Com desemprego e preços dos alimentos nas alturas, necessidades da população são cada vez mais básicas
Por Pedro Stropasolas e Daniel Giovanaz, em Brasil de Fato / MST
“Ou pago o aluguel, ou faço alguma coisa em relação à alimentação das crianças. Eu vou na feira, cato, peço, porque não tem como.”O relato de Jaqueline Lima Félix, de 22 anos, sintetiza o desespero de milhões de famílias em meio à pandemia de covid-19.
Desempregada desde 2019 e com dois filhos para sustentar, Jaqueline recebe um auxílio emergencial de R$ 375. A casa onde ela vive com os filhos tem um cômodo único – o banheiro fica do lado de fora. Assim que paga o aluguel, sobram apenas R$ 125, insuficientes para a alimentação dos três.
Conforme dados do grupo de pesquisa Alimento para Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares na Bioeconomia, com sede na Freie Universität Berlin, na Alemanha, 125,6 milhões de brasileiros sofreram com insegurança alimentar durante a pandemia. O número equivale a 59,3% da população do país e se baseia em pesquisa realizada entre agosto e dezembro de 2020.
“Um pacote de fralda, um fardo de leite, custa R$ 50. Não cabe no orçamento do auxílio”, lamenta a trabalhadora, que já foi faxineira e atendente no comércio, mas desistiu de procurar emprego.
“A gente acorda sem esperança de ter um pão, um café da manhã, um arroz. E sem saber se vai ter para comer no dia seguinte.”
Para sair do aluguel, que considera abusivo, Jaqueline está construindo um barraco na ocupação Carolina Maria de Jesus, organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) na zona leste de São Paulo (SP).
Jaqueline vive de doações da igreja e só faz duas refeições ao dia: café da manhã, ao acordar, e um almoço tardio, que se confunde com a janta.
A tábua de salvação da família são as cozinhas solidárias organizadas durante a pandemia pelo MTST. Por meio de doações, integrantes do movimento preparam e distribuem refeições grátis diariamente em cerca de 20 unidades em 11 estados brasileiros.
Para além das comunidades religiosas e das cozinhas comunitárias, um dos espaços mais importantes de doação de alimentos na cidade é a Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais do Estado de São Paulo (Ceagesp).
Todas as quintas-feiras, desde janeiro, centenas de desempregados fazem fila logo cedo no portão 7 do Ceagesp. Com carrinhos, sacolas e estômagos vazios, eles aguardam a doação de frutas e verduras por até seis horas, sob sol e chuva.
No primeiro semestre de 2021, foram 1276 toneladas de alimentos doados e mais de 3 milhões de pessoas atendidas pelas ações do maior centro alimentício da América Latina.
“É a fila da sobrevivência”, define Sônia de Jesus, de 55 anos, que mora com o filho – formado em Economia e também desempregado – no Grajaú. Ela trabalhava como diarista e cuidadora de idosos até o início de 2020, mas foi dispensada devido à pandemia.
Antes de descobrir as doações no Ceagesp, o momento de abrir a geladeira era um dos mais tristes do dia. “Só tinha água”, lembra a trabalhadora, que recebe R$ 150 de auxílio emergencial.
“Só dá para pagar minha conta de luz [com o valor do auxílio]. Eu pago R$ 500 de aluguel”, diz. “Dez anos atrás, eu enchia meu carrinho no mercado. Hoje, quando vou, saio com uma sacolinha”.
Desde o início da pandemia, o preço dos alimentos aumentou 15% no país, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A taxa é quase o triplo da inflação geral registrada no mesmo período, 5,2%.
De geração em geração
Nascida em Pernambuco, a empregada doméstica Cícera Maria morou 12 anos em Maceió (AL) e sobrevive há quase 30 na maior cidade do país.
“Vim fugindo da fome e da miséria, do Nordeste para São Paulo”, ressalta. “Eu vim para uma casa de família, ganhando dois salários [mínimos]. Cheguei domingo, segunda já fui trabalhar.”
O pai de Cícera morreu de fome aos 60 anos, quando ela tinha 16.
“Meu pai era o homem mais trabalhador do mundo. Trabalhava dia e noite para nos dar comida, mas somos 12 filhos, era muita gente”, lembra.
Mãe solteira, Cícera conta que começou a trabalhar aos 7 anos, cortando cana de açúcar, e se alfabetizou aos 15.
