O ideário do nazismo e do fascismo só pode ser combatido “por uma sociedade esclarecida, afetiva e que, intelectualmente, se organize dentro de princípios de solidariedade, direitos e redistribuição das riquezas”, diz o pesquisador
Por: Patricia Fachin, em IHU
A massa, a partir da compreensão de pensadores como Freud e Adorno, “é um corpo social e orgânico, formado por indivíduos que se identificam solidariamente e se associam a um líder”. Ela pode apresentar comportamentos sociais “construtivos e amorosos” ou ser “a expressão da destruição e do ódio”. No decurso da história, ela se manifestou e se manifesta de muitos modos: “Está presente na igreja, no exército, no campo de futebol, nos comícios políticos de esquerda e direita, nos grupos que se autodenominam getulistas, lulistas e mesmo bolsonaristas” e “no movimento de rua que organizou as manifestações do ‘forabolsonaro'”, explica Luís Carlos Petry.
O pesquisador apresentará as relações existentes entre a psicologia das massas do nazi-fascismo e os grupos bolsonaristas nesta quinta-feira, 14-10-2021, na palestra virtual intitulada “A psicologia das massas do nazi-fascismo e a realidade atual da ultra-direita”, promovida pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU. O evento, que inicia às 17h30, será transmitido na página eletrônica do IHU, nas redes sociais e no Canal do IHU no YouTube.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao IHU, Petry comenta alguns aspectos que serão abordados na palestra, especificamente o ideário da massa que se organiza em torno do presidente Jair Bolsonaro, e que constitui “um percentual de 15% da população”. “Nós temos no Brasil grupos organizados que postulam ideologias nazistas, fascistas e, muitas vezes uma ideologia fascista com a importação de tópicos, procedimentos e aspectos do nazismo. Esses grupos estão atuantes publicamente em nossa sociedade e têm intoxicado, principalmente as redes sociais públicas, os grupos de família, as igrejas e, não poucas vezes, a cena pública”, afirma.
Luís Carlos Petry é doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. É graduado em Psicologia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Atualmente é professor assistente da PUC-SP.
Confira a entrevista.
IHU – O que caracteriza a “psicologia das massas do nazi-fascismo”?
Luís Carlos Petry – A psicologia das massas do nazi-fascismo é uma abordagem conceitual, a partir da psicanálise de Freud, no seu livro “Psicologia das massas e análise do eu”, sobre os fenômenos atuais de formação de massas. Tanto no nazismo como no fascismo, estamos lidando com fenômenos de formação de massas que têm uma base em um ideário ideológico que se funda em motivações inconscientes. Por isso a participação do pensamento psicanalítico é importante, pois Freud descreve nesta obra as forças inconscientes que estão em ação no mecanismo de formação de uma massa.
Dois aspectos da psicologia de massa
Assim, de modo geral, existem dois aspectos importantes a serem considerados na abordagem de uma psicologia de massa dos movimentos nazi-fascistas.
O primeiro deles, e de base inconsciente, consiste nos mecanismos descritos por Freud da identificação e da escolha de objeto afetivo-erótico, os quais estarão na base da estrutura do sujeito humano e de sua vinculação com o outro, seu semelhante e a sociedade como um todo. Freud nos mostra que uma massa não alcança se constituir e operar sem que nela haja um líder e, sobretudo, um líder autoritário que hipnotiza a massa, seus desejos e a coloca a seu serviço. É justamente neste ponto que entra em ação a contribuição da Teoria Crítica, especialmente, Theodor Adorno, o qual conseguir realizar a leitura crítica entre Kant, Marx e Freud. Adorno consegue levar para a sociologia e a análise das massas os conceitos freudianos e mostrar que a personalidade autoritária e fascista é determinada por mecanismos inconscientes.
O segundo deles diz respeito ao conjunto ou nebulosa do ideário presente em sujeitos dessas ideologias. Com isso, o levantamento de um panorama, dentro de uma semiótica psicanalítica, principalmente a partir de Umberto Eco, daquilo que ele chama de “a nebulosa fascista” é muito importante para entendermos as diversas configurações da massa fascista e de suas microunidades.
Se levarmos em conta que o nazismo e o fascismo são ideologias, e que somos capazes de olhar para eles e reconhecermos as suas configurações mutáveis, isso em termos de ideias, podemos começar a operar com uma possibilidade de leitura de sua realidade pragmática, isto a partir das ideias fascistas veiculadas pelos pequenos grupos e pelas massas mais amplas.
