Deputada evangélica sobre aliança de igrejas com Bolsonaro: “Falta de conhecimento e fanatismo”

Pernambucana, Dulcicleide defende Estado laico, cotas, feminismo e quer o PT empenhado na conquista dos evangélicos

Vinícius Sobreira, Brasil de Fato

As pesquisas eleitorais de 2018 e as pesquisas de avaliação do governo Bolsonaro nos últimos anos revelaram que os adeptos do protestantismo cristão são os mais “fiéis” ao presidente Jair Bolsonaro.

Não é raro que lideranças de igrejas evangélicas se manifestem publicamente em defesa de Bolsonaro e de suas pautas, sendo contrários à vacinação contra a covid-19 e favoráveis a tratamentos ineficazes. Composto majoritariamente por denominações neopentecostais, esse grupo tem grande influência nas classes C e D. Na contramão desse cenário, no entanto,, também em 2018 foi eleita, em Pernambuco, a deputada estadual Dulcicleide Amorim, cristã-protestante e petista.

Dulci, como é mais conhecida, recebeu 22,3 mil votos e conquistou seu primeiro mandato na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe). Na entrevista concedida ao Brasil de Fato Pernambuco, Dulcicleide disse que considera o alinhamento dos evangélicos com Bolsonaro uma soma de falta de conhecimento com fanatismo religioso. Confira a entrevista:

Brasil de Fato Pernambuco: Deputada, conte um pouco da sua trajetória de vida até chegar ao cargo de deputada estadual, estando hoje em seu primeiro mandato.

Dulcicleide Amorim: Pela minha história fica fácil entender por que sou de esquerda. Eu sou 100% sertaneja, venho da última cidade de Pernambuco, quase no Piauí. Nasci no distrito de Rajada, em Petrolina, mas fui criada no município de Afrânio, de poucos mil habitantes. Fui criada na área de Sequeiro, interior do município. Minha mãe era professora e merendeira da escola. Não tinha merenda de qualidade e a gente tinha que caminhar quilômetros para ir e depois voltar.

Na região o meu pai era considerado “bem de vida”, porque tinha carro e vacas leiteiras. Mas era uma vida muito simples. Eu engatinhei em chão de barro batido. Meu pai era servidor público municipal, mas morávamos na roça. Ele chegou a ser vereador de Afrânio, mas naquele tempo nem tinha remuneração.

Ele tinha uma picape na qual levava os aposentados para receberem dinheiro na cidade, ele dava leite aos que não tinham aposentadoria. A família era numerosa e no domingo sempre tinha gente da região lá em casa almoçando conosco. Era um lar simples, mas de mesa farta. Então aprendi desde cedo a lidar com as pessoas.

Eu era muito apegada a ele. Quando eu tinha 9 anos ele sofreu um AVC muito sério e se mudou para a cidade, mas eu continuei por um ano em Sequeiro com meus irmãos. Depois fui fazer o “ginásio” (atual Fundamental 2) na cidade. Mas todo fim de semana estava no interior ajudando a cuidar da casa, lavar roupas, quebrar lenha. Não tínhamos água, só uma cisterna pequena. Água de pouca qualidade. Nem energia tínhamos, dependíamos do candeeiro, acordávamos todo dia com o nariz sujo da fuligem de carvão.

Mas além do seu pai, o seu casamento também contribuiu para a entrada na política, não é?

Isso. Em 1992 eu conheci Odacy (Amorim), meu esposo, que já militava na esquerda, junto a Miguel Arraes. A família dele também é de Rajada, a minha sogra é tida como uma “médica” na região e sempre está com a porta aberta para cuidar das pessoas. Em 1995 nos casamos e fui morar em Rajada. Lá também não tinha água encanada e foi Odacy que, através de uma mobilização, conseguiu junto a Miguel Arraes uma adutora para a região.

Odacy teve vários mandatos de vereador e em 2004 foi eleito vice-prefeito de Petrolina, assumindo como prefeito em 2007-08. Em 2010 foi eleito deputado estadual (por dois mandatos) e em 2018 ele saiu para deputado federal e eu para estadual. Mas infelizmente o PT não teve tantos votos de legenda para federal e ele não foi eleito, ficou na primeira suplência. Mas ele está muito presente no meu mandato, assim como eu estava nos dele. Temos três filhas.