A vida começou a mudar quando ela conheceu a Educafro, instituição que se dedica à inclusão de negros e pobres em universidades públicas ou em universidades particulares com bolsa de estudos.
“Quando entrei na faculdade, eu me senti gente”, resume a empregada doméstica, graduanda em Filosofia.
A percepção de que a vida melhorou nos anos em que o Brasil foi governado pelo ex-presidente Lula (PT) fez com que ela se filiasse ao Partido dos Trabalhadores (PT).
Cícera se candidatou duas vezes, a deputada federal e a vereadora, e durante a pandemia coordena um projeto de solidariedade na região do Jardim Comercial, no Capão Redondo.
A Casa do Amor foi criada em julho de 2020. Além de ser o lugar onde ela vive e arrecada doações de alimentos, o espaço é usado para acolhimento à população em situação de rua e a trabalhadores que sofrem despejo.
“Eu estudei a história desse país e posso dizer: ninguém está na rua porque quer. É cruel, é muito sofrimento para o nosso povo pobre. É muita falta de respeito, de humanidade de quem está no poder”, afirma.
“Eles roubaram nossos direitos, não têm um pingo de amor, o mínimo de respeito pelo país, pela pátria. Que respeito Bolsonaro tem pelo Brasil?”, completa a trabalhadora, que criou dois meninos que viviam na rua, e que hoje chama de sobrinhos.
Durante a pandemia, a Casa do Amor é um ponto de doação de cestas básicas e de distribuição de frutas e verduras oriundas de bancos de alimentos.
“As doações, agora, são poucas. A gente vê o povo desempregado, com fome, sofrendo”, lamenta Cícera.
As pessoas atendidas na Casa do Amor estão entre as 222.895 famílias mapeadas pela Coalizão Negra por Direitos por meio da Campanha Tem Gente Com Fome, que vem apoiando e mobilizando periferias, favelas, e quilombos em todo o território nacional.
Militante da Coalizão Negra por Direitos, Douglas Belchior afirma que o aumento da fome durante a pandemia, especialmente nas regiões periféricas, configura genocídio e crime contra a humanidade.
“O genocídio, no conceito internacional, é o resultado em mortes de uma política deliberada do Estado dirigida a determinados grupos sócio-políticos-étnicos-culturais-religiosos. No caso brasileiro, eu estou falando de uma massa de pessoas pretas, que conformam a maioria esmagadora dos mais pobres, que são os desempregados, que não conseguem ganhar o pão de cada dia nem no mercado informal”, avalia.
“A fome não é uma manifestação alheia à realidade. Ela é resultado de políticas planejadas, que garantem que, ao mesmo tempo que tem 20 milhões de pessoas passando fome, o Brasil tenha produzido duas dúzias de bilionários”, acrescenta o militante.
Brasil já foi referência
Garantir que todos os brasileiros pudessem fazer três refeições ao dia era uma das metas do então presidente Lula ao tomar posse em 2003.
Meses antes da primeira vitória eleitoral de Lula, um relatório das Nações Unidas informou que a fome estava se agravando e que não havia nenhuma estratégia por parte do Estado brasileiro para enfrentá-la.
A resposta foi oficializada em 2003, com o programa Fome Zero.
“A meta era atender entre 20 e 22 milhões de famílias que estariam em situação de insegurança alimentar”, explica o economista Walter Belik, um dos criadores do programa.
O Fome Zero mirava quatro elementos centrais ligados à segurança alimentar. Os dois primeiros já vinham sendo discutidos pelos movimentos populares à época: a disponibilidade de alimentos e o acesso a eles.
O terceiro elemento era a estabilidade. “Ou seja, como manter tudo isso. Não era uma discussão apenas de dar uma cesta básica ou um auxílio emergencial”, observa Belik.
Por fim, também estava no centro dos debates a qualidade da comida.
“Contaminação, transgênicos, agrotóxicos, alimentos orgânicos, tudo isso estava sendo discutido no momento em que se colocou o Fome Zero”, acrescenta o economista.
O programa é considerado até hoje um dos exemplos mais bem-sucedidos de combate à insegurança alimentar no planeta. Graças a políticas de valorização do salário mínimo e de distribuição de renda, como o Bolsa Família, o Brasil deixou o Mapa da Fome em 2014.
Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o Bolsa Família reduziu a pobreza em 15% e a extrema pobreza em 25% em uma década e meia.
