Diferentemente de outros momentos históricos, hoje “não há projeto econômico ou social para o país”, lamenta o historiador
Por Patricia Fachin, no IHU
Se fosse começar a reunir elementos para contar a história presente do Brasil, o historiador Jorge Ferreira confessa: “Não tenho imagens edificantes para a escrita da história de nossa época”. Segundo ele, apesar de o Brasil ter vivido momentos políticos difíceis, como o suicídio do presidente Getúlio Vargas, a renúncia de Jânio Quadros e duas décadas de ditadura militar, hoje “vivemos um momento muito difícil na história da sociedade brasileira”. Ele explica: “Pela primeira vez, a extrema direita assumiu o governo do país. Durante a ditadura militar, havia um governo autoritário, cujo poder estava com as Forças Armadas e a administração a cargo de tecnocratas civis. Atualmente vivemos um período em que se mantiveram, pelo menos formalmente, as instituições da democracia-liberal, mas conjugada a um projeto de destruição” do tecido social.
A era atual, sublinha, é particularmente perigosa porque está destruindo a nossa “capacidade de lidar com opiniões e correntes de pensamento divergentes, resultando no ódio e na mentira como instrumentos da prática política”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o historiador comenta alguns aspectos abordados em sua palestra virtual no IHU, intitulada “O contexto da Legalidade e seus legados para a democracia brasileira“, ministrada em 02-09-2021. Entre eles, Ferreira destaca as interpretações equivocadas da história que ainda perduram na sociedade brasileira e ressalta a importância de homens públicos, que foram esquecidos pela história e hostilizados pelos seus opositores políticos. “Vale ressaltar também outro esquecido e pouco valorizado, apesar de sua firme atuação na luta contra a ditadura militar: Ulysses Guimarães. Os setores de direita e conservadores preferem esquecê-los por razões bem justificadas: todos eles foram democratas convictos e alguns defenderam reformas sociais. Mas setores das esquerdas também contribuem para o esquecimento: afinal, todos eles atuaram no marco da democracia-liberal”.
Jorge Ferreira é professor aposentado titular de História do Brasil da Universidade Federal Fluminense – UFF. É doutor em História Social pela Universidade de São Paulo – USP.
Confira a entrevista.
IHU – Na palestra, o senhor reiterou que na historiografia há poucos estudos sobre a Campanha da Legalidade e o período que corresponde aos anos de 1945 a 1961 em comparação com outros acontecimentos históricos subsequentes porque esse momento é associado ao populismo. De onde surgiu essa associação?
Jorge Ferreira – Os conceitos são invenções do intelecto humano. E “populismo” é um conceito inventado por intelectuais para compreender a história política do país. Trata-se de uma ferramenta teórica para analisar e compreender o passado. Nesse sentido, “populismo” existiu se o estudioso adota o conceito. Se não adota, se o considera elástico em demasia, não houve “populismo” algum na história política brasileira.
Campanha da Legalidade: evento político e tema historiográfico
A Campanha da Legalidade pode ser compreendida como um evento político e como tema historiográfico. Como evento político, a Campanha da Legalidade foi silenciada durante a ditadura militar. Com a redemocratização do país, as elites políticas também silenciaram sobre o evento. O motivo é que Leonel Brizola surge como nome de destaque do movimento pela legalidade. Sendo ele candidato à presidência da República, partidos políticos como PMDB, PT ou PCB deram continuidade ao silêncio, evitando reconhecer seu papel positivo naquele episódio.
A Campanha da Legalidade, como evento político, surgia tão somente nos programas de propaganda política do PDT. Era o momento, talvez único, em que se lembrava à sociedade brasileira daquele acontecimento. Desse modo, o movimento pela legalidade, enquanto evento político, repito, ficou muito associado ao PDT e a Leonel Brizola.
