por Leila Salim e Raquel Torres, em Outra Saúde
MESMA VACINA, RESULTADOS MELHORES
A malária mata 400 mil pessoas todos os anos. É uma das principais causas de morte no mundo, embora sua distribuição seja desigual: de longe, as maiores vítimas são crianças africanas com menos de cinco anos de idade. Para comparação, a covid-19 matou cerca de 200 mil africanos até agora. Mas, mesmo após 30 anos de pesquisas, só existe uma vacina contra a malária (que começou a ser usada em um projeto-piloto muito recentemente, em 2019). E ela ainda deixa a desejar, porque evita apenas 30% dos casos graves e seu desempenho cai com o tempo.
No entanto, um novo ensaio clínico de fase 3 usou essa mesma vacina – chamada RTS,S – de formas diferentes, e obteve resultados encorajadores publicados no New England Journal of Medicine. Eles sugerem que uma nova estratégia pode reduzir nada menos que 70% das mortes pela doença.
Como a eficácia desse imunizante é maior nos primeiros meses após a vacinação, os cientistas experimentaram aplicá-lo em crianças pequenas um pouco antes do início das chuvas, em áreas onde a malária surge na estação chuvosa. Atualmente, há uma prática de prevenção que envolve a administração mensal de medicamentos antimaláricos comuns durante as chuvas – é a quimioprevenção sazonal da malária. No novo ensaio, a equipe viu que uma dose de vacina funcionou tão bem quanto a campanha com os remédios.
Só que o melhor desfecho foi o de um braço do estudo que uniu as duas estratégias, com crianças recebendo tanto as vacinas como os remédios. Nesse caso, houve uma redução dos casos em cerca de 62%, das hospitalizações em 70% e das mortes em 73%. Além disso, combinação também se mostrou segura. “Nem em nossos sonhos teríamos imaginado essa possibilidade“, diz um dos autores, Daniel Chandramohan, no Medscape Medical News.
O estudo envolveu ao todo 6,8 mil crianças que foram acompanhadas por três anos, e foi conduzido por pesquisadores da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, do Instituto de Pesquisa em Ciências da Saúde em Burkina Faso e da Universidade de Bamako em Mali. Os resultados foram consistentes ao longo dos três anos e nos dois países (Burkina Faso e Mali).
Em outubro, os órgãos consultivos mundiais para imunização e malária vão revisar as evidências sobre a RTS, S disponíveis para considerar a possibilidade de a OMS recomendar o uso ampliado do produto em toda a África. “Vimos com a covid-19 o que a comunidade global de saúde pode realizar quando se une para lutar contra uma doença mortal. Seria uma boa reviravolta ver a África emergir da pandemia com uma nova ferramenta para enfrentar o velho inimigo da malária com vigor renovado”, escreve o ex-ministro da Saúde da Etiópia Kesete Admasu no Health Policy Watch.
Em tempo: também estão em curso pesquisas promissoras com vacinas de RNA contra a malária, mas elas não estão tão avançadas.
NADA BONS
A Johnson & Johnson encerrou o ensaio clínico de uma vacina contra o HIV depois que os primeiros dados mostraram pouca proteção: no estudo envolvendo 2,6 mil mulheres jovens de cinco países da África Subsaariana, a eficácia contra infecções foi de pouco mais de 25%.
Essa é apenas a última de uma sequência de derrotas contra esse vírus, como lembra o New York Times. A frustração dos pesquisadores é tocante: “Eu deveria estar acostumada a isso agora, mas você nunca se acostuma – você ainda coloca seu coração e alma nisso”, disse Glenda Gray, que revisou os protocolos do estudo, preside o Conselho de Pesquisa Médica da África do Sul e há mais de 15 anos tem trabalhado para desenvolver um imunizante contra o HIV. Apesar dos baldes de água fria, ela afirmou que “cada tentativa fracassada nos diz algo” e que, ao contrário dos outros, esse estudo revelou vislumbres de eficácia, o que poderia permitir aos pesquisadores “projetar uma vacina melhor no futuro”.
Quanto à J&J, a farmacêutica vai continuar com outra pesquisa para um imunizante semelhante, mas envolvendo outra população: 3,8 mil pessoas, entre homens que fazem sexo com homens e pessoas trans, nas Américas e na Europa.