“Os níveis mais graves de insegurança alimentar, que a gente pode chamar de fome, estavam praticamente controlados. Em termos estatísticos, era um quase irrelevante o número de famílias que estavam passando fome na década passada”, relembra o economista Walter Belik.
Para trabalhadores como o segurança Emerson Pavão, de 50 anos, as conquistas daquela época ficaram no passado.
Desempregado desde o início da pandemia, ele precisou deixar a casa onde morava e passa as noites, desde 2020, em albergues paulistanos. A esposa pediu divórcio, e ele sobrevive de doações.
“Estou mandando alguns currículos. Enquanto não aparece nada, fico entre meus livros e o violão. Gosto de fazer palavras cruzadas também. Se parar de exercitar a mente, você acaba ficando doido”, afirma.
“Tem umas ONGs que vêm nos trazer marmita, mas não é toda noite. Aí vem aquela hora em que você se vê obrigado a se humilhar. Chegar para um estranho e dizer: estou com fome. Muitos são solidários, mas muitos te tratam como se fosse um vira-lata”, relata o trabalhador.
Comida volta a ser prioridade
O sociólogo Herbert de Sousa, conhecido como Betinho (1935-1997), foi um dos ícones do combate à fome no Brasil.
Há 28 anos, ele criou a organização não-governamental (ONG) Ação da Cidadania, que possui comitês locais em todos os estados e organiza milhares de comunidades na luta por direitos sociais, começando pelo direito à alimentação.
A proposta inicial da ONG era arrecadar e distribuir alimentos. No entanto, avanços promovidos a partir do Fome Zero fizeram com que os sucessores de Betinho mirassem outros horizontes.
“Quando eu entrei na Ação da Cidadania, em 2010, já não se fazia mais arrecadação de alimentos. Estávamos trabalhando com a questão da ‘fome de livro’, ‘fome de cidadania’, garantia de direitos para a juventude”, conta Ana Paula de Souza, coordenadora de advocacy da ONG.
“Comemoramos muito a saída do Brasil do Mapa da Fome, em 2014. Mas, anos depois, já começamos a sentir um efeito contrário, e logo voltou a aparecer nos comitês a demanda por alimentos”, lembra. “Isso assustou bastante.”
A Ação da Cidadania voltou a organizar campanhas emergenciais para doação de alimentos a partir de 2017.
“Em 2018, a situação começou a se agravar. E no ano seguinte, para completar, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional [Consea] foi extinto. A partir daí foram várias notícias, uma atrás da outra, de perda de direitos”, lamenta Ana Paula.
O Consea era responsável pelas diretrizes das políticas públicas de combate à fome no Brasil e, durante os governos PT, foi um dos pilares do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN). Ligado diretamente à Presidência da República, o conselho foi extinto no primeiro dia do governo de Jair Bolsonaro.
A Emenda Constitucional 95, do “Teto de Gastos”, foi um dos golpes mais duros, segundo a integrante da ONG. A medida, aprovada em 2017 durante o governo Michel Temer (MDB), congelou investimentos em áreas sociais por 20 anos.
“Foram fechados restaurantes populares e cozinhas comunitárias em todo o Brasil, em estado de total abandono”, diz.
O abandono das políticas de combate à miséria recolocou o Brasil no caminho do Mapa da Fome há três anos. O status brasileiro não foi atualizado no último mapa divulgado pela organização, em 2020, porque os indicadores utilizados estão defasados em relação aos do IBGE. Atualmente, a ONU não utiliza mais a ferramenta para comunicar os dados da fome no mundo.
Os dados da Rede Penssan, reconhecidos pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) como os mais adequados para criar um novo Mapa da Fome no Brasil, apontam que a insegurança alimentar grave atingia 9% da população em 2020.
O relatório mais recente da própria FAO apontou que 23,5% da população brasileira, entre 2018 e 2020, deixou de comer por falta de dinheiro ou precisou reduzir a quantidade e qualidade dos alimentos ingeridos.
Os resultados evidenciam que, em 2020, a fome no Brasil retornou aos patamares de 2004.
“A gente ficou com a saúde fragilizada, com a segurança alimentar ameaçada, num momento de pandemia, justamente quando as pessoas precisam estar com sua imunidade preparada”, ressalta Ana Paula.
Desidratação
O desmonte das políticas públicas de combate à fome foi agravado no governo de Jair Bolsonaro (sem partido), mas é anterior.