Mas a Campanha da Legalidade como tema historiográfico também foi ignorada pelos historiadores. Não pelos jornalistas, justiça seja feita a eles. O primeiro livro sobre o tema surgiu em 1986, de autoria de Amir Labaki, mesmo assim em texto de divulgação [1]. Foram precisos mais 16 anos para que um livro de excelente qualidade, no tocante à pesquisa e interpretação, viesse a público, como o de Paulo Markun e Duda Hamilton, de 2001 [2]. Mais 11 anos, em 2012, e outro jornalista, Flávio Tavares, publicou livro em que pesquisa jornalística e suas próprias memórias atuaram em conjunto [3]. E entre os historiadores? Ao que parece, somente historiadores do Rio Grande do Sul se interessaram pelo tema. A começar pelo professor, jornalista e militante do PDT Joaquim Felizardo que, em 1988, publicou livro de divulgação sobre a Legalidade [4]. Cito também Juremir Machado da Silva, com livro de 2021 [5]. Consultando o Catálogo de Teses e Dissertações da Capes, utilizando como palavras-chave “campanha da legalidade” ou “legalidade”, não encontrei um único trabalho de mestrado ou de doutorado sobre o tema. Quero acreditar que, nesse caso, a ausência é devido a problemas com o sistema de busca. Fora do Rio Grande do Sul, talvez eu tenha sido aquele que tenha pesquisas e publicações sobre a Campanha da Legalidade [6].
E por que o desinteresse dos historiadores? Por duas razões. Primeira, pela utilização do conceito de “populismo”. Se entre 1945 e 1964 existiu a “República Populista”; se nessa república havia “massas” que não se viam como classe; se tais “massas” eram guiadas – e ludibriadas – por líderes cínicos, embora super conscientes, há de se perguntar: para que estudar o período? Com imagens tão desqualificadoras, é absolutamente desestimulante para jovens historiadores se dedicarem ao período. Segunda, pela aproximação, perversa a meu ver, entre o tema historiográfico e as supostas posições políticas do historiador. Se o historiador tem como temas de pesquisa a Campanha da Legalidade, o PTB ou as trajetórias de Brizola e Goulart, imediatamente ele é acusado de ser um “trabalhista”, “janguista” ou “brizolista”. O objetivo, claro, é desqualificar o profissionalismo do historiador, sugerindo que o engajamento político se sobrepõe às exigências do ofício. Portanto, se no primeiro caso é desestimulante estudar a Campanha da Legalidade, no segundo caso é algo temerário.
Eu defendo que a Campanha da Legalidade não é propriedade de nenhum partido ou personalidade política. É um evento político e um tema historiográfico que pertencem à sociedade brasileira, que faz parte de sua história e de suas lutas por uma sociedade mais democrática e justa.
IHU – Em outra entrevista que nos concedeu, o senhor comentou que a palavra conciliação é atrelada à figura de Goulart: “Na verdade, ‘Política de Conciliação’ foi criada, em 1964, pela esquerda para criticar a maneira de governar de Jango”. Qual o significado da expressão na época e seus efeitos hoje?
Jorge Ferreira – A palavra “conciliação” adquiriu, entre nós, particularmente entre organizações de esquerda, carga muito negativa. Sobretudo a conhecida “política de conciliação”, associada especialmente ao governo de João Goulart. Acredito que nós, historiadores, devemos contextualizar políticas de conciliações, compreendendo que elas, em determinadas épocas e sociedades, podem ter resultados positivos ou negativos. Exemplo: Na África do Sul, Nelson Mandela saiu do cárcere em fevereiro de 1990 e propôs a instituição de uma democracia multirracial no país, superando décadas de ódios entre brancos e negros. Eleito presidente, implementou uma Justiça de Transição, mas seu governo foi de conciliação política. Em sua perspectiva, propostas de confronto provocariam guerra civil, resultando em carnificina similar àquela que ocorreu em Ruanda. Mandela patrocinou uma “política de conciliação” com resultados positivos.
Mas também temos exemplos negativos. É o caso argentino com a Lei de Ponto Final, de 1986, eximindo militares que durante a ditadura torturaram e assassinaram opositores. A sociedade argentina não aceitou que os responsáveis por cerca de 30 mil “desaparecidos” ficassem livres de responsabilidades. Esse é um exemplo de “política de conciliação” negativa. Sob forte pressão de diversas organizações da sociedade, o Congresso Nacional e a Corte Suprema de Justiça revogaram a malfadada Lei. Quero dizer com isso que “políticas de conciliação”, a priori, não são nem negativas ou positivas. Elas devem ser contextualizadas.
