Encontro virtual é realizado oportunamente em outubro, mês que celebra as missões e a vida dos missionários e missionárias do mundo
Com o objetivo de dar continuidade às missões e de apoiar a luta dos povos indígenas, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) promove, entre os dias 11 e 14 de outubro, a XXIV Assembleia Geral da entidade. O encontro, realizado oportunamente em outubro – e pela primeira vez em formato virtual –, celebra o mês das missões e coloca na mesa de debate o tema “Rumo aos 50 anos” e o lema “História e Resistência em Defesa da Causa Indígena”.
No decorrer dos quatro dias de trabalho, missionários, missionárias, lideranças indígenas, representantes da igreja Católica, organizações aliadas e apoiadores, além de assessores do Cimi de todas as regiões do país, participam dos debates, místicas e espiritualidade.
No início da tarde da última segunda-feira (11), a plenária pôde aprovar o Relatório da Presidência, referente ao período de 2020 a 2021, que elencou inúmeros aspectos do trabalho missionário neste último biênio, por meio de ações institucionais em defesa dos direitos dos povos indígenas. “Nesses dois anos, as nossas preocupações com as ameaças aos direitos e à vida dos povos indígenas no Brasil só aumentaram. As forças agressivas do capital, particularmente ligadas ao agronegócio, à mineração, à infraestrutura, dentre outras, têm atuado de modo cada vez mais organizado, agressivo e sistemático contra o direito sagrado e constitucional dos povos às suas terras demarcadas e protegidas”, aponta o documento.
No relatório, há descrição da angústia de todos os missionários e missionárias que precisaram manter o distanciamento das aldeias e do convívio diário com os indígenas nesse tempo de pandemia. O documento aponta também que a insensibilidade, o preconceito e o negacionismo do presidente da República, e dos que fazem parte de seu governo, foi fator determinante para a morte dos 1.211 indígenas, vítimas do coronavírus.
“Nos dois últimos anos, não restam dúvidas de que a ação missionária da Igreja Católica, por meio do Cimi, mais uma vez, teve importância fundamental na defesa da vida e dos projetos de futuro dos povos indígenas. As ameaças e agressões contra os povos indígenas nos desafiam a continuarmos atentos, alertas, envolvidos e empenhados, a todo o momento e em todos os espaços, a fim de colaborarmos com os processos organizativos e de luta dos povos em defesa de suas vidas, na construção de uma sociedade mais justa, igualitária e pluricultural e de um Estado plurinacional, a caminho do Reino definitivo”, destaca o texto do Relatório da Presidência (2020 a 2021).
Alexandre de Moraes devolve pedido de vista do marco temporal
Durante a Assembleia Geral do Cimi, Rafael Modesto dos Santos, assessor jurídico do Cimi, informou que o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), devolveu nesta segunda-feira (11) o pedido de vista do recurso do marco temporal para julgamento. Com pouco menos de um mês da suspensão do julgamento, o STF poderá, enfim, voltar a deliberar a questão, que ainda não tem data para ser julgada e aguarda o presidente do Supremo, Luiz Fux, recolocá-lo em pauta.
“É um movimento importante que vai ao encontro da nossa estratégia política, jurídica e de comunicação de fazer com que o processo seja julgado o mais breve possível. Nos causa boa impressão o fato da celeridade na devolução do processo para julgamento, inclusive antes mesmo da movimentação no Congresso Nacional no que se refere ao PL 490, que tem como objetivo institucionalizar a tese do marco temporal. Então o Supremo se adianta para julgar o caso”, frisou.
O caso envolve o direito dos Xokleng, povo originário de Santa Catarina, a ter posse de uma área que não era ocupada por eles antes da Constituição de 1988. O relator do caso, ministro Edson Fachin, votou pela derrubada do marco temporal, permitindo que os indígenas tenham acesso às áreas de ocupação histórica de seu povo. Após Nunes Marques discordar do relator, Moraes pediu vista.
Problema político e social
Abrindo o painel “Análise do atual contexto social, político e econômico e seus desafios”, Ladislau Dowbor, doutor em Ciências Econômicas, professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e autor de vários livros, dentre eles “O pão nosso de cada dia”; garante que o problema do país não é econômico, mas sim político e social. “Hoje, são 19 milhões de pessoas que passam fome no país (sendo 25% crianças) e 116 milhões em insegurança alimentar, enquanto que o Brasil produz, só de grãos, 3,200 kg por pessoa e por dia. Não há razão para a fome no país. Nosso problema não é de falta de recurso, é de organização política e social, cenário importante para entender nossos desafios futuros”, pontuou o economista.
Para Ladislau Dowbor, a grande discussão atual está centrada na chamada convergência de crises, que deve ser enfrentada juntamente com o resgate sistêmico do desenvolvimento. “É o oitavo ano que a economia está parada. O que funciona foi feito de 2003 a 2013, na fase distributiva da economia e de inclusão produtiva. Eram 149 programas que melhoraram a capacidade de compra da base da sociedade, dinamizando o consumo e a produção, gerando recursos para o estado, que, por sua vez, conseguiria financiar as políticas sociais e de infraestrutura do país”, explicou.