“Começa a partir da primeira metade da década passada, ainda no governo Dilma Rousseff (PT), com uma perspectiva de austeridade, de cortar gasto público. Nesses cortes, entraram vários programas sociais”, lembra Walter Belik, professor aposentado do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
“Como a situação política estava instável, o governo resolveu não avançar em determinados programas, por exemplo, a reforma agrária. Ela entrou em modo de paralisação a partir do início de 2010. Assentou-se muito pouca gente”, lamenta o economista.
Com o golpe parlamentar de 2016, Dilma foi substituída pelo vice Michel Temer, e o orçamento sofreu cortes ainda mais profundos.
O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) – que obriga os governos a comprarem produtos da agricultura familiar para equipamentos públicos, como escolas, creches e hospitais – atingiu um pico de mais de R$ 1 bilhão em 2012, por exemplo, mas perdeu quase 90% dessa verba após o golpe.
A reversão da curva de combate à fome foi imediata. Segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2017-2018, a insegurança alimentar teve aumento de 33,3% em relação a 2003 e de 62,2% em relação a 2013. Ou seja, a situação já era pior do que ao início do governo Lula.
O baiano Edson dos Santos, de 53 anos, toma café da manhã todos os dias no Núcleo de Convivência São Martinho de Lima, organizado pela Prefeitura de São Paulo e pela Pastoral do Povo da Rua, no bairro Belém.
“Tem um bom tempo que eu não vou no mercado. É muito caro, e eu tô sem condições de tomar café em uma padaria. Antigamente, com R$ 2 ou 3 a gente tomava um cafezinho e comia um pãozinho. Agora, só um café preto mesmo, e pronto”, conta o trabalhador, que passa as noites em albergues.
Operador de cargas, Edson sofreu há 21 anos um acidente de trabalho que comprometeu a visão de um dos olhos e deixou sequelas motoras. Encontrar trabalho nessas condições, em plena pandemia, é uma missão quase impossível.
A faxineira Luzia Janaína da Cunha tem a mesma idade de Edson. Assim como ele, mora em um albergue, perdeu o emprego na pandemia e mata a fome no São Martinho.
“Aqui todo dia é arroz, feijão, carne, legumes, frutas, pães. É uma refeição completa”, elogia.“Jamais eu ia conseguir me sustentar pagando R$ 25 num pacote de arroz [5 kg], sendo que agora eu estou parada e não ganho nada. Eu recebo Bolsa Família, que é o que está me mantendo.”
Necessidades cada vez mais elementares
O padre Julio Lancellotti é um dos responsáveis pela arrecadação de alimentos e pela distribuição, todas as manhãs, a trabalhadores desempregados da região. Segundo ele, o aumento da miséria no país salta aos olhos.
“Essa crise humanitária se acentua pela impossibilidade do acesso à alimentação, em quantidade e em qualidade. Hoje, o número de pessoas que estão pelas ruas é cada vez maior, o desemprego é muito grande, e muitas pessoas que ainda mantêm seus espaços para dormir têm que escolher: ou morar, ou comer”, relata.
Para o religioso, o convívio com a população em situação de rua e moradores de albergues é um aprendizado diário.
“O povo que está oprimido, que está sofrendo com a crise humanitária, pensa também de maneira meritocrática, de maneira neoliberal. Então, a convivência com a pessoa em situação de rua é conflitiva também. Quando a gente leva o marmitex em áreas de muita fome, se um puder pegar três, ele não vai se importar se o outro ficar sem nenhuma”, diz.
Lancellotti é uma referência para milhares de desempregados e desalentados, que dependem de doações de alimentos, utensílios domésticos e roupas de inverno, por exemplo.
Em tempos de pandemia, com 14,8 milhões à procura de emprego, segundo o IBGE, as necessidades são cada vez mais elementares.
“As pessoas passaram a buscar, constantemente, gás para cozinhar. É um indicador de crise humanitária, ter que voltar a fazer comida com etanol. E nem isso as pessoas estão conseguindo, porque o litro do álcool está com preço muito elevado. Então, tem que cozinhar com madeira, inclusive com lenha não adequada para o fogo de cozimento”, descreve.
O aumento do preço do gás de cozinha está relacionado à política de atrelamento dos preços dos derivados do petróleo ao mercado internacional, adotada nas gestões Temer e Bolsonaro.
Aposentadoria não dá conta
A reforma da Previdência, aprovada em 2019, multiplicou os obstáculos no caminho até a aposentadoria.
