Vetos de Bolsonaro à lei de quebra das patentes beneficiam indústria e prejudicam cidadãos

Para coordenador do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual, Jair Bolsonaro barrou “os pontos mais importantes do projeto”; vetos devem ser avaliados amanhã (30/09)

Por Laura Scofield, Agência Pública

Na quinta-feira (30), o Congresso Nacional pode derrubar os vetos do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ao PL 12/2021, que permite a quebra temporária das patentes de vacinas e medicamentos em meio a emergências sanitárias, como a pandemia de covid-19. 

O projeto de autoria do Senador Paulo Paim (PT/RS) foi apresentado em fevereiro e aprovado em agosto pelo Congresso, de onde seguiu para a Presidência, que o sancionou com cinco vetos na data limite. Para Felipe de Carvalho, coordenador do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI), e da campanha de acesso do Médicos Sem Fronteiras no Brasil, “os vetos desequilibraram o projeto”, garantindo benefícios às empresas enquanto as isenta de responsabilidades.

Bolsonaro desmontou “os pontos mais importantes do projeto” e trouxe incerteza quanto à possibilidade da lei ser aplicada durante a pandemia de covid-19, avaliou Carvalho. Ao contrário do que estabelecia a proposta original, que determinava o prazo de 30 dias desde a sanção para as mudanças começarem a valer, o governo declarou que a medida ainda não tem validade já que “as vacinas estão sendo devidamente fornecidas pelos parceiros internacionais”. O licenciamento compulsório só será uma opção quando a empresa proprietária da patente “se recusar ou não conseguir atender à necessidade local”, de acordo com nota do governo. 

Carvalho explica que a lei original poderia, além de agilizar a vacinação no Brasil, ampliar a imunização em países mais pobres onde, até o final de agosto, apenas 0,3% das vacinas contra a covid-19 no mundo haviam sido aplicadas. “Abre uma janela para o Brasil ter um papel humanitário, um papel de apoio a países que tiveram alguma dificuldade na vacinação e não tiveram condições de produzir”, explica. Um dos artigos já aprovados garante que o país pode exportar (vender ou doar) os produtos gerados a partir do licenciamento compulsório. 

Bolsonaro também retirou os artigos que definiam as responsabilidades das empresas, entre elas a obrigação de compartilhar todas as informações necessárias para que os produtos sejam reproduzidos. “A gente vai ter acesso a informação que está lá na patente, mas provavelmente vai ser uma informação insuficiente para que um produtor nacional possa tentar desenvolver aquilo”, aponta Carvalho.

“Essas empresas receberam rios de dinheiro para vacinas, muitas receberam dinheiro antes da liberação e produção das vacinas. Lucraram com esse mercado e não estão dando conta de abastecer todo mundo”, argumenta o coordenador. “Muitas delas não podem nem dizer que inventaram a vacina, as vacinas vieram de institutos públicos, então o conhecimento que foi gerado coletivamente está sendo apropriado pelas empresas que não querem abrir mão, não querem compartilhar nada”, finaliza. 

Felipe de Carvalho considera que os artigos vetados por Bolsonaro são de “evidente interesse público” e só trariam vantagens ao governo. Dessa forma, Bolsonaro age alinhado aos interesses das farmacêuticas e contrário à tendência mundial já que, ainda em maio, o presidente democrata Joe Biden, dos Estados Unidos, declarou apoio à medida, logo seguido pelo Parlamento Europeu. 

“Muitas vezes a licença compulsória é tratada como se fosse uma medida extrema, uma medida radical, e não é nada disso”, defende.

Para Felipe de Carvalho, coordenador do GTPI e do MSF, a quebra de patente das vacinas poderia agilizar a vacinação não só no Brasil, como em países mais pobres – Arquivo pessoal

Leia a entrevista na íntegra:

Do que estamos falando quando abordamos o tema de quebra de patentes ou licenciamento compulsório?