Também sou professora concursada na rede pública estadual. Ingressei em 2007. Foi um desafio grande, mas eu amo trabalhar com adolescentes. Eu sou educadora de apoio e essa área eu acredito muito. A forma de transformar a vida das pessoas é através da educação. É um dos motivos que me faz ser de esquerda: foi através de Lula que tanta gente da nossa região pode fazer um curso de nível superior, medicina, engenharia, que antes era apenas para famílias abastadas.

Eleitoralmente você e Odacy são os representantes mais fortes da esquerda na região. Qual é a relação que vocês mantêm com os setores organizados da esquerda, como sindicatos e movimentos populares?

Dulci: Temos relação muito próxima com o sindicato dos trabalhadores assalariados rurais, fazemos várias visitas a áreas de assentamentos. Também temos relação muito boa com comunidades quilombolas de Orocó, através da vereadora Jacielma (PT), mas também estamos construindo relações com outras comunidades quilombolas na região.

Você destaca a relação com as comunidades rurais. Desde o impeachment da presidenta Dilma as políticas públicas para o campo têm sofrido cortes, contribuindo para o atual quadro de insegurança alimentar e fome. Sua base tem sentido isso?

O trabalhador tem sofrido muito. O salário mínimo sofreu uma defasagem de no mínimo R$600. Isso reduziu muito o poder de compra do trabalhador. Enquanto isso alguns alimentos tiveram aumento exacerbado. Tudo somado aos cortes nos programas sociais.

Eu faço a minha feira e todo mês eu fico abismada com o quanto as coisas têm aumentado e como fica difícil para o trabalhador comprar itens básicos. Eu vejo o quanto as pessoas estão comprando sardinha e salsicha. Essa insegurança alimentar nos nega o direito ao mínimo e leva a população à situação de fome.

Nos governos Lula e Dilma reduziu-se muito a quantidade de pedintes nas ruas. Mas hoje, em qualquer semáforo ou estabelecimento que venda alimento, sempre tem gente pedindo. O pobre cada vez mais pobre e o rico cada vez mais rico. Parte da classe média voltou a ser pobre e parte dos pobres voltaram a ser miseráveis.

Lula havia garantido ter no mínimo três refeições diárias. Sou educadora e vi muitas crianças irem à escola pensando na merenda. Mas no fim dos governos PT o cenário já era diferente. Os estudantes de sandália remendada com prego, anos depois já tinham um tênis. Porque em casa mudou.

Mas as coisas voltaram a ser como era antes. As pessoas estão no “puro ovo”. Quem paga aluguel, água e luz não tem como comprar um quilo de carne. Esse é o Brasil que a gente quer? Não é. E tem muita gente se aproveitando, usando do assistencialismo como política.

As pessoas deveriam chegar no posto de saúde e fazer um exame, porque é um direito. Mas alguns políticos preferem manter o povo no assistencialismo, porque isso fideliza voto. Nós de esquerda somos totalmente contra isso. Queremos que todo mundo tenha acesso a direitos e possam escolher o que comer.

Mas não há algo que possa ser feito a nível estadual para lidar com esse quadro?

Sim. Ano passado entrei com uma indicação pedindo o auxílio emergencial estadual. Infelizmente não foi possível o Governo atender o nosso pedido. No momento em que o auxílio (federal) foi interrompido, voltaram a crescer as necessidades do povo.

Uma pesquisa que saiu no ano passado dizia que 35% da população estava dependendo exclusivamente do auxílio. Elas não têm nenhuma outra renda. Eu sei das dificuldades que os estados têm passado, tendo que se reinventar nessa pandemia, mas os governos municipal, estadual e federal tinham que priorizar essa questão.

E você considera que a Prefeitura de Petrolina atuou bem na pandemia?

Acho que não. Governo bom é aquele que cuida da saúde das pessoas. Petrolina tem 350 mil habitantes, mas não tem um hospital próprio. A gente pega carona na UPA estadual, no IMIP também financiado com recurso estadual e no hospital universitário federal. Não existe mais obra municipal em Petrolina. A cidade se tornou um canteiro de obras do Governo Federal. Mas foi tomado muito dinheiro emprestado.

A economia aqui é muito puxada pela fruticultura irrigada. Mas onde mais se produz é onde menos se tem investimento municipal. Era para ter escola de qualidade, posto de saúde, estradas de qualidade. Tentam culpar o Governo do Estado, mas a responsabilidade é da Codevasf [Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco], órgão federal. Mas o órgão foi transformado em uma segunda prefeitura pelo grupo político dos Coelhos e agora vivem de fazer serviços de calçamento e asfaltamento de rua.