Mesmo quem chegou lá e recebe um salário mínimo no início de cada mês tem dificuldade ao fazer compras no mercado.
É o caso de Vera Lúcia Silva dos Santos, de 66 anos, que mora no bairro São Judas. Desde 2019, ela frequenta a fila do Ceagesp para receber alimentos.
“A gente paga R$ 3 em um pé de alface, um absurdo. Ovo, que é o que a gente tinha de mais barato, hoje em dia não compra mais. Carne, nem se fala”, lamenta, enquanto aguarda a doação debaixo de sol.
Se o gás de cozinha é caro para Vera Lúcia, que recebe a aposentadoria, a situação é ainda mais dramática na casa de Aline Silva, de 22 anos.
Moradora do Capão Redondo e mãe de uma filha, ela trabalhava como camareira em um hotel e foi dispensada há pouco mais de um ano, quando começou a pandemia.
“Eu recebo Bolsa Família, e agora auxílio emergencial, mas dependo de ajuda para comprar alimentos”, conta.
Aline vive com a irmã, que tem mais duas filhas.
“Antigamente a gente comia macarrão, ovo, essas coisas. Quando eu estava trabalhando, a gente conseguia dar uma alimentação mais saudável para as crianças. Agora, mudou um pouco.”
“A gente teve que comprar o gás, e só sobrou uns R$ 200 [do auxílio]. Aí, a gente só compra mistura, umas coisas que as crianças precisam, leite, fralda, essas coisas”, acrescenta.
A última parcela do auxílio emergencial, com valor médio de R$ 200, será depositada pelo governo federal em outubro de 2021. A promessa de Bolsonaro é reformular o programa Bolsa Família, aumentando o valor médio do benefício, de R$ 190 para R$ 400, e a abrangência, de 14,7 milhões para 17 milhões de famílias.
Segundo estimativa da Rede Brasileira de Renda Básica, sem o auxílio emergencial e com aumento do custo de vida, o número de beneficiários deveria ser ampliado em pelo menos 7 milhões para ter um impacto significativo.
Pior para quem ficou sem auxílio
Maria Eliane Pereira dos Santos contraiu covid-19 enquanto trabalhava como auxiliar de serviços gerais em uma escola, e hoje está desempregada.
“Estou vivendo de ajuda, de cesta básica. Minha filha trabalha, tem um filhinho, e faz faculdade, não tem condições de me ajudar”, conta a trabalhadora, que chegou a ficar 10 dias internada até se recuperar do vírus.
Aos 52 anos, ela está na 2ª série do ensino fundamental e ganhou um tablet para fazer aulas virtuais na pandemia.
“Tenho muita dificuldade de conseguir emprego porque não sei ler. As pessoas falam ‘então, aguarda em casa que a gente vai ligar’, mas não ligam. Então, cuido dos netos e me viro como posso, faço bico, lavo banheiro, o que precisar”, diz.
A covid fez com que ela revivesse algumas das piores lembranças. Entre elas, o drama de viver na rua com o primeiro filho, até ser acolhida em uma casa, onde foi admitida como empregada doméstica.
Em 2012, Maria Eliane começou a trabalhar como auxiliar de serviços gerais na escola em que a filha estudava. Ganhava R$ 1.040, tinha um vale-alimentação de R$ 400 e uma cesta de R$ 140.
“Eu comprava carne, enchia o freezer para o mês todo. Hoje, a gente come carne duas vezes no mês, e às vezes não tem nem um ovo”, afirma.
“Antes eu pagava luz, água, telefone. Conseguia comprar perfume, roupa, e ainda sobrava uns R$ 200. Rendia muito e dava para sobreviver.”
Há um ano, o contrato da escola com a empresa terceirizada que era funcionária venceu e ela foi desligada.
Como a crise da covid-19 começou durante seu aviso prévio, Maria Eliane não conseguiu acessar o auxílio emergencial até hoje.
Ao deixar a escola, em maio de 2020, a trabalhadora recebeu cinco parcelas do seguro-desemprego, e R$ 2,1 mil por tempo de trabalho, que gastou quase todo em uma geladeira, de R$ 1,4 mil. Logo, começaram as dificuldades.
“Eu falo e me dá até vontade de chorar. Porque eu passei fome na infância. E, depois de 50 anos, reviver isso, ter que depender dos outros para comer, é muito triste. É humilhante demais”, diz.