O JULGAMENTO DE HOLMES
Começou ontem a escolha do júri para o julgamento de Elizabeth Holmes – uma ex-querdinha do Vale do Silício que prometia revolucionar diagnósticos médicos, substituindo exames de sangue feitos em unidades especializadas por kits portáteis que precisariam apenas de poucas gotas para doenças como diabetes ou o vírus HIV. Sua startup, a Theranos, levantou centenas de milhares de dólares para desenvolver o método e chegou a ser chegou a ser avaliada em US$ 9 bilhões. Em 2015, com apenas 30 anos, Holmes se tornou a mulher mais jovem a entrar na lista da Forbes das 400 pessoas mais ricas dos Estados Unidos. Sua fortuna foi estimada em mais de 4,5 bilhões de dólares.
Mas aquele também foi o ano em que seu castelo de cartas começou a ruir, quando o repórter do Wall Street Journal John Carreyrou passou a investigar a empresa. Já havia especialistas apontando indícios (veja aqui e aqui) de que as promessas de Holmes não se sustentavam, mas o trabalho de Carreyrou mostrou que não havia nada sólido debaixo da propaganda e das reportagens entusiasmadas sobre a Theranos. Quase todos os exames foram na verdade realizados por máquianas compradas da Siemens, empresa com a qual a startup pretendia competir. Para completar, vários dos resultados estavam errados. Era fraude. A história virou livro (Bad Blood: Secrets and Lies in a Silicon Valley Startup) e filme (A Inventora: à procura de sangue no Vale do Silício).
Holmes foi acusada pelo governo dos Estados Unidos em 2018. O julgamento já deveria ter começado, mas foi adiado primeiro por conta da pandemia e depois porque ela engravidou. Agora, ela pode ser condenada a 20 anos de prisão. Seus advogados pretendem alegar que a fraude não foi deliberada, e que e seu ex-sócio e ex-namorado Ramesh Balwani teria sido o responsável por enganar investidores, médicos e pacientes.
REABERTURA DIFICULTADA
O cenário do direito à educação durante a pandemia na América Latina foi discutido em reportagem do El País, que destaca o alerta do Unicef quanto à situação. “Três de cada cinco meninos e meninas que perderam um ano escolar no mundo durante a pandemia vivem na América Latina e no Caribe”, diz o relatório regional do fundo da Organização das Nações Unidas para a infância. A matéria traz um bom panorama das dificuldades — e desigualdades – enfrentadas pelos países da região para garantir a reabertura das escolas com segurança.
Falta de água nas escolas, salas de aula pequenas ou sem ventilação, professores mal pagos e sobrecarregados, cobertura vacinal incipiente, sistemas de saúde precarizados e falta de acesso à internet são apenas alguns dos problemas relatados. Na Venezuela, país que mantém as escolas fechadas há mais tempo, foi anunciado o retorno presencial em outubro – mas apenas 4% da população recebeu as duas doses da vacina contra a covid. Já a Colômbia, que anunciou para setembro a volta às aulas presenciais, tem hoje mais da metade das escolas públicas fechadas e segue vivenciando protestos populares contra as medidas de retirada de direitos sociais anunciadas pelo governo. Os sindicatos da educação convocaram manifestações contra o retorno presencial.
No Peru, têm falado mais alto os problemas de infraestrutura. De acordo com a reportagem, dados oficiais dão conta de que somente na capital, Lima, mais de 14,6 mil escolas não têm condições de garantir as medidas de proteção contra a covid-19 ou ficam em bairros com alta transmissão do vírus. No Equador, que conduziu o retorno às atividades presenciais de forma voluntária, apenas 27 mil alunos, de um total de 4,4 milhões, têm frequentado a escola regularmente. O México pretende reabrir as escolas na semana que vem, para todos os níveis de ensino. Convocados, professores e estudantes têm demonstrado resistência à medida, diante da falta de condições sanitárias e do atraso do salário de muitos docentes no contexto da crise.
Também na próxima semana voltam as aulas na Argentina, depois de um ano e meio de medidas excepcionais. O Uruguai, que foi o país da América do Sul que manteve as escolas fechadas por menos dias em 2020, vive novamente um momento de controle das infecções após o pico registrado em março deste ano. A volta às aulas presenciais ocorreu junto com a previsão de inclusão dos adolescentes na campanha de vacinação. Também com alta cobertura vacinal, o Chile reabriu 74% das escolas, mas de maneira desigual. A volta tem ocorrido mais nas instituições particulares e menos nas públicas e mistas, aprofundando as desigualdades que o projeto neoliberal cristalizou no sistema educacional do país.