Política de conciliação do governo Jango
Goulart, ao assumir o governo, tinha objetivo definido: unir no Congresso Nacional os dois maiores partidos políticos, o PTB e o PSD, além de partidos menores, como o PSB, isolando a direita, sobretudo setores da direita golpista organizados na UDN. Goulart sabia que para governar era necessário ter maioria parlamentar no Congresso Nacional. Segundo seus planos, a maioria de centro-esquerda aprovaria as reformas. Reformas que não seriam tão à esquerda como queria o PTB e as esquerdas, mas não tão tímidas como queria o PSD. As reformas seriam negociadas e pactuadas por acordos e compromissos pela coalizão de centro-esquerda. Contudo, para as organizações de esquerda, sobretudo o Partido Comunista, a Frente de Mobilização Popular liderada por Leonel Brizola, o grupo político de Miguel Arraes e o Comando Geral dos Trabalhadores, o PSD era considerado partido de direita. Por esse motivo, exigiam que Goulart rompesse com os pessedistas e governasse exclusivamente com as esquerdas. Goulart resistiu em romper com o PSD, pois perderia maioria parlamentar no Congresso Nacional. Desse modo, ele passou a ser acusado de implementar uma “política de conciliação”. Quer dizer, “conciliação” com a direita, visto que o PSD era compreendido dessa maneira pelas esquerdas. Ao final, Goulart cedeu às exigências das esquerdas, afastando-se do PSD e formalizando sua aliança com as esquerdas e o movimento sindical no comício da Central do Brasil, em 13 de março. Para as esquerdas, chegava ao fim a “política de conciliação”.
IHU – Por que, na sua avaliação, as três crises anteriores a 1964 não podem ser compreendidas como ensaios para se chegar ao golpe de 64? Qual é o equívoco interpretativo dos historiadores que aderem a essa leitura?
Jorge Ferreira – O equívoco é chamado de teleologia. Trata-se do seguinte: ao estudar determinado período no passado, o historiador conhece o futuro daquela sociedade. Por exemplo, ao estudar temas do período 1945-1964, ele sabe que o período de democracia representativa é encerrado com o golpe de 1964. A narrativa teleológica é encadear os acontecimentos para chegar ao final já conhecido. A armadilha é articular os eventos para chegar ao fim que o historiador sabe, mas que os personagens da época não poderiam saber. Teleologia, enfim, é afirmar que o golpe de 1964 foi inevitável. Nessa afirmação está implícito que se tratava de acontecimento inexorável, irremediável, praticamente um destino. Ora, o golpe de 1964 aconteceu e não há como alterar o passado. Mas se aconteceu, poderia não ter acontecido, ou acontecido algo diferente – não há como saber. Personagens e instituições da época não poderiam saber o que aconteceria em seu futuro. Daí o equívoco na afirmação de Tancredo Neves: “Vargas, ao se suicidar, adiou o golpe de 1964 por dez anos”. Trata-se de típica narrativa teleológica. Ninguém, em 1954, nem mesmo Vargas, poderia saber que haveria um golpe em 1964. Vargas sustou um golpe que estava em curso – e não impediu outro, o de 1964.
Narrativa teleológica, nesse sentido, é afirmar que as crises de agosto de 1954, de novembro de 1955 e de agosto/setembro de 1961 foram “ensaios”, “prévias”, para o que ocorreu em 31 de março e 1º de abril de 1964. Em 1954 houve um movimento civil e militar para depor Vargas e prendê-lo em um cárcere. A humilhação do mito político desmoralizaria o projeto político, o trabalhismo. Não havia projeto de ditadura militar, como a de 1964. Em novembro de 1955, o mesmo grupo civil e militar tentou impedir a posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek. É importante observar que o Exército, enquanto instituição, comandado pelo Ministro da Guerra, general Henrique Teixeira Lott, impediu o golpe que estava em curso. Note que nove anos antes do golpe de 1964, o Exército defendeu a continuidade do processo democrático, garantindo a posse de JK. A crise de 1961 nos mostra que não havia Forças Armadas coesas e homogêneas, prontas para golpear a democracia. Ao contrário, o Exército se dividiu. O III Exército, com jurisdição no Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, alinhou-se pela legalidade. Há dúvidas se o II Exército iria aderir ao golpe dos ministros militares. Diversos oficiais militares em outros estados foram para Porto Alegre clandestinamente se apresentar ao general Machado Lopez, enquanto outros manifestaram sua posição aos comandantes pela legalidade, mesmo sabendo que seriam punidos com a prisão. Na Aeronáutica, os sargentos alinharam-se pela legalidade e imobilizaram aviões de caça.