IHU – Que relações estabelece entre a psicologia das massas do nazi-fascismo com a realidade atual brasileira?
Luís Carlos Petry – O Brasil é um país muito complexo, já diziam Darcy Ribeiro e Leôncio Basbaum. Os acontecimentos nos últimos dez anos têm mostrado que em nosso país não se constituía em um paraíso tropical de amor e solidariedade. Ao contrário. Como em qualquer outro lugar do Ocidente, seja na América ou na Europa, forças contrárias sempre estiveram em ação, ainda que em momento se mostrassem menos ativas ou, como dizem alguns, adormecidas.
Assim, um conhecimento da psicologia das massas do fascismo, a partir de autores como Freud, Adorno, Reich, Fromm, Marcuse e Eco, nos auxilia a entender o funcionamento, tanto das forças ideológicas que estão em ação em nosso país, bem como identificar quais ideias estão presentes em um determinado grupo ou micro massa, digamos.
Em primeiro lugar, como uma ferramenta de observação, nos permite olhar para o comportamento fenomenológico e avaliar melhor o grupo ou massa e entender quais as forças em operação.
Intoxicação de ideologias
Nós temos no Brasil grupos organizados que postulam ideologias nazistas, fascistas e, muitas vezes uma ideologia fascista com a importação de tópicos, procedimentos e aspectos do nazismo. Esses grupos estão atuantes publicamente em nossa sociedade e têm intoxicado, principalmente as redes sociais públicas, os grupos de família, as igrejas e, não poucas vezes, a cena pública.
Como eles se encontram em franca atuação e tiveram um crescimento considerável nos últimos dez anos, assumindo as rédeas da condução da sociedade civil e jurídica, é muito importante que prestemos a atenção neles e nos seus movimentos de modificação da sociedade, das leis e da economia, no sentido de transformar o país em algo que seja a cara da ideologia deles.
Assim, digo eu, conhecer o funcionamento destas estruturas ideológicas, tanto do ponto de vista de sua manifestação pública de ideias e ações, bem como as motivações e estruturas inconscientes, é algo vital para os acadêmicos e os democratas. Não somente o nosso futuro depende disso, mas igualmente o futuro da democracia e da sociedade humanista.
IHU – Como sua leitura da realidade brasileira, a partir da psicologia das massas do nazi-fascismo, pode auxiliar pesquisadores de outras áreas do conhecimento, como cientistas sociais, a compreenderem a atual conjuntura?
Luís Carlos Petry – Considero essa sua pergunta fundamental e ela permite alguns esclarecimentos. Em primeiro lugar, o que eu fiz em algumas oportunidades recentes é algo muito simples e não se constitui em uma nova teoria ou nova leitura da realidade psicossocial. Ela conta com um grande número de autores, começando por Freud no século XX, mas antecedido por Marx no século XIX, quando ele escreve o seu texto, o 18º de Brumário. Se trata de uma problemática do século XX e XXI, que tem sido abordada por inúmeros pensadores, de um modo ou de outro, algumas vezes em um ponto isolado e outro não. Para se dar uma ideia sintética, um panorama, posso citar alguns:
Com Sigmund Freud, temos a Psicologia das Massas e o Mal-estar na Cultura, com Wilhelm Reich, temos a “Psicologia de massas do fascismo”, com Theodor Adorno, temos os seus estudos sobre a personalidade autoritária e os seus textos que relacionam a sociologia e a psicanálise e seu enfoque no novo radicalismo de direita. Continuando, com Erich Fromm, temos inúmeros trabalhos, principalmente, “A arquitetura da destrutividade humana” e “O medo à liberdade”.
Com Richard Sennett, temos “A corrosão do caráter”, bem como, “Juntos”. Com Elisabeth Roudinesco, temos “A parte obscura de nós mesmos: Uma história dos perversos” e, com Alain Badiou, “Para uma nova teoria do sujeito”. Temos ainda, com Herbert Marcuse, que foi secretário particular de Heidegger, “Eros e Civilização”.
Com Paulo Freire, temos “A pedagogia do oprimido”, com o Primo Levi, temos “Os afogados e os sobreviventes”, com Byung-Chul Han, temos “Psicopolítica – O neoliberalismo e as novas técnicas de poder”. Com Umberto Eco, temos “O fascismo eterno”, e assim por diante. A lista é muito rica e oferece a organização de uma estrutura conceitual muito sólida para qualquer pesquisador que esteja interessado no tema e seguir ele.
