A imagem da covardia. Por Fausto Salvadori 

Newletter da Ponte Jornalismo

Essa foto retrata a covardia. Foi tirada pelo repórter fotográfico Daniel Arroyo, da Ponte Jornalismo, sangrando, com o joelho arrebentado por uma bala de borracha que havia sido disparada pelo retratado, em 16 de janeiro de 2019. O homem da imagem é um covarde: um policial militar que dispara contra um jornalista, no meio de uma manifestação democrática, e se esconde por trás de uma máscara.

Mas não só ele. Há várias camadas de covardia que se entrelaçam nessa imagem. Está estampada ali a covardia do governador João Doria (PSDB) e do secretário de Segurança Pública do estado de São Paulo, João Camilo Pires de Campos, que permitiram a policiais militares atirarem contra pessoas desarmadas, violando as próprias normas da corporação, e esconderem suas identidades para fugir de qualquer responsabilização. Em relação a esses servidores públicos que massacram a mesma população que paga seus salários, o governo autorizou não só que vestissem máscaras, mas os dispensou da obrigação de exibir seus nomes nos uniformes, permitindo que ostentassem códigos alfanuméricos difíceis de serem lidos e impossíveis de serem memorizados por suas vítimas.

As camadas de covardia que feriram meu amigo e colega Daniel Arroyo, com quem tenho a honra de trabalhar há cinco anos, e que definiu o estilo diferenciado de cobertura de protestos feitos pela Ponte, foram muito além do momento em que ele foi baleado, à luz do dia, em plena avenida Paulista. Mais uma vez contrariando as próprias normas da PM, que são letra morta quando se trata de ajudar pessoas, os policiais não isolaram a área, não prestaram socorro a Daniel, não recolheram as armas e munições envolvidas na violência e não registraram as circunstâncias do disparo, nem o número de balas usadas.

Esse vídeo expõe a covardia dos oficiais que comandavam a repressão ao ato. Daniel se dirige aos PMs, sangrando, e expõe seu ferimento. “Desculpa incomodar vocês, mas eu tomei um tiro de bala de borracha”, ele diz. Os policiais covardemente desviam o olhar de Daniel e covardemente fingem não ver o crime que cometeram. À lesão corporal e ao abuso de autoridade, a atitude dos policiais acrescenta mais um crime entre os que praticaram naquele dia: o de prevaricação. Os policiais foram avisados de um crime que havia sido cometido, viram um homem sangrando diante deles, mas preferiram olhar para o outro lado, em mais de um sentido.

As camadas de covardia que cercam essa história chegaram também às investigações feitas pela Polícia Militar e pela Polícia Civl, que não deram em nada. Elas tentam nos convencer de que a PM não tem o controle dos policiais que disparam balas de borracha e que é incapaz de identificá-los, mesmo sabendo o horário e o local do disparo e mesmo dispondo de imagens do policial mascarado que identificam parte do código alfanumérico que ele usava no lugar do nome. Essa alegação convence você? Bom, convenceu a promotora Regiane Vinche Zampar Guimarães Pereira, que pediu o arquivamento do inquérito alegando “míngua de provas suficientes de autoria delitiva”, e o juiz José Fernadno Setinberg, que aceitou a alegação.

A falta de responsabilização para os homens que atiraram em Daniel é uma péssima notícia. Não só para os jornalistas, mas para todos os brasileiros. Como reconheceu nesta semana o Instituto Nobel, ao conceder o Nobel da Paz para dois jornalistas, a filipina Maria Ressa e o russo Dimitry Muratov, a defesa da liberdade de expressão é “precondição para a democracia e a paz duradoura”.

Quando governos atiram num jornalista, buscam limitar os fatos e histórias que você precisa conhecer. Por isso, a violência contra jornalistas empobrece a circulação de ideias, estreita o debate público, limita as possiblidades de um país. O tiro que o governo Doria disparou, e pelo qual ninguém foi responsabilizado, não atingiu apenas Daniel Arroyo. Atingiu você.

Fausto Salvadori é Diretor de redação da Ponte Jornalismo

Escondido sob a máscara, o PM que atirou no repórter fotográfico Daniel Arroyo | Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo.

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