As pesquisas nos mostram que as Forças Armadas, antes de 1964, eram plurais. Havia oficiais militares, nas três forças, com diversas conformações ideológicas: de direita e de esquerda. Havia militares conservadores, reacionários e golpistas, mas havia também comunistas, janguistas, brizolistas e legalistas. Enquanto no Exército a divisão era vertical, na Marinha e na Força Aérea Brasileira – FAB a divisão era horizontal: oficiais de direita e subalternos de esquerda, sobretudo os sargentos da Aeronáutica e os marinheiros e fuzileiros da Marinha de Guerra. Havia brigadeiros comunistas, como o brigadeiro Francisco Teixeira, e brizolistas, como o almirante Aragão. Havia, inclusive, militares anticomunistas, mas nacionalistas, legalistas e reformistas, como o caso do general Henrique Teixeira Lott. Portanto, é um equívoco apontar os militares como organização homogênea e golpista ao longo da experiência democrática de 1945-1964. A mudança ocorre com o golpe de 1964. O grupo vencedor dentro do Exército realizou um expurgo dos militares de esquerda e nacionalista. A partir daí o grupo dominante passou a ser de militares conservadores e direita. Nesse sentido, não se deve compreender a configuração do Exército pós-1964 como a mesma para o período anterior.
IHU – Quais personagens e lideranças democráticas importantes da história brasileira entre 1945 até a reabertura foram completamente esquecidas ou não são lembradas com a devida importância histórica que tiveram?
Jorge Ferreira – Vários são os personagens que têm sido relegados ao silêncio e ao esquecimento. A começar pelo marechal Henrique Teixeira Lott. Militar nacionalista e legalista, ele foi importante liderança no Exército. Desarticulou a tentativa de golpe em novembro de 1955, defendeu a legalidade em 1961 e, durante o golpe de 1964, posicionou-se contra a derrubada de João Goulart da presidência. Hoje é personalidade completamente esquecida. Cito também João Goulart, lembrado de maneira negativa pelas direitas e esquerdas. Juscelino Kubitschek também é outro relegado ao silêncio. Vale ressaltar também outro esquecido e pouco valorizado, apesar de sua firme atuação na luta contra a ditadura militar: Ulysses Guimarães. Os setores de direita e conservadores preferem esquecê-los por razões bem justificadas: todos eles foram democratas convictos e alguns defenderam reformas sociais. Mas setores das esquerdas também contribuem para o esquecimento: afinal, todos eles atuaram no marco da democracia-liberal.
IHU – De outro lado, quais são as narrativas equivocadas que ainda são repetidas no país?
Jorge Ferreira – Ainda ouvimos jargões que se reproduzem pela inércia. Por exemplo, afirmar que a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT é uma cópia da Carta del Lavoro, do Estado fascista italiano. Essa afirmação veio a público por meio dos jornais durante o ano de 1945, formulada por político opositor a Vargas. O objetivo era desqualificar as leis trabalhistas, associando-as ao fascismo. Na época, não houve nenhum estudo, nenhuma pesquisa. Foi um ataque político à legislação social. Mas a analogia entre os dois documentos perdurou por anos.
Outra afirmação que se repete é a de que Vargas criou o PTB para evitar que os trabalhadores aderissem ao PCB. Estudos demonstram que um partido de viés getulista voltado para os trabalhadores estava sendo gestado desde 1942. E a grande popularidade de Vargas não seria desperdiçada em período de democracia representativa sem um partido de caráter trabalhista. Muitas outras interpretações, que desconhecem a pesquisa historiográfica, ainda são reiteradas, a exemplo de que o Partido Comunista Brasileiro, durante todo o governo de João Goulart, apoiou o presidente, ficando a seu reboque.
No campo das direitas, há a versão, absolutamente equivocada, de que João Goulart era comunista ou que haveria um golpe comunista em curso no país em 1964. Ou ainda que os militares souberam administrar o país durante a ditadura. Basta ver a brutal concentração de renda que herdamos do modelo econômico da ditadura que transformou o Brasil em um dos países mais injustos do mundo. Ou ainda a versão, completamente ilusória, de que não houve corrupção durante a ditadura militar. Finalizo com jargão muito utilizado pelas direitas, criticando os gastos com a educação pública, em todos os níveis, do básico ao superior. Durante a campanha eleitoral para presidente da República, em 1994, Fernando Henrique Cardoso questionou Leonel Brizola por defender o projeto dos Centros Integrados de Educação Pública – CIEPs, alegando que eram caros. A resposta de Brizola foi certeira: “Caro é a ignorância”.
IHU – Como avalia a atuação das Forças Armadas hoje, depois de mais de 30 anos da reabertura?