Nesse aspecto, eu vejo que os cientistas sociais são os pesquisadores que são mais sensíveis a compreender primeiramente essas abordagens e as suas extensões dentro do panorama da sociedade e da cultura.
IHU – Quais são os elementos nazi-fascistas que identifica na mentalidade e no discurso bolsonarismo?
Luís Carlos Petry – Desde a campanha eleitoral de 2018, venho acompanhando o discurso do que viemos a chamar de bolsonarismo e do candidato à presidência da República. Comecei a fazer isso juntamente com colegas da PUC-SP e em listas no WhatsApp que organizamos. Foi então que conheci o cientista social Rudá Ricci, com o qual tenho interagido e aprendido muito desde então e, igualmente, discutido o que chamamos da “nebulosa do ideário bolsonarista”. Muito bem, dentro de uma discussão organizada, a gente sempre elenca leituras, e foi o que fiz, retomando clássicos que citei anteriormente. Em dado momento, lembrei de um texto do Umberto Eco que havia lido e que agora encontrara em português. Retomei ele e, construindo um ideário de 14 pontos ideológicos do fascismo, os confrontei com os fenômenos sócio-comunicacionais do bolsonarismo, isso desde uns 15 anos para cá. Com essa atividade, eu me surpreendi com o fato de que o bolsonarismo preenche, em uns e outros pontos, em uns e outros grupos que se manifestavam, todos os 14 pontos de um ideário fascista e, o seu líder, bem como o guru dele, todos eles.
Na minha fala no IHU, eu irei apresentar esses 14 pontos ideológicos do fascismo e sua presença no espírito fragmentário do bolsonarismo como um todo, relacionando com o processo da “formação da nebulosa fascista”.
IHU – Como as massas no Brasil veem Bolsonaro?
Luís Carlos Petry – Neste caso, teríamos de falar da massa bolsonarista. Teríamos ainda de observar que uma massa é um fenômeno que corresponde ao movimento gregário dos humanos de se reunir em grupo. Le Bon estudou as massas autônomas e ocasionais, enquanto o trabalho de Freud se volta para as massas organizadas, tendo como os melhores exemplos o exército e a igreja, os quais possuem uma estrutura vertical.
Massas bolsonaristas
Quando falamos das massas bolsonaristas, falamos de uma coletividade de pensamento ideológico e, em segundo lugar, de um grupo de sujeitos que estão ligados, afetiva e ideologicamente ao líder. De modo geral, quando a massa se reúne publicamente, em manifestações ou encontros, temos a exaltação do líder, com os dizeres: “Mito” ou “Messias”.
De um modo geral, os bolsonaristas, sabemos, contam atualmente com um percentual de 15% da população, dos quais, cerca de 10% são seu núcleo duro; eles são profundamente ligados afetiva e cognitivamente ao seu líder, isto de tal modo que quase podemos falar de uma paixão fervorosa.
Mas quando falamos de massa, também temos de ter presente que o movimento de rua que organizou as manifestações do “forabolsonaro” também se constitui, para Freud e para Adorno, do ponto de vista tanto cênico como social, como uma massa, um fenômeno de massa. Ora, esse ponto poderia nos levar a considerar, isso de modo justo, o fato de que o fenômeno de massa é um fenômeno que, levado para o campo da sociedade e do comportamento social, está presente em inúmeros espaços, bem como disse Freud. Está presente na igreja, no exército, no campo de futebol, nos comícios políticos de esquerda e direita, nos grupos que se autodenominam getulistas, lulistas e mesmo bolsonaristas.
Assim, uma massa é um corpo social e orgânico, formado por indivíduos que se identificam solidariamente e se associam a um líder. Elas podem apresentar comportamento sociais construtivos, amorosos, mas podem ser também a expressão da destruição e do ódio.
IHU – A que atribui o fato de parcelas significativas das populações aderirem a discursos nazi-fascistas?
Luís Carlos Petry – Essa é uma questão muito importante e, para podermos considerar ela adequadamente, temos de considerar dois planos. O primeiro é o plano das ideias (que formam uma ideologia) e o segundo é o correspondente plano afetivo e inconsciente dos sujeitos. Mas a questão é que temos de olhar a questão a partir do plano fenomenológico e, com isso, poderemos encontrar as motivações profundas.