A quebra de patente é uma medida de saúde pública. É voltada para ampliar o acesso da população a um tratamento essencial, a uma vacina, alguma tecnologia de saúde que seja essencial para responder a alguma doença. Na época que a gente estava vivenciando a pandemia de AIDS, ficou claro que as regras globais de patenteamento tinham um impacto muito grande nas políticas sociais e de saúde, elas dificultavam o acesso, porque tornavam os medicamentos mais escassos, mais caros, direcionavam a pesquisa para áreas mais lucrativas e não para doenças que estão mais ligadas a países mais pobres. Foram sendo criadas várias distorções por conta dessas regras de propriedade intelectual, que precisavam de um contrapeso, que os governos tivessem algum recurso para proteger a saúde pública. 

A licença compulsória é justamente o equilíbrio do sistema. Você tem um monopólio que está dificultando o acesso, você suspende temporariamente esse monopólio, e aí você pode abrir mais opções de compra pro governo e criar alguma estratégia mais sustentável para responder a uma determinada situação de saúde pública. 

Quebra de patentes e licença compulsória são sinônimos?

A gente não gosta muito do termo quebra de patentes, porque dá a ideia de que é um rompimento de contrato. Não é isso, é um licenciamento de fato, só que ele é compulsório, porque ele não depende da vontade do dono da patente. Não é uma quebra, a patente continua válida, a única coisa que é interrompida é o poder de monopólio. 

Que tipo de informação deve ser compartilhada por meio da licença compulsória?

O funcionamento ideal do sistema de patente é que dentro do documento tivessem já todas as informações necessárias para que aquela invenção fosse reproduzida. Era pra ter realmente a receita, o passo a passo, todos os detalhes. Mas infelizmente não é bem assim, a gente vê muitos pedidos de patente que são de baixa qualidade, não descrevem totalmente tudo que é necessário para que aquela invenção seja reproduzida. Cada vez mais as empresas estão deixando informações vagas nas patentes, e as informações mais essenciais ficam sob segredos industriais, que é outra forma de propriedade intelectual. 

O que pode ter motivado o surgimento do PL?

O espírito do projeto tem muito a ver com uma resposta a essa crise [no Brasil], e também a essa situação mundial que está perdurando até hoje em vários países. Tem uma desigualdade mundial que está evidente, e o Brasil tentou encontrar um caminho para responder a isso. É muito bem vindo, é uma referência para outros países. 

A gente está apelando para o uso dessas medidas obrigatórias porque as empresas já tiveram milhões de oportunidades de fazer um compartilhamento voluntário. A OMS criou um mecanismo de compartilhamento, mas nenhuma dessas que está fabricando vacinas se interessou, se envolveu, respondeu aos apelos. Agora a OMS anunciou que vai tentar fazer o que a gente chama de engenharia reversa da vacina da Moderna, ou seja, realmente pegar a vacina pronta, desmontar e tentar entender como faz. Eles precisam fazer isso, porque a Moderna não concordou em compartilhar esse conhecimento. É o jeito mais difícil, o caminho mais longo. 

Qual a avaliação do grupo sobre o PL que chegou nas mãos do presidente para ser sancionado, antes dos vetos?

O PL estava bastante equilibrado, ele passou por um processo muito longo de deliberação, tanto no Senado quanto na Câmara. Ele propõe um licenciamento compulsório amplo, é algo novo, é você começar o processo a partir de uma lista de produtos. Tem também muitas vantagens para as empresas, aquelas que têm algum acordo com o governo podem sair dessa lista [de produtos a serem licenciados]; e as empresas que porventura tiverem a suas patentes licenciadas vão receber royalties e compensações, então é muito equilibrado para elas. 

[O PL] cria uma nova estratégia, que é voltada para ser mais rápida, mais efetiva e mais ampla. Uma grande vantagem é a definição de prazos. Se houve declaração de emergência, depois de 30 dias tem que ter uma lista de tecnologias, e depois de 30 dias tem que ter uma decisão. Hoje a gente já tem licenciamento compulsório do Brasil, mas fica muito a critério do Poder Executivo quando vai acontecer. Com esses prazos têm algum nível de controle, de cobrança, de pressão. 

Outra coisa que é muito bacana é a consulta à sociedade. O funcionamento do sistema de patentes afeta muitas pessoas, principalmente aquelas que precisam de tratamento, e a gente tem lutado durante anos para que as vozes dessas pessoas sejam escutadas, porque elas também são partes interessadas na aprovação de uma patente. Com a lei, uma vez que tiver a lista, instituições públicas, universidades, e quem representa a sociedade civil tende também a sugerir inclusões. É um processo mais democrático e com prazos bem claros.