E é um governo que não é voltado para o pobre, mas nas camadas de poder aquisitivo mais alto. Até as obras feitas nas periferias são de menor qualidade.

O centro de Petrolina está um brinco, mas quando você sai do centro o asfalto é “sonrisal”, porque em dois anos, a depender das chuvas, vai sumir. É uma agressão ao contribuinte. Mas em quatro anos gastou R$25 milhões em propaganda, colocando outdoors até na capital, já que está ensaiando uma candidatura ao Governo do Estado.

A sua família sempre foi religiosa? Quando a religião ganhou importância na sua vida?

Minha família sempre foi muito católica. Eu fui a primeira a me tornar evangélica, há 30 anos. Depois outros familiares também se tornaram adventistas do 7º dia. Mas sempre tivemos bom relacionamento entre irmãos, respeitando as escolhas de cada um.

Eu prezo pelo estado laico, onde exista liberdade de expressão e de credo, para que as pessoas possam exercer aquilo em que acreditam. Tem uma lei da Alepe (Assembleia Legislativa de Pernambuco), de autoria de Odacy [marido dela], sobre liberdade de culto, que é comemorado no dia 25 de maio, congregando diversas religiões.

O seu mandato mantém relação política com a igreja?

Os adventistas têm relações políticas apartidárias. Quando visito uma igreja que não é minha congregação, sou convidada para orarem por mim enquanto autoridade, para dar sabedoria, mas não fazem isso de “fechar a igreja” para votar em mim ou em qualquer membro da adventista. Eles entendem a importância da política, mas consideramos que não é legal juntar política e religião.

Uma vez levei uma autoridade a um evento da Adventista no Centro de Convenções, um evento com 10 mil pessoas, e a pessoa ficou surpresa, porque não pode distribuir um santinho na porta da igreja. O contato que tenho é como irmãos, ficando a critério deles me avaliarem como política.

Por ser evangélica, estar no PT é como se eu tivesse um pouco na contramão da coisa. Mas tenho percebido que muita gente tem entendido a importância da esquerda. Todo extremo é prejudicial e sempre prezamos pelo equilíbrio. E tanto Lula como Dilma sempre procuraram esse equilíbrio. Reafirmo que acredito sim no estado laico e não acho positiva a mistura de religião e política, porque impor uma única doutrina, isso não é liberdade.

Alguns temas, como direitos das mulheres, direitos das pessoas LGBTs e liberdade religiosa provocam embates entre grupos organizados de esquerda e grupos cristãos. Como você percebe esse tensionamento?

O tema das cotas raciais, por exemplo, elas são necessárias porque o negro foi marginalizado por um período muito longo no Brasil, foi escravizado e tido como animal. E não se corrige isso num período curto. Estamos fazendo justiça através das cotas. Mas vai chegar um momento em que isso [o racismo] vai acabar.

Já o movimento feminista nasceu na década de 1940, quando a mulher era tratada como ninguém, como chofer de fogão. Muitas mulheres foram mártires para dizer que nós temos a mesma capacidade dos homens para assumir funções. Mas acho que não é nosso papel ficar tensionando essas coisas. É responsabilidade das instituições e acho que é principalmente educação familiar, de berço.

O nosso papel na sociedade é não julgar, não apedrejar, independentemente de cor ou religião. Alguém sabe de Jesus apedrejando outro por pecado?! No caso de Maria Madalena, pessoas que provavelmente haviam cometido adultério com ela, chegaram com pedras, se julgando moralmente superiores. Iriam matá-la. Ela foi humilhada, mas Jesus disse que não a condenaria. “Vá e não peques mais”.

Esses embates políticos se refletem na sociedade, mas as mortes só ocorrem de um dos lados.

Tirar a vida não é coisa dos humanos, é coisa de Deus. Esse direito nós não temos. Não entendo por que alguém se julga melhor que outro.

Eu tenho pautado dentro do partido que o PT deve “voltar às origens”. Temos que defender o trabalhador independente de ele ter escolhido ser evangélico, homossexual ou qualquer coisa.

