por Maíra Mathias e Raquel Torres, em Outra Saúde
MESMO SCRIPT, NOVA CLOROQUINA
Jair Bolsonaro recebeu alta ontem do Hospital Vila Nova Star, onde foi tratar uma obstrução intestinal em São Paulo. No retorno aos holofotes, o presidente cumpriu um script onde estiveram presentes todos os elementos-chave do bolsonarismo, com destaque para o golpismo.
Durante meia hora, ele respondeu – da forma que quis – as perguntas feitas pela imprensa. E, claro, tirou a máscara de proteção para falar com os jornalistas. Questionado se voltaria a trabalhar normalmente hoje, Bolsonaro emplacou a fake news de que “o que mais mata de covid em primeiro lugar é quem tá com obesidade, segundo lugar é quem está tomado pelo pavor ou pelo pânico”.
Na sequência, o presidente resolveu fazer propaganda de outro falso tratamento contra a doença: a proxalutamida. A droga é estudada para o tratamento de câncer de próstata e de mama, e sequer superou a fase de testes clínicos para esses fins. Ao UOL, o virologista Rômulo Neris explicou que existem no mundo três estudos da proxalutamida para a covid-19, dois deles feitos no Brasil. A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) constatou uma série de irregularidades nos trabalhos, que estão sob investigação.
Mas, para Bolsonaro, a proxalutamida “tem curado gente”. O presidente afirmou que vai pedir ao ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, que incida sobre a Conep para “ver se a gente faz um estudo aí para a gente apresentar uma possível alternativa”.
Bolsonaro voltou a repetir que “só Deus” o tira da Presidência e tornou a questionar a lisura das eleições no Brasil, atacando o Tribunal Superior Eleitoral – faz 10 dias que ele chamou o presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, de “imbecil”. Questionado sobre a crise institucional que tudo isso vem gerando, ironizou: “Da minha parte não tem briga, eu sempre fui de paz e amor”.
“Um homem sem juízo e sem noção não pode governar esta nação”. Esse é um trecho da música “Desgoverno” composta por Zeca Baleiro e Joãozinho Gomes lançada na última quinta-feira, em um clip com participação de dezenas de artistas com o objetivo de mobilizar a sociedade pelo impeachment de Bolsonaro.
PAZUELLO, CORONAVAC E A PISCINA
E chegou ao general da ativa: a notícia da última sexta, que repercutiu durante todo o fim de semana, foi o encontro de Eduardo Pazuello, então ministro da Saúde, com um grupo de intermediários para negociar a compra da CoronaVac pelo triplo do preço pago pelo Butantan.
A reportagem da Folha obteve um vídeo em que Pazuello aparece junto aos representantes da empresa catarinense World Brands em março, num encontro não registrado na agenda oficial. A reunião ocorreu no gabinete do coronel da reserva Elcio Franco, então secretário-executivo do ministério.
“Saímos daqui hoje com o memorando de entendimento já assinado e com o compromisso do ministério de celebrar, no mais curto prazo, o contrato para podermos receber essas 30 milhões de doses”, diz Pazuello no vídeo, depois de agradecer ao “líder da comitiva”, identificado apenas como “John”. No mesmo vídeo, o ex-ministro diz que a comitiva viabilizaria a transação “em uma compra direta com o governo chinês”. A transação, como se sabe, não se concretizou.
Quando depôs à CPI em maio, Pazuello afirmou que não conduziu as negociações com a Pfizer porque a prática seria incompatível com suas atribuições como ministro. Como “dirigente máximo” da pasta, argumentava, não poderia negociar com empresas – postura que o vídeo parece contradizer.
A World Brands ofereceu as 30 milhões de doses da vacina por US$ 28 a dose. O valor é quase o triplo dos US$ 10 cobrados por dose para a aquisição da mesma vacina pelo Instituto Butantan, em contrato anunciado pelo governo brasileiro dias antes da reunião realizada no gabinete de Élcio Franco.
Na própria sexta, Pazuello emitiu nota através da Secom negando a negociação com os intermediários para compra de CoronaVac e reafirmando que jamais participou de tratativas com empresários para aquisição de vacinas. A nota diz ainda que Pazuello foi à sala apenas para “cumprimentar os representantes da empresa, após o término da reunião” e destaca que havia sido encaminhada à Folha uma notificação extrajudicial demandando direito de resposta. No dia seguinte, o jornal informou que iria negar o pedido.
“Propina, é pelado dentro da piscina”, foi o que disse Bolsonaro em defesa de Pazuello ontem, após deixar o hospital. “Se eu estivesse na Saúde, eu teria apertado a mão daqueles caras todos. O receber (os representantes)… ele não estava sentado à mesa. Geralmente, teria uma fotografia dele sentado à mesa e negociando. E se fosse propina, (Pazuello) não daria entrevista, meu Deus do céu, não faria aquele vídeo”, afirmou.
Já Rodrigo Cruz, atual secretário-executivo da Saúde e responsável pelas negociações de vacinas, afirmou que a atual gestão não tratou da compra das 30 milhões de doses negociadas por Pazuello.
A empresa recebida no ministério, por sua vez, acumula polêmicas. Em 2014, o empresário Jaime José Tomaselli, no nome de quem a World Brands está registrada, foi condenado pela Justiça Federal de Itajaí, Santa Catarina, por fraude em documentos de importação de produtos. Segundo a coluna de Lauro Jardim, d’O Globo, a empresa importa de ornamentos de Natal a itens de sex-shop – mas jamais trabalhou com vacinas.