A resistência indígena para a continuidade da vida no planeta
Moema Miranda, franciscana, da Ordem Franciscana Secular, secretária da Rede Igrejas e Mineração e assessora da Comunicação Especial de Ecologia Integral e Mineração da CNBB, destacou em sua fala que estamos chegando ao ápice de uma combinação de crises que nos levará a um colapso ambiental. “Pela primeira vez o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) sai com dados muito concretos e com previsão de cenários que são de trágicos a catastróficos. Vale lembrar que nenhuma previsão que os cientistas fizeram desde 1988, quando foi fundado o IPCC, aconteceu para menos, sempre para mais do que estava previsto”, revelou.
Para ela, estamos vivendo um momento extremamente inédito do ponto de vista do planeta Terra e da história da humanidade, quando nos aproximamos de uma possibilidade de extinção real das condições de vida no planeta. Moema Miranda citou ainda que, de um lado, há a ação de garimpeiros ávidos pelo minério, de outro, a atuação organizada das grandes mineradoras e, enquanto isso, o Presidente da República alega às corporações que os “povos indígenas são um pequeno empecilho que será superado”. “Os povos indígenas em todo mundo, em particular no Brasil, são a pedra de tropeço do capital. Mas, com a relevância e transformação dos povos indígenas em sujeitos da luta política, eles são a estrutura, a possibilidade e a única chance que temos como humanidade de sobreviver no planeta”, destacou a franciscana ao relembrar que o trabalho do Cimi, de contribuição à resistência indígena, também é fundamental para a continuidade da vida no planeta.
Protagonismo indígena
“Os povos indígenas não podem ser terceiro sujeito, sempre foram o primeiro sujeito, o que aconteceu é que foram velados”, disse Paulino Montejo, indígena Maya da comunidade Popti, da Guatemala, historiador, filósofo, jornalista, ex-assessor para assuntos da América Latina do Cimi, ex-assessor de comunicação da COIAB e, atualmente, desde 2005, assessor político e parlamentar da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – Apib.
Em sua explanação, Montejo falou sobre o protagonismo indígena e destacou que a pauta sempre foi barrada das agendas dos movimentos sociais e políticos. “Os indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais incomodam”, “[somos] tratados como um apêndice numa agenda política que não existe”, pontuou. Ele discorreu ainda sobre a retirada de direitos indígenas e o aumento da grilagem, do garimpo, das invasões, explicitando a crescente violência sofrida pelos povos que lutam pela demarcação de seus territórios.
Segundo Paulino Montejo, hoje, na América Latina, o ponto que une os povos indígenas é a defesa da “Mãe Terra”. “É a terra, os recursos naturais e o território. Exatamente em sintonia com o que está consagrado tanto no direito internacional, na OIT 169, o primeiro instrumento internacional que reconheceu os indígenas enquanto povos, quanto na Constituição Federal, sobre os direitos dos povos indígenas que, resumidamente, consagra os direitos dos povos indígenas à terra, aos recursos naturais, a reproduzir seu modo de vida”, frisou.
Diga ao povo que avance
A assembleia também contou com reflexões de Cleber Buzatto, Secretário-Adjunto do Cimi, que fez um recorte temático e teórico sobre os desafios das lutas dos povos indígenas. “Estamos diante de um momento decisivo para os povos indígenas. Nesse contexto, a continuidade (e até mesmo a intensificação) do processo de luta dos povos e de seus aliados contra o marco temporal – e demais instrumentos de ataque que estão sendo manejados contra os povos – é elemento político fundamental a fim de que se possa conquistar novamente a sustentação desse direito fundamental por parte dos povos indígenas, direito às suas terras tradicionalmente ocupadas”, destacou.
Para Buzatto, as conquistas por parte dos povos originários dependem fundamentalmente de um processo de luta que exige um volume de energia, de esforço e de sacrifício muito mais intenso, mais concentrado e permanente que aquele empenhado por parte dos setores capitalistas, no caso o agronegócio. “Como aliados incondicionais dos povos indígenas, não temos tempo, nem temos o direito de nos acomodar. O Cimi é presença e continuará presente na resistência”, lembrou.
Na ocasião, o Secretário-Adjunto do Cimi relembrou os argumentos revoltantes do voto do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Kássio Nunes Marques, favorável ao Marco Temporal e, portanto, contrário aos povos indígenas. “Ele utilizou como argumento a constatação de que o Brasil é um Estado/sociedade capitalista e, em nome disso, em linha com a absolutização do instituto da propriedade privada, buscou legitimar e propôs, na maior cara de pau, de forma desavergonhada mesmo, a tese da anistia ao esbulho possessório, da anistia à violência, da anistia ao genocídio que ele mesmo admitiu terem sido praticados contra os povos indígenas, em geral, na história de colonização do Brasil e contra o povo Xokleng particularmente”, frisou.
Cleber Buzatto disse ainda que é fundamental manter aceso e intenso o fogo do espírito missionário-militante para continuar contribuindo, efetiva e afetivamente – a exemplo dos jovens mochileiros da década de 1970 e em memória dos nossos mártires – com a luta dos povos, “na tarefa urgente e emergencial de queimar e eliminar, ao menos temporariamente, a tese do marco temporal e, assim, manter vivo e fortalecido o direito dos povos às suas terras tradicionais, aos seus usos, costumes, línguas, crenças e tradições, aos seus projetos próprios de vida e futuro. A luta continua. Marco temporal, não! Diga ao povo que avance: avançaremos!”, clamou.
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Acampamento Terra Livre (ATL) de 2017. Foto: Mídia Ninja/Mobilização Nacional Indígena