Jorge Ferreira – A configuração das Forças Armadas é completamente diferente. Primeiro, pelo motivo que expus anteriormente: com o golpe de 1964 houve um expurgo dos militares de esquerda, com o domínio de grupos direitistas, conservadores, autoritários e antidemocráticos. Com o desprestígio das Forças Armadas ao final da ditadura, a cúpula militar negociou com a oposição liberal-democrática a saída do poder, não sem antes decretar anistia que impediu qualquer punição aos responsáveis pelas torturas e assassinatos. Durante a presidência de Sarney, os militares tutelaram o governo. Surpreendentemente, as Forças Armadas perderam o prestígio no governo Collor, com a extinção do Serviço Nacional de Informações – SNI e o corte de verbas para o custeio dos quartéis.
O governo Fernando Henrique Cardoso criou o Ministério da Defesa, com um civil no comando. Mas tanto em seu governo quanto no de Luiz Inácio Lula da Silva, as corporações militares não conheceram nenhuma mudança. Os currículos nas escolas militares continuam inalterados. Os alunos aprendem que em 1964 os comunistas tomariam o poder e que as Forças Armadas levaram adiante uma revolução democrática. Também aprendem que os militares são mais competentes em termos profissionais que os civis. Nada foi alterado. Naqueles dois governos, qualquer mudança que causasse insatisfação militar era sustada – tanto por FHC, quanto por Lula.
O diferencial veio com Dilma Rousseff e a convocação da Comissão Nacional da Verdade – CNV. A convocação da CNV criou forte animosidade dos militares com o Partido dos Trabalhadores, cujo resultado vimos em 2016. Os militares de hoje são outros, quando comparados ao período anterior ao de 1964, mas também com os militares da própria ditadura. Atualmente não há projeto nacionalista algum. Não há projeto econômico ou social para o país. Submetidos ao domínio das teorias neoliberais, a oficialidade pouco se importou com a quase venda da Embraer – criação deles próprios.
IHU – Como o senhor imagina que o momento recente do país entrará para a história?
Jorge Ferreira – Vivemos um momento muito difícil na história da sociedade brasileira. Pela primeira vez, a extrema direita assumiu o governo do país. Durante a ditadura militar, havia um governo autoritário, cujo poder estava com as Forças Armadas e a administração a cargo de tecnocratas civis. Atualmente vivemos um período em que se mantiveram, pelo menos formalmente, as instituições da democracia-liberal, mas conjugada a um projeto de destruição, em que as leis sociais e trabalhistas são desmanteladas, permitindo a perversa aproximação do desemprego com o trabalho precarizado; a destruição das riquezas naturais do país, sobretudo o desmatamento da Amazônia e as queimadas no Pantanal, além do desmonte do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama e da liberação do garimpo em terras públicas e dos indígenas; a destruição dos pilares da educação pública e da drástica redução de investimentos em ciência e tecnologia; a destruição de uma crença difícil de ser elaborada e partilhada socialmente, a de que a vacinação é necessária para conter doenças contagiosas; a destruição, enfim, da capacidade de lidar com opiniões e correntes de pensamento divergentes, resultando no ódio e na mentira como instrumentos da prática política. Não tenho, portanto, imagens edificantes para a escrita da história de nossa época.
Notas:
[1] LABAKI, Amir. 1961 – A crise da renúncia e a solução parlamentarista. São Paulo: Brasiliense, 1986. (Nota do entrevistado)
[2] MARKUN, Paulo; HAMILTON, Duda. 1961: que as armas não falem. São Paulo, Senac, 2001. (Nota do entrevistado)
[3] TAVARES, Flávio. 1961 – O golpe derrotado. Luzes e sombras do movimento da legalidade. Porto Alegre: L&PM, 2012. (Nota do entrevistado)
[4] FELIZARDO, Joaquim. A legalidade – Último levante gaúcho. Porto Alegre: editora da UFRGS, 1988. (Nota do entrevistado)
[5] SILVA, Juremir Machado da. Vozes da legalidade: política e imaginário na era do rádio. Porto Alegre: editora Sulina, 2012. (Nota do entrevistado)
[6] FERREIRA, Jorge. “A legalidade traída: os dias sombrios de agosto e setembro de 1961”. In Tempo. Revista do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, vol. 2, no 3, junho de 1997. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1997, pp. 149-182. (Nota do entrevistado)
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Imagem: Jorge Ferreira (Foto: UFJF)