Quais foram os vetos do presidente?

No artigo 2º foram cortados o parágrafo 8, 9 e 10, que estabeleciam as obrigações das empresas, como a transferência de conhecimento; e o parágrafo 17, uma medida de controle que permitia que o Congresso Nacional também pudesse declarar por lei a licença compulsória. O quinto e último veto foi o artigo 3º, que falava da pandemia de Covid-19 e criava clareza dos prazos.

O artigo sobre transferência de conhecimento, que foi vetado, havia sido colocado para impedir que as empresas omitam detalhes importantes para a produção, correto? 

Isso. Não faz sentido que o conhecimento que pode salvar tantas vidas fique preso em barreiras legais. Se você tem um vírus e ele está se multiplicando, criando variantes, e você tem um conhecimento capaz de deter esse vírus, ele não pode ficar preso em barreiras jurídicas. É esse o nosso apelo moral pras empresas ou pros governos que têm o poder de fazer esse compartilhamento acontecer. Tem que ser o pacote completo. Se as informações estão na patente, no segredo industrial, em copyright, acho que é menos importante. A mensagem é: os conhecimentos essenciais precisam ser compartilhados. Se são as empresas que têm essas informações, que obrigações e que responsabilidades devem ter nesse momento? É isso que a nova lei tentou colocar, mas é justamente esses pontos que estão sendo vetados. 

De que forma os vetos do presidente afetaram o projeto?

As empresas têm uma série de vantagens, compensações [financeiras], e a única responsabilidade que foi colocada pra elas é de compartilhar o conhecimento, e aí isso foi removido. Por isso a gente acredita que os vetos desequilibraram o projeto.

Hoje a gente vive um contexto onde as empresas decidem tudo que vai acontecer, que países vão comprar, por que preço, em que quantidade, quando é a entrega… Elas têm um poder de decisão muito grande, e o mínimo que a gente pode fazer é colocar algumas responsabilidades também para que a gente consiga cobrir as lacunas que elas estão deixando. A gente precisa de mais produtores para cobrir lacunas que são reais e estão causando mortes e sofrimento a todo momento. 

Além da questão das empresas, o artigo 3º também representa um problema dos vetos. Era ele que deixava mais explícito que essa lei vale para a pandemia de Covid-19, porque a lei é para qualquer emergência de saúde, estado de calamidade, etc. Quando tiver declaração de emergência, 30 dias começam a contar, só que no caso da Covid esses 30 dias já passaram, então o artigo esclarecia esse ponto e dizia que no caso da covid seria 30 dias a partir da aprovação da lei.

Mas a lei ainda pode valer para a pandemia Covid-19, mesmo sem o artigo 3º?

A gente acredita que a lei ainda é válida para Covid-19, obviamente, isso é evidente, mas sem esse artigo fica essa incerteza em relação aos prazos, o que é muito ruim. Isso colabora para que o governo seja omisso e realmente não aplique da maneira que deveria. Esse era um ponto forte da lei que foi enfraquecido. Os vetos prejudicam bastante, mas ficam algumas melhorias na lei. 

Que tipo de melhorias?

Por exemplo, uma situação que a gente tem é que a licença compulsória realmente só funcionava pra quando você tinha uma patente já aprovada, concedida, e esse projeto traz a noção de que um pedido de patente também precisa ser licenciado. Às vezes, ele ainda está em exame, mas já cria um obstáculo para outros produtores. Tem também esse avanço da participação da sociedade civil e essa ideia da lista, de você não fazer um licenciamento compulsório caso a caso, e sim pegar um grupo de produtos que servem para uma determinada crise e licenciar todos ao mesmo tempo. 

Então houve melhorias que já são ganhos importantes, mas a gente precisa ver isso na prática. Para ver isso na prática tem essa incerteza dos prazos, o compartilhamento, tudo isso precisa vir junto.

Os artigos já aprovados da lei ainda não estão sendo aplicados porque o governo considerou que as necessidades do Brasil estão sendo atendidas. Isso faz sentido?

