“É como se a gente nem pertencesse a Dourados”, diz liderança sobre abandono

Por Thalyta Andrade, no Dourados News

Em continuidade à série de reportagens sobre o cenário de calamidade social sob o qual a comunidade indígena de Dourados vive e que teve mais um caso de grande repercussão com a brutal morte da menina Raíssa, de 11 anos (relembre aqui), hoje o Dourados News aborda o que seria o elo principal nessa cadeia crescente de violência: a falta de políticas públicas sociais.

Raíssa era uma menina que não frequentava a escola, vivia junto de adultos sem ocupação ou renda, de outras crianças e adolescentes, em um barraco de lona onde não haviam camas, acesso à água, acesso ao básico para se viver com dignidade. No entanto, havia o acesso fácil ao que é a ‘fuga’ da realidade para muitos nas aldeias: álcool e drogas. E esse inevitavelmente é um dos recorrentes combustíveis para diversos crimes e atrocidades, como a que aconteceu com a indígena kaiowá.

“A situação é assustadora, onde uma criança totalmente indefesa é vítima de membros da própria comunidade. É muito cruel tudo isso. Outro fator é a questão da ausência de políticas públicas e sociais. No caso da Raíssa, por exemplo, a família é totalmente vulnerável. O álcool predomina, a droga também. De modo geral, temos um grande número de pessoas, de jovens e crianças que não têm mais sonhos. São inúmeras barreiras sociais que acabam estourando no indivíduo. E isso acontece com qualquer cidadão. Tira sua moradia, estudo, acesso à água, trabalho, suas oportunidades. É claro que a única saída será o álcool e as drogas. Esse contexto social é gravíssimo aqui na reserva e acaba se desdobrando em fatos como esse”, destacou o líder indígena da etnia terena, Fernando Souza.

Segundo Fernando, uma equipe de voluntários da própria comunidade deu amparo à família da menina, com utensílios básicos mais emergenciais. No entanto, a situação é crítica em vários níveis. Além disso, há várias outras crianças que também podem ter sido vítimas de abuso ou violência sexual, já que Raíssa era estuprada desde os cinco anos de idade pelo próprio tio.

“O que chega de casos ao nosso conhecimento é a ponta de um iceberg, na minha opinião. E obviamente a gente encaminha e dá de alguma forma um suporte. Mas, não é suficiente. Tem outras crianças lá na família da Raíssa que podem ser vítimas de violência também. A situação da família é desumana. O que a nossa equipe encontrou por lá foram pessoas em extrema vulnerabilidade e que necessitam com urgência de acompanhamento. Mas, igual a essa, temos centenas na mesma condição. Precisamos evitar que novos casos aconteçam. Estamos cansados de falar e ninguém ouvir, porque nosso grito e clamor não tem encontrado eco suficiente. E a gente vem há anos gritando por melhorias mínimas que sejam garantidas para essas famílias”. 

Um ‘município’ invisível dentro de outro município

São quase 16 mil indígenas que vivem nas aldeias Jaguapiru e Bororó. O contingente populacional torna a reserva de Dourados a maior em área urbana no país. O número de habitantes supera o de muitos municípios de Mato Grosso do Sul. Mas, a assistência pública que há em outros locais, nem se compara a realidade das aldeias.

A área de 3,4 mil hectares reúne ainda outro fator que gera conflitos: a mistura étnica, com a presença do terena, do guarani e do kaiowá. 

“Cada etnia tem o seu modo de vida e tradições que diferem uma da outra. Então essa convivência não é totalmente harmônica. E não tem válvula de escape, é uma reserva fechada onde o conflito se desencadeia aqui mesmo. Se olhar no orçamento do município, o que tem para a população indígena? É como se a gente nem pertencesse a Dourados. São 39 municípios do nosso Estado que não tem o tamanho de população que temos aqui, mas tem rede de esgoto, coleta de lixo, água 24h saindo pela torneira, segurança pública. É uma invisibilidade muito grande e precisamos romper isso”.

Diante da situação de abandono, vislumbrar um futuro melhor é complicado. E conviver com o preconceito, com imagem que muitos têm sobre o índio não se importar com nada ou não sentir a dor da perda brutal de uma filha, por exemplo, é difícil.

“Isso não é verdade. Qualquer ser humano sofre, tem dor, sentimentos, necessidades básicas, só que as oportunidades são diferentes. Lá na cidade todo mundo tem acesso à internet, telefone, meios de comunicação, informação, acesso à polícia. Aqui é tudo mais difícil. Então algumas pessoas às vezes têm dificuldade de entender isso e acham que os índios não ligam para o que acontece, não se importam. Não é isso. A dor é a mesma, o sentimento é o mesmo. O que nos diferencia é a oportunidade”.

Quando questionado sobre o futuro dos indígenas de Dourados, Fernando se emocionou. Há muitos anos falando como liderança e como ele mesmo disse, tendo a percepção de que a voz e o clamor da comunidade não ecoa, ele foi incisivo.

“É uma pergunta difícil. Não quero ser pessimista, mas eu vejo uma comunidade sendo destruída aos poucos. Essa é a realidade. Precisam acontecer grandes investimentos, a começar a partir da educação. A base é a educação. Fico emocionado porque é o meu povo, eu nasci dentro dessa realidade e me entristece o fato de que estamos na segunda maior cidade do estado de Mato Grosso do Sul e somos invisíveis. Queremos voltar a sonhar, a ter esperança. É isso”, finalizou o líder terena.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Zelik Trajber.

Casa de Reza da Aldeia Jaguapiru, Dourados, queimada. Foto: Diógenes Cariaga

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