O Brasil, que ficou sem ensino presencial por 13 meses (salvo exceções em algumas cidades e estados), tem experimentado o retorno nas escolas públicas desde agosto deste ano, em ritmos e calendários específicos para estados e municípios. Como temos discutido, o Ministério da Educação não fez o dever de casa e, no mesmo tom da condução criminosa da pandemia pelo governo Bolsonaro, se absteve da elaboração de soluções para as políticas de educação no contexto da crise sanitária. A formulação e implementação de protocolos como uso de (boas) máscaras, promoção de ambientes ventilados e seguros, monitoramento de infecções, orientações sobre isolamento e testagem acessível, entre outros, não foram priorizadas pelo Ministério, aprofundando disparidades regionais e dentro dos próprios estados e municípios.
Por aqui, seguimos com os esforços para garantir e cobrar segurança nas escolas. Hoje, nossa editora Raquel Torres vai abordar esse tema ao lado dos especialistas Vitor Mori (membro do Observatório COVID-19 BR e pós-doutorando na Universidade de Vermont) e Bruno Perazzo (Tecnologista da COGIC/Fiocruz e engenheiro mecânico com doutorado pela Coppe-UFRJ). A live, promovida pela Escola Politécnica da Fiocruz, começa às 16h. É só chegar (e chamar todo mundo que se interessar pelo direito à educação).
MAPA DA DESIGUALDADE
Um ótimo levantamento do Nexo, sistematizado a partir de dados do Our World in Data e do Banco Mundial, mostra em que pé está a vacinação contra a covid ao redor do mundo, reforçando o abismo entre países pobres e ricos sobre o qual temos falado insistentemente por aqui. Os números gerais indicam que, até 29 de agosto, mais de 5,2 bilhões de doses contra a covid-19 haviam sido aplicadas em todo o mundo, totalizando 26,7% da população mundial totalmente vacinada e 39,7% parcialmente vacinada.
A discrepância quanto aos níveis de renda da população, seguindo a classificação utilizada pelo Banco Mundial a partir do PIB per capita, sublinha o apartheid vacinal: os países de renda alta e média alta, juntos, concentram 79,8% do total de vacinas aplicadas no mundo. Na outra ponta, os países de baixa renda têm apenas 0,3% do total de doses de imunizantes aplicadas. Os cerca de 20% restantes estão nos países de renda média baixa. A disparidade aparece também quanto ao início das campanhas vacinais: os países de baixa renda só começaram a vacinar três meses – e muitas mortes – depois dos ricos.
É DIFERENTE
Diante da posição da OMS em sobre a terceira dose de vacinas contra covid-19 – a de que é um erro técnico, moral e político –, questionamos aqui se realmente seria errado oferecer doses extras apenas a quem, segundo as evidências disponíveis, continua vulnerável após o regime inicialmente estabelecido. Em outras palavras, se não haveria uma diferença relevante entre dar uma terceira dose aos mais vulneráveis e aplicar um reforço em toda a população.
Pois na segunda-feira a divisão europeia da entidade sinalizou que sim: “Uma terceira dose da vacina não é um reforço de luxo retirado de alguém que ainda está esperando pela primeira injeção; é basicamente uma forma de manter os mais vulneráveis seguros”, disse Hans Kluge, diretor regional da OMS para a Europa.
A declaração soou contraditória, e a Folha pediu uma explicação à direção-geral da OMS. A resposta foi que, embora a prioridade global seja distribuir primeira e segunda doses a países com baixas taxas de imunização, o pedido de adiamento dos reforços se refere à população geral, e não às “pessoas imunocomprometidas que não responderem suficientemente às suas doses iniciais ou não estiverem mais produzindo anticorpos”. Isso porque “dados emergentes” mostram que, nesses casos, a dose extra pode salvar vidas.
PARA MONITORAR
A OMS incluiu uma cepa descoberta na Colômiba – a Mu – em sua lista de variantes de interesse. Ela foi identificada pela primeira vez em janeiro e tem um conjunto de mutações que indicam potencial para escape imunológico; dados preliminares mostram uma redução na capacidade de neutralização do soro de convalescentes e vacinados, semelhante ao que foi observado na variante Beta (aquela que surgiu na África do Sul). Isso, no entanto, precisa ser confirmado por estudos.
Até agora, foram detectados 4,5 mil casos da Mu em 39 países. A prevalência global é pequena e tem diminuído – corresponde hoje a 0,1% das amostras sequenciadas –, mas, na Colômbia (39%) e no Equador (13%) ela está crescendo. Os caminhos da Mu na América do Sul e seu comportamento junto com a Delta vão ser monitorados.