É uma coisa questionável também, a gente tem empresas que não tem o abastecimento realmente significativo no Brasil, tem algumas dificuldades de negociação que são publicamente conhecidas, então a gente acha que essa visão também é distorcida. E agora está começando a se desenhar a crise do acesso a tratamentos. O que há de melhor, o que está comprovado e recomendado, não chega em países como o Brasil. Ou chega muito caro, só se tem na rede privada. Não se pode dizer que para a Covid está tudo resolvido.

Era esperado que essa fosse a postura do presidente? Que os vetos fossem feitos?

Era esperado, porque ao longo de toda a tramitação e em todas as votações o governo foi contra, na Câmara e no Senado. A gente não sabia se seria um veto total, um veto parcial, e acredito que o governo fez algumas concessões e acabou optando pelo veto parcial. Mas é um veto parcial que realmente desmonta talvez os pontos mais importantes do projeto.

Ao vetar esses artigos, quais interesses que Bolsonaro parece estar atendendo? Quem se beneficia?

[Bolsonaro] está muito alinhado com o discurso da indústria farmacêutica, de que os segredos industriais precisam ser preservados, que está tudo sob controle, que vai ter quantidade suficiente. A gente fica à mercê das decisões das empresas para saber se a gente vai conseguir responder ou não à pandemia nos próximos anos. 

Essas empresas têm colocado que não precisa de nenhuma medida de compartilhamento, que elas estão expandindo, mas na verdade elas estão expandindo a sua própria rede, os seus próprios lucros, os seus próprios interesses, não necessariamente é o interesse comum da saúde pública que elas estão favorecendo. A tendência, inclusive com a dose de reforço, é cobrar mais caro, é isso que elas estão fazendo nos Estados Unidos e na Europa. Cada vez menos países vão conseguir acompanhar esse movimento, então a gente vai continuar nessa situação de exclusão da maior parte da população mundial, e privilégio para uma pequena parcela. É alinhado basicamente com esse discurso das empresas, a gente vê basicamente esse paralelo.

Eu acho que, no fundo, o que essas grandes empresas temem é que nesse modelo mais aberto de compartilhamento de conhecimento e com mais colaboração as coisas funcionem melhor, porque se isso acontecer o velho modelo que elas defendem [de produção de vacinas] entra em xeque. Desde 2020, estamos no modelo estabelecido pelas grandes empresas, são elas que definem tudo e que estão ali dizendo que tudo está sob controle. Se o modelo de colaboração funcionar, essas empresas ficarão com seus argumentos totalmente invalidados.

Vocês têm conhecimento de algum tipo de pressão e de lobby por parte da indústria farmacêutica para que Bolsonaro tomasse essas decisões?

Bom, isso às vezes é difícil vir a público. O que se tornou público foi uma carta que uma associação de proteção intelectual lá dos Estados Unidos fez pro presidente Biden pedindo que ele interviesse e defendesse que essa lei fosse vetada. É de uma associação de propriedade intelectual que se você olhar os membros têm lá a Pfizer. Muitas vezes é através de associações e grupos de interesse que a mensagem dessas empresas é passada. Tem aqui no Brasil a Interfarma, que sempre se posiciona, dizendo que o Brasil não deve usar licenciamento compulsório, que isso é uma medida desnecessária e tudo mais. E a Interfarma representa as grandes empresas, Astrazeneca, Johnson & Johnson, Pfizer. Saiu também uma nota dizendo que alguns parlamentares europeus se posicionaram pedindo para manter os vetos, mas a gente sabe que isso é uma minoria do parlamento europeu. Provavelmente foi uma carta de um grupo pequeno de parlamentares e quem fez o trabalho provavelmente foram organizações [Consumer Choice Center e da Frente Parlamentar pelo Livre Mercado, que apoiaram a carta] que têm esse perfil de lobby para os interesses da indústria farmacêutica. 

Por que o Bolsonaro estaria atendendo aos interesses das indústrias farmacêuticas?

A gente entra no terreno das suposições, a gente não sabe. Mas realmente não faz sentido.O problema está muito bem definido, e essa lei vai no X da questão. Pro governo só tem vantagens. Você tem mais opções de compra, então se uma empresa não pode te abastecer, você pode comprar de outra empresa e já tem genéricos de alguns tratamentos que estão aí. Para as vacinas, se tiver realmente essa necessidade de dose de reforço, vacinação regular, você precisa de uma estratégia mais sustentável, com mais fornecedores, mais produção nacional, mais possibilidade de importação. 

