina da Família e Comunidade, o que está em discussão é uma pauta de autodeterminação e justiça reprodutiva. “Ou seja, para se tomar decisões sobre nossos corpos é preciso ter recursos sociais e materiais. Portanto, não dá para pensar em métodos de contracepção em uma saciedade injusta como a nossa. Issoreforça o recorte de classe quando um método passa a ser oferecido só para grupos vulneráveis e feito somente do ponto de vista orçamentário. Deveria ser oferecido para todas as mulheres. E, claro, há os interesses na indústria farmacêutica”.

“A medida tem grande impacto na saúde reprodutiva de milhões de mulheres brasileiras e deve passar por um amplo debate. Temos que ouvir a sociedade, sobretudo aquelas mulheres elencadas como público alvo”, ressalta a deputada Maria do Rosário.

Revogação e eugenia

Para Ligia Cardieri, da Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, a portaria tem um texto preguiçoso e o Ministério levou pouco tempo para elaborar o documento. “A consulta pública não foi divulgada, vários grupos não foram consultados. Isso não é controle social. Uma portaria que esqueceu a história, como a laqueadura de mulheres negras nos anos 80. Tinha até outdoor dizendo ‘vamos limpar a população’.Sempre vai haver um método para impedir que nasça quem a sociedade não quer que nasça. O método é uma aquisição importante e deve ser mais discutida. Mas a decisão final da mulher. Tem que revogar a portaria e fazer outra. Essa defende a eugenia”.

Silvia Aloia, do Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas, lembra que, às vezes, as mulheres se descobrem grávidas e HIV positivas quando chegam num posto de saúde. “As desigualdades sociais e regionais no Brasil dificultam o aceso universal à saúde. Temos muita preocupação com essa portaria. Tem um tom discriminatório e contém incoerências científicas. Não houve diálogo com a sociedade civil, principalmente com os grupos que são mencionados. Um documento totalmente em desacordo com a lei”.

Consulta falha e inconstitucionalidade

A ex-procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, destaca que a consulta feita pelo Ministério foi apenas pela internet e durou menos de vinte dias. “Tenho seríssimas desconfianças que mulheres em situação de rua ou privadas de liberdade tenham sido ouvidas. Ao mirar um determinado grupo, mira o controle dos seus corpos. O controle dos corpos é fundamental para a participação na vida pública. Mais desconfiança por ter sido criada por um governo que tem como principal objetivo educacional a escola sem partido e como política sexual a abstinência”.

Deborah Duprat lembra também que a portaria não traz informações porque os grupos prioritários foram escolhidos. “A portaria também pode ser considerada inconstitucional porque fere o princípio da universalidade previsto na Constituição”.

Os parlamentares devem marcar uma reunião com o ministro da Saúde e há possibilidade de uma ação no Supremo Tribunal Federal. 

Também participaram Luciane Bonan e Gerson Pereira, do Ministério da Saúde; Emilly Marques, da Articulação de Mulheres Brasileiras; Corina Mendes, do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente, e Débora Melecchi, do Conselho Nacional de Saúde.

A íntegra da audiência pública, em áudio e vídeo, está disponível na página da CLP no site da Câmara dos Deputados.

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