Enquanto as investigações avançam e encostam nas Forças Armadas, um dado chama a atenção: na última década, de 2011 a 2020, dobraram os casos de militares de alta patente que foram alvos de inquérito mas terminaram sem investigação e punição. É o que mostra levantamento feito pela Folha através de dados do Superior Tribunal Militar. Foram arquivados 41 inquéritos policiais militares que investigavam generais, brigadeiros e almirantes, contra 22 na década anterior.
LÁ E CÁ
Não é só no Brasil que a atuação dos militares à frente das ações de combate à pandemia tem gerado controvérsias. Na Austrália, a nomeação do general John Frewen como coordenador da força-tarefa nacional de vacinação contra a covid tem sido questionada. Não está claro por que exatamente um militar foi designado para uma tarefa de saúde pública e, segundo o Guardian, nem mesmo exatamente quais são suas atribuições à frente da força-tarefa. A nomeação foi recebida com surpresa pela imprensa e pela opinião pública australiana, já que Frewen não era uma figura conhecida e experiente na área. Os jornalistas questionam ainda a ausência de projetos concretos para a vacinação, que está sob sua responsabilidade.
SAÚDE PERDE SERVIDORES
O enxugamento do serviço público brasileiro nos últimos anos pode ser confirmado em números: a defasagem de trabalhadores atuando nos ministérios, fundações, agências reguladoras e órgãos é a maior da série histórica. Isso significa que a conta entre os servidores que se aposentam e os novos concursados não está fechando e, nos últimos anos, a máquina pública tem atuado com um contingente cada vez menor. No caso do Ministério da Saúde, a falta de reposição fez com que dos 67.420 servidores em 1999, se chegasse à marca de 19.342 em 2021.
Após a aprovação do teto dos gastos, em 2015, o processo se acelerou. No total, hoje fazem parte dessa estrutura 208 mil servidores. Em 2007, eram 333,1 mil. Os dados são do Painel Estatístico de Pessoal, base de dados do governo federal. Além do Ministério da Saúde, órgãos como INSS, IBGE e Ibama perderam servidores – e os que ficaram foram atingidos por congelamento de salários e precarização.
PAGOS PELA FABRICANTE
Uma das principais fabricantes de ivermectina do país bancou a publicação do famigerado anúncio assinado pelo movimento Médicos pela Vida que defendia o uso da… ivermectina. Para quem não lembra, em fevereiro um informe publicitário no formato de manifesto circulou nos principais jornais impressos do país. Defendia a adoção do falso “tratamento precoce” da covid-19 e não trazia nenhuma indicação de que havia empresas bancando o anúncio.
A revelação veio à tona graças à CPI, que a partir de um requerimento do senador Humberto Costa (PT-PE) obteve dos veículos de comunicação a informação de quem solicitou a publicação do anúncio. A farmacêutica por trás do manifesto é a Vitamedic – que aumentou as vendas de ivermectina em 1.230% de 2019 para 2020.
Até agora, três jornais – Zero Hora, O Globo e Folha – informaram o valor desembolsado pela empresa, num total de quase R$ 300 mil. Detalhe: no manifesto, os médicos se comparavam a Dom Quixote.
O financiamento da campanha pela farmacêutica pode configurar conflito de interesses, de acordo com o Código de Ética Médica. Caberá ao complicado Conselho Federal de Medicina fazer alguma coisa…
Alguns dos médicos que fazem parte do tal “movimento” participaram da reunião de setembro de 2020, que serve de indício da existência do “gabinete das sombras” que aconselhava Jair Bolsonaro. É o caso do Antônio Jordão e do virologista Paulo Zanotto.
Enquanto isso, nos Estados Unidos, um médico que vendeu hidroxicloroquina como parte de um “kit-covid” foi investigado pelo FBI, processado pela Justiça e se confessou culpado na última sexta-feira por comercializar uma “cura milagrosa”. Jennings Ryan Staley vendeu os kits entre março e abril de 2020, e alegava que a droga oferecia pelo menos seis semanas de imunidade contra o vírus. “Estamos comprometidos em proteger o povo americano de tais golpes e responsabilizar os golpistas“, disse o procurador em exercício dos EUA Randy Grossman.
E, na França, foi lançada a biografia de Didier Raoult, responsável pelo estudo fajuto que afirmava que a cloroquina seria eficaz para a covid-19. As jornalistas Ariane Chemin e Marie-France Etchegoin mostram um retrato de alguém extremamente vaidoso que, depois de surfar na onda midiática da cloroquina, perdeu a batalha para a ciência e se viu obrigado a admitir a ineficácia da droga.
FUROU A FILA?
Outro que teve alta do hospital no domingo foi Olavo de Carvalho. O guru bolsonarista se desabalou dos EUA até o Brasil para se tratar no SUS. Passou por cirurgia no Instituto do Coração (InCor) da USP e ficou internado lá por 10 dias – não sem levantar suspeitas sobre fura-fila. A Promotoria de Justiça de Direitos Humanos do Ministério Público de São Paulo instaurou na última quinta-feira um inquérito justamente para apurar se houve irregularidade. Isso porque Carvalho não teve que se submeter ao trâmite normal, e esperar por uma vaga via central de regulação de leitos. Ele deu entrada no Incor como se o seu caso fosse uma emergência. O Incor alega que o ideólogo teve um “mal-estar súbito” no voo entre EUA e Brasil – mas ele tinha consulta marcada no hospital e chegou a anunciar que viria ao país dar continuidade a um tratamento de saúde.