Só tem vantagens, o governo tem melhores condições de negociação de preço, com transparência, mais garantia de sustentabilidade para o SUS, mais segurança para proteger a população, para levar saúde. Realmente o interesse público é muito evidente, é muito claro. Agora qual interesse está fazendo contrapeso não dá pra saber.

Uma palavra que aparece na justificativa do Executivo para esses vetos é que poderia gerar insegurança jurídica, e esse termo tem sido uma espécie de palavra-chave dos argumentos do governo. Você vê alguma verdade nessa justificativa?

O que a gente tem hoje é uma insegurança jurídica para as empresas que poderiam estar produzindo mais vacinas e mais tratamentos. Elas não podem porque tem patentes, se elas infringirem algumas patentes elas vão comprar uma briga com a Pfizer, com a Astrazeneca, que são empresas poderosas, com muito recurso. Eu inverto, na verdade é o contrário: hoje a gente vive, com esses monopólios, uma insegurança jurídica para os produtores alternativos que poderiam estar contribuindo pra gente sair dessa situação, desse drama, dessa escassez, da exclusão e das pessoas sem acesso.

De que forma as terceiras doses, que podem representar mais vendas por parte das atuais vendedoras, dialogam com esse cenário? Existe alguma relação com a resistência ao PL e o licenciamento compulsório?

Tem relação sim. Primeiro a gente concorda totalmente que a gente precisa atingir uma equidade global verdadeira, porque tem muitos países onde nem profissionais de saúde, nem pessoas de maior risco estão vacinadas ainda. Isso é urgente, a urgência número um é vacinar públicos prioritários ainda não vacinados. 

Se for confirmado que existe realmente necessidade de algum reforço, isso é pra um momento posterior, mas quando esse momento chegar isso pode significar justamente aumento de preço, situações de novo de falta de opção de compra, então esse projeto já se antecipa a esse momento. Se a gente vai precisar comprar todo ano, como é que a gente vai fazer isso? Vamos ficar refém de poucas empresas que ora têm [vacinas] ora não têm e mudam os preços? Ou a gente vai manter um leque maior de opções? É uma preparação para essa possível necessidade de vacinação regular ou dose de reforço, o que pode ser uma necessidade a longo prazo.

Uma lei de licenciamento compulsório no Brasil poderia impactar também outros países? Uma lei nacional pode ajudar a ampliar a vacinação em países que hoje enfrentam dificuldades?

Sim, por vários motivos. O Brasil é um país com um grande volume de compra, é o maior sistema público de saúde do mundo. Então muitas vezes quando o Brasil faz uma negociação ou compra um produto genérico, que seja qualificado e validado, isso cria economias de escala. Os produtores conseguem baixar mais ainda os preços e conseguem com isso fazer melhores ofertas para outros países, principalmente países em desenvolvimento, que tem um orçamento mais limitado. Tem um impacto que o Brasil historicamente tem na composição global dos preços. Se a gente faz uma compra volumosa tem o poder de baixar os preços internacionais. 

Além disso, esse projeto também autoriza o Brasil a usar essa licença compulsória para exportar para outros países que não tenham capacidade própria de produção. 

O quão desenvolvidas estão as iniciativas internacionais sobre o tema? Quando os Estados Unidos e o Parlamento Europeu se posicionaram favoravelmente criou-se uma expectativa, mas desde então a situação está se postergando. Em que pé estamos?

A negociação está muito arrastada, ainda existe uma resistência de alguns países europeus, principalmente Alemanha, Reino Unido e Suíça. Na Europa eles estão com um certo conflito, porque a posição do Parlamento Europeu é a favor, mas a Comissão Europeia, que é quem negocia de fato, ainda está se mantendo contrária. Hoje a maior parte do atraso que a gente tem é por conta desses poucos países europeus e da Comissão Europeia que está ali tentando empurrar pra depois e criar dificuldades. 