“Quando eu era mais nova e passei necessidade, não sentia tanto assim. Só sentia falta do que comer. Mas hoje, mãe de família, é muito triste. Vai lá no profundo da gente, dói muito. E saber que o país é tão rico, mas as pessoas ainda passam fome.”
Agronegócio e reforma agrária
Sônia de Jesus é uma das figuras mais conhecidas da fila de doações do Ceagesp. Mãe de um economista, ela tem clareza de que a insegurança alimentar que atinge sua família está ligada à política agrícola do governo brasileiro.
“O que está errado é que o governo não tem controle do agronegócio. O Brasil é muito rico em alimentos, frutas, legumes, mas exporta muito para o exterior. Quando vai para o exterior, o preço já volta em dólar, mais caro”, analisa, a partir das conversas com o filho.
O problema poderia ser amenizado caso o governo investisse em estoques reguladores, segundo um dos criadores do Fome Zero.
“Quando os preços disparam, o governo coloca os seus estoques reguladores no mercado, de forma a aumentar a oferta e cair o preço. Quando o preço está muito baixo – o que pode desestimular o agricultor a plantar para uma próxima safra –, o governo compra estoques de forma a dar sustentação de preço”, explica Walter Belik.
Programas como o PAA previam estoques reguladores a partir de compras da agricultura familiar e da reforma agrária, não do agronegócio.
“Então, ao mesmo tempo em que você resolve um problema estratégico, que é manter estoques, você faz uma política de incentivo à produção de segmentos que você quer aumentar a renda”, acrescenta o economista.
Ana Paula de Souza, da ONG Ação da Cidadania, também lamenta o desmonte do PAA e a redução dos investimentos nos pequenos produtores.
“A agricultura familiar, que coloca alimento na mesa da população, é justamente quem está mais sofrendo, por desinvestimento, enquanto o governo ajuda a financiar o agronegócio, que em geral não produz alimento: produz commodities para exportação”, completa.
Os sentidos da solidariedade
Coordenadora de advocacy da ONG de Betinho, Ana Paula ressalta que doações são importantes, mas não resolvem o problema estrutural da fome no Brasil.
“Uma coisa é você entregar uma cesta básica para uma pessoa que está precisando de uma ajuda emergencial naquele momento. Outra coisa é a gente ver cada vez mais famílias em uma situação permanente de necessidade de alimento”, analisa.
“Não tem como a gente fazer isso se não for através de políticas públicas, que garantam renda básica para essa população, por exemplo”, acrescenta.
Em uma linha de raciocínio semelhante, o padre Julio Lancellotti analisa seu próprio papel na Pastoral do Povo da Rua de forma dialética.
“Com uma mão a gente dá o pão, e com a outra a gente luta. Eu não posso dizer para quem está faminto agora: ‘Vamos esperar a revolução acontecer, a transformação social, a justiça se instalar.’ Até lá, ele morreu. Então, eu preciso dar o pão para ele agora, porque ele tem fome, tem pressa. Mas, tenho que continuar lutando, não posso perder o horizonte da luta”, afirma o religioso.
Walter Belik estima que 60 milhões de brasileiros dependam da solidariedade para se alimentar durante a pandemia. Uma das campanhas de maior abrangência é a Periferia Viva, organizada por militantes de organizações como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD) e o Levante Popular da Juventude.
O cofundador do Fome Zero diz que a crise sanitária e econômica ressalta a importância de políticas públicas que saíram gradativamente da agenda.
“Vemos o MST e outros movimentos organizando cozinhas comunitárias, que são super importantes para garantir que pessoas de baixa renda tenham alimentação saudável. A atividade de preparo de alimentos é distribuída pela comunidade, coletivamente. Isso é super importante”, enaltece.
“Nós tentamos fazer isso no início do Fome Zero, mas por vários motivos não avançou. Este é o momento.”
Em contato permanente com trabalhadores acometidos pela fome, Julio Lancellotti diz que os retrocessos dos últimos cinco anos encerraram um ciclo de esperança, que precisa ser reaberto.
“Eu sinto que o povo está muito cansado, não aguenta mais. Então, a fome é de comida e de sentido de vida”, enfatiza.
“Se, o pouco que tenho para comer, eu como triste e angustiado, isso não me sustenta. Eu preciso comer com esperança”, finaliza.
Edição: Leandro Melito/ Do Brasil de Fato
–
Jaqueline e os filhos só fazem duas refeições ao dia. Foto: Pedro Stropasolas