Assim, a adesão no plano das ideias sempre terá um correspondente afetivo e inconsciente no sujeito que é responsável pelo quantum de investimento afetivo é colocado na ideia. Quanto mais forte serão os aspectos afetivos inconscientes envolvidos, mais fortemente a ideia será investida e o sujeito, digamos, agarrado a ela.
IHU – Como o conceito de “zona cinzenta”, do Primo Levi, se aplica ao cenário brasileiro hoje?
Luís Carlos Petry – O Primo Levi apresenta a ideia de uma zona cinzenta em seu livro, “Os afogados e os sobreviventes”. Filósofos da fenomenologia hermenêutica, preocupados com a questão do nazismo e do fascismo, tomaram este conceito do Levi e o trabalharam, mostrando que ele estava organizando uma região de pensamentos, sentimentos e ações de sujeito que poderia ser representada como um espectro de diferentes gradações. No campo mais escuro da Zona, no campo de concentração, teríamos, por exemplo os chamados Kapos, os prisioneiros que se transformavam em chefes-gerentes e que, sob a gerência das SS, reprimiam e oprimiam os demais presos. Outros se encontravam na região mais clara da Zona e, quando podiam, apresentavam algum comportamento de solidariedade – tudo isso resumindo.
Ora, em nosso cenário, temos um espectro de sujeitos que se espraiam por esta Zona cinzenta. Desde aqueles que, em um processo de identificação psíquica e de ideias com o líder fascista, não somente pensam que pobre e bandido devem ser tratados à bala ou com espancamento, mas, dentro da atual conjuntura psicopolítica em que vivemos, encontram-se predisposto a agredir verbal e fisicamente os mendigos. Tal como foi o evento de agressão ocorrido no município de Alvorada, no RS, no qual um ambulante foi espancado até a sua morte pelo gerente do açougue porque fez um comentário sobre o preço da carne. Dizemos que os agressores que levaram sua pulsão de destruição até as últimas consequências se encontram situados nas regiões mais escuras da Zona cinzenta.
Esses sujeitos “hard ou dark” são muito difíceis de trato e a sua abordagem e conscientização sempre esbarram em suas predisposições inconscientes. Mas há aqueles que se situam nas áreas mais claras, os quais podem ser abordados para promoverem alguma conscientização, ainda que geralmente seja provisória. Aos sujeitos humanos localizados nesse espectro da Zona cinzenta, somente um processo muito organizado, que envolva conjuntamente reeducação social e familiar e terapia, pode resultar em crescimento e maior cidadania.
IHU – Que tipo de mentalidade pode fazer frente à do nazi-fascismo?
Luís Carlos Petry – O nazismo e o fascismo somente podem ser combatidos por uma sociedade esclarecida, afetiva e que, intelectualmente, se organize dentro de princípios de solidariedade, direitos e redistribuição das riquezas. Em um país como o nosso, fundado na exploração do outro pelo outro, na lei de Gérson, na escravidão, no preconceito, no machismo, no sexismo, teremos um grande caminho por trilhar para modificar a atual situação de uma direita e um fascismo tão fortes e atuantes.
Mas algo é possível? Sim. Aprendemos com Badiou, que o mal, o ódio e a agressão, são imediatos e seus efeitos são abruptos. Já o bem, o amor, o afeto e a solidariedade, têm seus efeitos a médio e longo prazo e possuem perspectivas educativas e formativas. É por isso que vemos que quando encontramos algum lugar no qual o trabalho de Paulo Freire andou por ali, mesmo que depois impedido, seus efeitos duram décadas, pois é construído com base na liberdade e no amor.
É nesse sentido que eu aposto nas ideias do Papa Francisco, tanto na sua visão econômica como educacional, e vejo com suspeitas, inclusive, algumas visões de esquerda que, capturadas pelo pensamento neoliberal, acham que vender a educação para as corporações internacionais será a solução para a educação da população.
Nesse sentido, temos uma dura missão pela frente: a de se fazer presente com o outro, ser solidário, coibindo as exceções e trabalhando em uma visão propositiva e construtiva na qual a solidariedade, o partilhar, o amor e a humanidade estejam no centro de nossas vidas.
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Apoiadores de Bolsonaro no ato de lançamento do partido Aliança pelo Brasil. Foto: UESLEI MARCELINO (REUTERS)