por Leila Salim e Raquel Torres, em Outra Saúde
VAI OU NÃO VAI?
Termina na próxima quinta o prazo para sanção presidencial ao projeto de lei que prevê a concessão de licença compulsória para que vacinas e outros insumos protegidos por patentes possam ser produzidos no Brasil enquanto durar a pandemia. E, segundo apurou o Valor, o governo Bolsonaro pretende seguir o script e criar obstáculos a mais essa medida que pode fazer a diferença no combate à pandemia. De acordo com fontes ouvidas pelo jornal, a ideia do Planalto é vetar integralmente o PL 12/21, aprovado no Senado no início de agosto após meses de tramitação (e negociação) no Congresso.
A costura para aprovação do texto conquistou amplo apoio ao projeto na Câmara e no Senado. Segundo a reportagem, parlamentares já se organizam para derrubar o possível veto de Bolsonaro. A ideia de veto integral ao PL teria partido da Casa Civil, que busca contemplar as demandas de rejeição a partes específicas do texto apresentadas pelo Itamaraty e ministérios como Economia, Saúde e Ciência e Tecnologia.
O argumento do Itamaraty contra a medida, defendida por pesquisadores e militantes pelo direito à saúde e acesso a medicamentos, como a organização Médicos sem Fronteiras, é que ela poderia afetar o acordo Trips (da sigla em inglês para Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio), do qual são signatários todos os países membros da Organização Mundial do Comércio (OMC). Mas, como temos falado bastante por aqui, a medida na verdade é prevista no próprio Trips, como um dispositivo a ser utilizado em situações emergenciais.
Sem anular os direitos de propriedade, o licenciamento compulsório suspende temporariamente alguns efeitos da propriedade intelectual. No cenário atual, ele permite que objetos protegidos por patentes, como vacinas e outros medicamentos e insumos usados no combate à covid-19, possam ser produzidos por outros. O que muda, concretamente, é que os “donos” (ou titulares) das patentes perdem o direito de exclusividade sobre esses produtos, cuja fabricação será aberta à concorrência. Mesmo assim, os donos das patentes continuam tendo direito à produção e à venda de tecnologia, além de receberem 1,5% do preço líquido de venda do produto a título de royalties.
UMA VARIANTE, VÁRIOS ALERTAS
A combinação entre avanço da variante delta e flexibilização das (poucas) medidas restritivas segue acendendo alertas sobre o futuro da pandemia, e não apenas no Brasil. Ontem, a OMS qualificou como “muito preocupante” a alta do número de casos na última semana na Europa, o que parece estar sendo agravado pela estagnação da vacinação dos grupos prioritários em alguns países do continente. No continente, 33 dos 53 países que compõem o continente registraram alta de 10% nos casos nas últimas duas semanas. A OMS destacou que o cenário pode levar a mais 236 mil mortes por covid-19 até dezembro por lá.
Por aqui, chegamos a nove semanas registrando quedas sucessivas no número de óbitos e casos de covid em escala nacional – mas, segundo o último boletim do Observatório Covid-19 da Fiocruz, o cenário pode ser alterado e corremos o risco de enfrentar uma alta de casos no fim do ano.
Segundo Carlos Machado, professor da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) e coordenador do Observatório, os números do Rio de Janeiro mostram justamente que o espalhamento da delta somado à flexibilização do que resta de restrições resultam na alteração do cenário positivo. O temor, como já dissemos, é que isso seja um prenúncio do que poderia acontecer em escala nacional em algumas semanas. A taxa de ocupação de leitos de UTI na capital é de 96%, disparada a maior do país. Junto ao Rio, apenas Boa Vista, com 86%, apresenta status “muito crítico” quanto à ocupação de leitos.
Entre 1º e 14 de agosto, segundo o levantamento da Fiocruz, o número de infecções no estado do Rio subiu 3,7%. Além do Rio, só o Espírito Santo apresentou alta no número de casos – e, mesmo assim, de apenas 0,6%. Todos os outros estados registraram queda de infecções. A notícia boa é que, mesmo no Rio, as mortes seguem em queda.
OUTRA ESTRATÉGIA?
A única vantagem que o Brasil tem na corrida contra a Delta é que, agora a população está sendo vacinada com relativa rapidez. Nossos percentuais – mesmo juntando com a parte da população que já foi infectada e possui alguma imunidade adquirida pelo vírus – ainda não são suficientes para evitar uma grande onda, mas não dá para ter certeza do que vai acontecer nas próximas semanas. De todo modo, à medida que locais com ampla cobertura vacinal continuam registrando altos números de casos (ainda que com poucas mortes) de covid-19, vai tomando corpo uma discussão que, acreditamos, deve se tornar cada vez mais importante: a de qual estratégia deve ser adotada para o controle do vírus em cenários de ampla vacinação.
