Natalia Viana: ‘militares acham que deve haver um excludente de ilicitude que seja mais amplo’

Lançando o livro Dano Colateral sobre militarização da segurança pública, a jornalista Natalia Viana foi a entrevistada do 15º episódio do Da Ponte pra Cá: “doutrina do Exército de ocupar territórios no Haiti foi trazida para as favelas do Rio de Janeiro”

por Elisa Fontes, em Ponte Jornalismo

Como uma boa jornalista e repórter, Natalia Viana foi movida pela curiosidade, inquietude e sobretudo pela sensibilidade quando decidiu investigar a presença de militares na vida civil brasileira. O histórico dessa relação passa pelos 21 anos de ditadura militar (1964-1985) que até hoje deixa heranças políticas e sequelas na sociedade. O resultado deste trabalho está no recém-lançado quinto livro da jornalista, Dano Colateral: a intervenção dos militares na segurança pública (selo Objetiva da editora Companhia das Letras, 2021), tema do Da Ponte pra Cá que foi ao ar na última terça-feira (3/8), conduzido pelo diretor de redação da Ponte, Fausto Salvadori. Na live, foram sorteados três exemplares da obra entre os membros do Tamo Junto, programa de apoio à Ponte.

Natalia, diretora e co-fundadora da Agência Pública, carrega uma vasta experiência como repórter investigativa e editora, sendo reconhecida com diversos prêmios. É integrante do Conselho Reitor da Fundação Gabriel García Márquez e bolsista da Fundação Nieman para o Jornalismo na Universidade de Harvard (EUA). Em 2018, a jornalista mergulhou na história recente do Brasil para entender as consequências da atuação de militares na política e na segurança pública diante de diferentes governos.

A decisão de escrever o livro partiu de um caso de 2019 que mexeu com a jornalista: a ação do Exército que disparou 257 tiros contra o carro de uma família no Rio de Janeiro e terminou na morte do músico Evaldo Rosa e do catador de recicláveis Luciano Macedo, que tentava socorrer as vítimas. “A maioria de nós teria medo, sairia de lá correndo. O Luciano Macedo foi até o carro para tentar reanimar Evaldo Rosa. E quando ele se aproxima do carro, porque ele era um homem negro, estava sem camisa, de chinelo e bermuda, foi tido como criminoso e os soldados atiraram nele com um fuzil. É uma violência tão gritante que isso me marcou demais pois depois de atingido, os soldados se recusaram a atender ele prontamente”, recorda.

Segundo a jornalista, a desumanização em torno de Luciano Macedo continua no processo que se arrasta na Justiça por mais de dois anos com a estratégia da defesa dos militares de tentar incriminar o catador. Ao buscar a história de Luciano, Natalia descobriu que naquele momento ele tentava reconstruir sua vida marcada pelo abandono. “É um caso muito exemplar do que é, de fato, a desumanização e a criminalização das pessoas pobres e negras”, ressalta.

A impunidade de militares

Não só Evaldo e Luciano foram vítimas de ações militares. Nos últimos anos, as operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), previstas na Constituição, introduziram a presença do Exército atuando como polícia em favelas. No Rio de Janeiro, o controle dos complexos do Alemão e da Maré, no contexto de preparação para a Copa do Mundo e as Olimpíadas, ficou marcado por abusos e casos de violência contra civis.

No livro Dano Colateral, Natalia entrevista familiares de vítimas, resgata casos que mostram a impunidade de militares e as consequências das GLOs que acabaram reforçando a militarização da segurança pública. Ela analisa que os militares foram ganhando mais poder de negociação e “foi se afrouxando a supervisão pública e civil sobre os crimes que aconteciam”.

Abraão Maximiano, de 15 anos, foi a primeira vítima da ocupação do Exército no complexo do Alemão em 2011. A jornalista conta que durante anos a Justiça Federal e a Justiça Militar batalharam sobre a atribuição do julgamento do caso. Houve uma grande mobilização, até mesmo da Advocacia-Geral da União, o caso acabou sendo reconhecido de competência da Justiça Militar e nenhum soldado envolvido na morte do jovem foi julgado.

Um outro caso de impunidade de militares, destrinchado pela jornalista no livro, é sobre uma ação no Complexo da Maré que deixou o jovem Vitor Santiago paraplégico após o carro em que ele estava com quatro amigos ser baleado pelo Exército em 2015. Um ano depois, o Ministério Público Militar ainda não havia aberto investigações para apurar o crime, o que só foi feito após uma reportagem da Ponte denunciar o caso em 2016. “A Irone, que é a mãe do Vitor, lembra com muita emoção da atuação da Ponte nesse caso”, conta.

“Quando ela finalmente conseguiu ter acesso ao Ministério Público Militar, ela descobriu que o filho dela não estava sendo tratado como vítima e quem estava sendo investigado era o motorista”, prossegue. Irone Maria Santiago só conseguiu expor essa situação após o caso ter ganhado repercussão com a denúncia feita pela Ponte e até hoje espera reverter a decisão na justiça.

Para a jornalista, casos como estes mostram a impunidade de militares que alegam legítima defesa. “Por mais que eles sejam inocentados no final, ir para o tribunal e ser julgado e penalizado traz um desgaste público, traz um desgaste para os soldados. Eles acham que deve haver um excludente de ilicitude que seja mais amplo”, analisa. Um projeto de lei feito pelo governo Bolsonaro prevê esse recurso para os militares.

A doutrina militar do Haiti às favelas

Outro episódio marcante de atuação militar exposta por Natalia em seu livro foi na missão para a estabilização do Haiti promovida pela ONU entre 2004 e 2017. “O que os os comandantes fizeram era criar uma doutrina de Lei e Ordem, criar uma doutrina de ocupar um território, controlado por gangues criminosas, que era o caso do Haiti, e ali impor a ordem, fazer combate, matar. Essa doutrina foi trazida para as favelas do Rio de Janeiro”, explica.

A jornalista diz que a ocupação no Haiti melhorou a reputação dos militares brasileiros, que passaram a aparecer cada vez mais na cena política e na imprensa como especialistas em segurança pública. “O Exército gosta de atuar e passou a atuar. 30 mil solados brasileiros passaram pelo Haiti”, destaca, lembrando que dos nove comandantes da operação, seis fizeram parte do governo Bolsonaro.

Na opinião de Natalia, “militares não devem participar de política. Eles têm uma visão militarizada do mundo e vivem em uma instituição extremamente hierarquizada”. Durante a live, ela também comenta sobre o capitulo que descreve a formação dos militares: “eles passam por um processo de doutrinação, que é muito violento, para se tornaram soldados e beira a tortura mesmo”.

Uma das entrevistas mais aguardadas de Dano Colateral é com o general do Exército Sérgio Etchgoyen, que atuou como ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) no governo Michel Temer (MDB), e se destacou no período do impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), criticando publicamente a Comissão Nacional da Verdade. “Ele foi o homem forte e foi quando se arquitetou a intervenção federal e militar no Rio de Janeiro, coisa que nunca tinha acontecido desde a redemocratização. É importante lembrar que quem foi o interventor foi o general Braga Netto, que hoje é ministro da Defesa”, aponta Natalia.

Augusto Heleno: o general fala com líder de grupo de apoiadores do ex-presidente haitiano Jean-Bertrand Aristide sobre a rota que uma manifestação deveria tomar em 29 de março de 2005 (Daniel Morel/Reuters)

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