O ideal seria que a gente já começasse a ver uma negociação de texto, já tem muitos países que concordaram. A gente tem aí um horizonte, porque em novembro vai ter uma reunião ministerial da OMC, Organização Mundial do Comércio, seria um prazo chave para que isso já tivesse aprovado, fosse anunciado, e começasse a ser implementado. Eu espero que em outubro ainda as negociações avancem, para que em novembro essa suspensão possa ser a grande notícia. Seria o ideal, mas há incertezas ainda se vai ser dessa forma.

Um dos argumentos contrários é que a quebra de patentes pode gerar retaliações comerciais, isso faz sentido?

Não tem esse risco, até porque em experiências passadas de licenciamento compulsório essa ameaça de retaliação comercial nunca aconteceu. O Brasil mesmo fez uma licença compulsória em 2007, nunca sofreu nenhuma retaliação, questionamento judicial, enfim, é uma medida legítima. Existe há mais de 100 anos, já foi usada por vários países, então tem um discurso, tem algumas ameaças que são vazias, que são para confundir a opinião pública e fazer uma pressão que não cabe. 

Também não faz sentido o Brasil ter algum temor de que vai ter algum impacto diplomático, porque na verdade seria um alinhamento do Brasil com o que está acontecendo no resto do mundo, não o contrário. 

Outro argumento contrário é que não é simples fazer com que fábricas produzam vacinas criadas por outras empresas e que não daria tempo de adaptar as estruturas para enfrentar a pandemia de coronavírus. Isso faz sentido?

Não faz muito sentido, porque a gente tem uma realidade que é pouco comentada. Nos países em desenvolvimento a gente já tem produtores de vacina muito bem estabelecidos, inclusive mais de 50% das vacinas de várias doenças que hoje estão indicadas na lista da OMS são produzidas por países em desenvolvimento. Febre amarela, sarampo, você tem várias vacinas qualificadas que já são produzidas em países em desenvolvimento. Então tem capacidade. Aí tem que ver a estrutura, cada vacina da Covid segue uma plataforma tecnológica, e pros produtores que já dominam aquela plataforma tecnológica seria mais simples absorver, apreender, adaptar. 

Claro que não é imediato, ninguém está falando que quando aprovar a suspensão de patentes no dia seguinte tem um monte de vacina. Não é assim, mas também não é o prazo que se fala, e ao que tudo indica não é uma doença que vai embora num estalar de dedos. 

E também tem a perspectiva de que se a gente tiver um conhecimento aberto, partilhado, novas colaborações acontecendo, você pode inclusive ter melhorias nas vacinas que já existem. Um novo produtor muitas vezes não só copia, ele também otimiza o processo de produção, melhora alguma característica do processo. Então quanto mais gente atuando, mais colaboração, novos benefícios também pra utilização dessas ferramentas. 

Então a defesa de que a tecnologia seria barrada não faz sentido?

Não. A história mostra isso, teve países que lidaram com a barreira de propriedade intelectual e flexibilizaram que inclusive tiveram melhorias como no tratamento do HIV e AIDS, com combinações novas e novas formas de produzir medicamentos. Você impulsiona, estimula, tem um ambiente mais fértil. 

Existe também um argumento que fala que o problema não é a falta de vacina, e sim a distribuição desigual. E é realmente verdade que existem países que compraram muito mais vacinas do que eles precisam para vacinar a população deles. Como você responde a esses argumentos? 

Quando você tem um cenário de países mais ricos entrando com força nessa história de dados de reforço, isso muda toda conta de bilhões de doses. Tudo indica que o mercado mais interessante para as grandes empresas são os das doses de reforço em países mais ricos que pagam mais caro e negociam prioritariamente. Então, continua desigual. Falta vacina, e a perspectiva é que vai continuar faltando em muitos países. 

Na avaliação do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual, existe chance dos vetos serem derrubados? 

A gente está com a expectativa de que os partidos mantenham as mesmas orientações que tiveram nas rotações anteriores, mantendo o posicionamento em defesa da saúde da população. O que a gente pode apurar dos partidos é que cerca de vinte deles já sinalizaram que vão votar a favor e alguns estão em cima do muro, então estamos conversando para que não votem contra. A gente acha que é bem possível que os vetos sejam derrubados. O nosso pedido é que todos os vetos derrubados voltem ao formato original, e que seja o mais rápido possível.

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