Eu não gosto de dividir o mundo em caixinhas, é perigoso. Temos que falar do preço da comida, do crescimento da fome. Mas essas outras discussões, das “caixinhas pequenas”, isso causa muitas divergências. E infelizmente não é todo mundo que respeita as opiniões diferentes.

O que levou tantas denominações protestantes a rejeitarem tanto as organizações de esquerda?

Temos que fazer uma retrospectiva. A marginalização do PT no meio evangélico veio antes de surgir Bolsonaro. Você lembra da cartilha do “kit gay”*? Aquilo não foi proposta da presidente Dilma, foi de setores do MEC. Dilma não aceitou que aquilo fosse para as escolas. Mas as redes sociais, na “boca miúda”, espalhou-se que isso era coisa do PT.

Também houve um evento com a presença de Lula e Gleisi em que teve uma apresentação cultural de um grupo LGBT, tem um vídeo. Mas tem gente que vê e acha que “Lula mandou fazer” aquilo. Ele está lá respeitando as escolhas das pessoas, mas tem gente que fica chocada com isso. A Globo também contribuiu, acusando Lula de ter roubado. Marginalizaram a sigla e associaram o PT a coisas que a população não aprova.

A moça que trabalha aqui em casa veio me falar algumas coisas, associando o PT a “macumba”. E poxa, no PT tem muita gente que frequenta e até que tem terreiros.

Aqui em Petrolina tem o Pai Jorge, com quem eu sento e converso inclusive. Mas é algo aberto, em que ele diz quem é e o que faz. Ruim são os “camuflados” que existem noutros partidos, gente que faz essas práticas, mas em público se dizem contra terreiro. No PT as pessoas são o que são abertamente.

Eu agora estou na coordenação de evangélicas do PT, também dizendo o que somos e queremos ser ouvidas, participar das discussões. Estou dentro do PT também como forma de mostrar aos meus irmãos evangélicos que não é o partido que vai mudar minha cabeça, mas nós dentro dos partidos é que temos que levar o que acreditamos e, principalmente, trabalhar para melhorar a vida das pessoas.

A gente nem tinha acesso a médico e só a partir de Lula pudemos vivenciar outra situação. A Bíblia diz o seguinte: “quem dá ao pobre, empresta a Deus”. E quem mais fez pelo pobre foi o PT, na pessoa de Lula. Foi quando Luiz Inácio Lula da Silva assumiu a Presidência que eu entendi que o Brasil poderia ser melhor. Defeito tem em todo partido. Mas o PT tem tudo muito bem escancarado, não tem “camuflado”.

*[Dentro do programa Brasil Sem Homofobia (2004) foi firmado um convênio pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação para elaborar o material educativo “Escola sem Homofobia”, que foi alvo de críticas de setores conservadores e acabou vetado pela presidenta Dilma (2011), nunca tendo sido distribuído nas escolas].

E como você avalia essa relação que Bolsonaro construiu com as igrejas protestantes?

Essa aproximação de Bolsonaro com os evangélicos foi construída através da esposa [Michelle], que é evangélica. Usaram muito o nome Jair “Messias” Bolsonaro para dizer que ele poderia ser o Jesus que a gente espera na segunda vinda – coisa que ele não é nem de longe. Mas infelizmente um pouco de falta de conhecimento com um pouco de fanatismo religioso levou as pessoas para esse outro lado.

É incrível como ele conseguiu influenciar dentro das igrejas evangélicas. Mas nunca consegui entender algumas coisas. Disseram que Bolsonaro representaria “os valores da família”, mas o cara foi casado três vezes – e não tenho nada contra, são escolhas da vida dele. E do outro lado Fernando Haddad, que praticamente casou com a primeira namorada.

Outra coisa que me choca é a “arminha”. Onde é que o Evangelho prega isso?! Quem quiser usar, que use. Eu sou parlamentar e tenho o direito, mas eu não quero. O perfil do eleitorado de Bolsonaro é bem agressivo. Mas hoje encontro muitos arrependidos, até dizendo que a Justiça foi tendenciosa no caso de Lula. Mas o estigma contra o PT ainda é forte. Largar Bolsonaro é uma coisa, mas votar no PT é outra. Para fazermos o caminho de volta não será fácil. Tem que ter muita conversa e paciência.

Edição: Vanessa Gonzaga

Imagem: Deputada avalia cenário nacional e avalia gestão do prefeito de Petrolina Miguel Coelho (MDB) – Roberto Soares/Alepe

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