Na semana, Scott Morrison, o primeiro-ministro da Austrália – um dos poucos países a adotar o “covid zero” – disse que vai haver uma guinada nos planos. “Esta não é uma maneira sustentável de viver neste país”, disse ele ao parlamento na semana passada, referindo-se aos bloqueios localizados, mas pesados, às fronteiras fechadas e ao rastreamento incansável de casos e contatos até eliminar cada um dos surtos. Hoje, mais da metade dos australianos estão presos em alguma parte desde junho.
Mas a avaliação é a de que a chegada da Delta dificultou esse controle. Temos visto um esforço muito maior do que o normal para conter os casos em países como China e Vietnã. Embora os números da Austrália ainda sejam melhores do que poderíamos sequer sonhar para o Brasil, são os piores da pandemia no país até agora. O plano, diz a Economist, é aceitar que os casos vão aumentar e, numa medida bem menor, as mortes também. O governo deve começar a flexibilizar as restrições quando 70% da população adulta for vacinada e eliminar quase todas elas quando se chegar a 80%. Singapura está caminhando na mesma direção.
Claro que mesmo esse novo movimento da Austrália e de Singapura ainda é muito conservador se comparado à maior parte dos países que saíram da caverna há muito tempo – ou que nunca estiveram nela. Mas são exemplos extremos que ajudam a pensar quais poderão ser as novas metas globais.
AGORA É LÁ
À medida que a pandemia dos “não vacinados” avança nos Estados Unidos, o infeliz fenômeno da busca por ivermectina começou a se pronunciar no país. Nas últimas semanas, o número de prescrições chegou a 88 mil por semana, contra 3,6 mil antes da pandemia, segundo o CDC (o Centro de Controle e Prevenção de Doenças). É uma moda comparável à da hidroxicloroquina no ano passado.
Em alguns lugares, o antiparasitário está em falta e, aparentemente, a situação está mais complicada do que jamais ficou no Brasil: segundo o New York Times, médicos estão alertando sobre um número crescente de pessoas obtendo a droga em lojas de produtos para gado, onde às vezes a droga é vendida em forma líquida ou pastosa, altamente concentrada. Com isso, as pessoas ingerem uma dose até 15 vezes maior do que a apropriada para humanos.
Embora não haja evidências de que a droga é eficaz contra a covid-19, ela não apresenta grandes problemas de segurança. Mas quando usada assim, em doses (literalmente) cavalares, a coisa muda de figura. Os casos de intoxicação quintuplicaram em relação a julho. No Mississipi, 70% das ligações para o centro de controle de envenenamentos este mês foram de pessoas que tinham se intoxicado por tomarem ivermectina de uso animal. Não foi à toa o tuíte recente da FDA (equivalente à Anvisa no país) que rodou o mundo: “Você não é um cavalo. Você não é uma vaca. Sério, pessoal, parem com isso”, postou a agência.
O mais triste é que a população tem a seu alcance doses de sobra da única coisa que realmente faz sentido querer usar na pandemia: imunizantes. O Mississipi é o estado com o menor percentual de vacinados do país.
COMO É?
O governo de São Paulo não vai finalizar a entrega da CoronaVac até hoje, como João Doria havia prometido em fevereiro. Já foram entregues 92,85 milhões de doses, faltando 7,15 milhões para fechar a quantidade total acordada. O novo lote vai ser entregue só até o fim de setembro, como estava previsto no contrato inicial (antes da antecipação divulgada pelo governador).
O curioso é o motivo dado pelo diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas para isso: de acordo com ele, a mudança se deve ao fato de o Ministério da Saúde ter excluído a CoronaVac como opção de vacina para a terceira dose de idosos e imunossuprimidos. “Estamos reprogramando porque temos outros contratos para serem previstos, com outros estados e até mesmo outros países, e portanto não vamos finalizar a entrega do montante de 54 milhões [previstos no segundo acordo feito com o Ministério da Saúde, totalizando assim 100 milhões] até o final de agosto. As 100 milhões de doses serão entregues antes do final de setembro, o mais rápido possível, mas dentro dessa nova realidade, porque o Ministério tem a cada dia dado notícias no sentido de descaracterizar, descredenciar a vacina, então vamos repensar o cronograma”.
Uma pena para os estados.
NOVA NA ÁREA
Cientistas sul-africanos identificaram uma potencial variante de interesse nova do SARS-CoV-2, a C.1.2. Ela foi detectada pela primeira vez em maio e, desde então, apareceu na maioria das províncias do país e em alguns países da África, Europa, Ásia e Oceania.
O que ela tem de diferente que pode causar preocupação? Segundo o artigo, há mutações associadas a uma maior transmissibilidade e ao escape de anticorpos. Mas atenção: até agora não existe nenhuma indicação de que ela seja, de fato, mais transmissível ou de consiga evadir a imunidade. A C.1.2 não aparece como variante de interesse nem de preocupação no monitoramento da OMS; segundo Maria Van Kerkhove, líder técnica da entidade, foram relatadas cerca de cem amostras da variante no mundo todo e ela não parece estar em alta circulação.
Mas não custa reforçar que novas variantes têm mais chance de aparecer onde o vírus circula muito. A África do Sul tem 15% de sua população com alguma dose de imunizante e 9% totalmente vacinada.