NA BOCA DO CAIXA
A sessão de ontem da CPI da Covid puxou mais fios na trama do suposto esquema de pagamento de propina e desvio de verbas públicas no Ministério da Saúde. Sob os holofotes, mais uma vez, estão o ex-diretor de Logística Roberto Dias e a empresa VTCLog. A novidade são boletos que, somados, chegam a R$ 47 mil, emitidos em nome de Dias pela Voetur – grupo proprietário da VTCLog – e que teriam sido pagos pelo motoboy da própria empresa. Os senadores acreditam que as movimentações financeiras podem ser parte do esquema para esconder o sistema de pagamento de propinas e desvio de verbas.
Estava previsto o depoimento de Ivanildo Gonçalves da Silva, o motoboy que teria realizado os pagamentos. Ele foi convocado como testemunha depois de vir a público a informação de que teria feito saques e transportado quase R$ 5 milhões em dinheiro vivo. A ideia da comissão era “seguir o dinheiro” e entender os detalhes das movimentações suspeitas, chegando aos receptores das verbas e aos motivos das transações. No entanto, um habeas corpus expedido pelo ministro Nunes Marques, do Supremo Tribunal Federal (STF), frustrou esses planos: o motoboy foi desobrigado de comparecer à sessão.
A comissão ainda tentou, às pressas, convocar a CEO da VTCLog, Andréia Lima, que alegou ter outros compromissos e também não compareceu. Enquanto os senadores discutiam a sequência dos trabalhos da CPI, o relator Renan Calheiros (MDB-AL) apresentou um vídeo que, segundo ele, traria “indícios veementes” de que o motoboy Ivanildo seria o responsável pelo pagamento dos boletos de Dias. As imagens registram a sua entrada no banco nos dias 10, 22 e 24 de junho, mesmas datas em que foram pagos boletos no nome do ex-diretor de Logística do Ministério da Saúde para a Voetur. Os horários das transações também coincidem com a presença de Ivanildo na agência bancária.
Os personagens e nomes são tantos que vale lembrar: a VTCLog, investigada pela CPI, é suspeita de irregularidades em contratos com a Saúde. Uma delas é referente a um aditivo de R$18 milhões pago pelo ministério à empresa. A quebra de sigilo telefônico de Dias pela CPI revelou numerosas e insistentes ligações para a CEO da VTCLog, o que só reforçou os questionamentos. A empresa é responsável pelo transporte de medicamentos e outros insumos e, atualmente, é encarregada da distribuição de vacinas no Programa Nacional de Imunizações (PNI).
Os senadores acreditam que o esquema na Pasta seja anterior à pandemia, remontando à gestão de Ricardo Barros (deputado pelo PP-PR e atual líder do governo na Câmara) como ministro. Foi Barros quem extinguiu, em 2018, a Central Nacional de Armazenamento e Distribuição de Imunobiológicos, estrutura do ministério responsável pela logística de distribuição de vacinas e outros insumos, e colocou a VTC em seu lugar. Para melhorar: a empresa já era suspeita de superfaturamento em contratos com o próprio Ministério da Saúde, assinados em 1997 e 2003, cujo valor somaria, em em números corrigidos, a R$ 16 milhões, segundo o Tribunal de Contas da União.
ATLAS DA VIOLÊNCIA
Saiu ontem o Atlas da Violência 2021, que pela primeira vez traz dados sobre indígenas e pessoas com deficiência. A publicação aponta que mais de dois mil indígenas foram assassinados entre 2009 e 2019 no Brasil, e que nesse período a taxa de mortes violentas de indígenas aumentou 21,6%. Só em 2019, foram 113 assassinatos e 20 homicídios culposos. O número total de casos de violência contra indígenas naquele ano foi de 277 – o dobro do registrado em 2018.
O Atlas contabilizou 7.613 casos de violência contra pessoas com deficiência em 2019, e as mulheres com deficiência intelectual são as mais atingidas. Muitas vezes, o agressor é o próprio responsável.
No geral, os homicídios caíram 21% entre 2018 e 2019. Mas há uma pegadinha: aumentou em 35% o número de mortes violentas por causa indeterminada, que chegou a 17 mil. Há, portanto, 17 mil pessoas que “podem ter sido vítimas de agressões, assassinatos, acidentes ou suicídios, mas entram nas estatísticas como indefinidos e provavelmente puxam os registros de homicídios do país para baixo”, explica a Folha. A qualidade das informações vinha melhorando há mais de 15 anos, mas começou a piorar de novo em 2018. Com isso, a proporção dos óbitos indefinidos sobre o total de mortes por causas externas dobrou, passando de 6% em 2018 para 12% em 2019, Detalhe: em países desenvolvido, ela fica abaixo de 1%.