Por que Bolsonaro ainda não caiu

Sua resiliência, espantosa diante de 600 mil mortes e crimes em série, expõe dois fenômenos perturbadores. Parte expressiva dos mais ricos já abandonou a própria ideia de país. E esquerda calcula, temerariamente, que é melhor “deixá-lo sangrar”

por Luiz Filgueiras*, em Outras Palavras

Um ano e meio de pandemia e chegamos a 600 mil mortes por covid, cifra menor apenas que as mais de 700 mil dos Estados Unidos, resultado em grande medida da política de combate à covid executada por uma espécie de Ministério da Saúde paralelo. E Bolsonaro e o seu governo não caíram. Por quê? Os crimes de responsabilidade se acumulam diariamente, desde os primeiros dias desse governo, mas principalmente a partir da pandemia; crimes contra a saúde pública, o meio ambiente, a ciência, a educação, a cultura, a democracia, a economia, os direitos sociais e a soberania do país. E Bolsonaro e o seu governo não caíram. Por quê? Como reflexo desses crimes, o número de pedidos de impeachment, acumulados durante a gestão de dois presidentes da Câmara de Deputados (Rodrigo Maia e Arthur Lira) ultrapassam uma centena. E Bolsonaro e o seu governo não caíram. Por quê? Chegamos a 14,1 milhões de desempregados (13,7% da população economicamente ativa), 27,3 milhões de brasileiros abaixo da linha da pobreza (12,8% da população) e a destruição generalizada de direitos sociais da classe trabalhadora; tragédia acompanhada pela maior inflação dos últimos 27 anos (acima de 10% nos últimos 12 meses). E Bolsonaro e o seu governo não caíram. Por quê?

Pode-se aventar inúmeras razões, desde as mais aparentes e óbvias até as menos evidentes, que demandam um esforço maior de reflexão, pois estão situadas nos escaninhos mais profundos da sociedade. Entre as primeiras, pode-se mencionar as seguintes:

  1. Além do presidente da Câmara ser um aliado de Bolsonaro, portanto sem nenhuma vontade de dar prosseguimento a qualquer pedido de impeachment, a maioria dos parlamentares (pertencentes ao famigerado Centrão) não aprovaria tal iniciativa caso ela fosse deflagrada.
  2. A oposição, em particular o seu segmento antineoliberal e antifascista, demorou em consolidar um consenso a favor do impeachment e, além disso, é notória a preferência, principalmente no que se refere ao Partido dos Trabalhadores, por uma estratégia de “sangrar” Bolsonaro até 2022 e derrotá-lo nas urnas. Estratégia apoiada em pesquisas eleitorais que em todos os cenários dão a vitória ao ex-presidente Lula da Silva.
  3. Relacionada à razão anterior, essa mesma oposição não tem conseguido produzir mobilizações de rua realmente significativas, em termos numéricos e radicalizadas politicamente, que consigam alterar a correlação de forças na sociedade e no parlamento, que leve à derrubada de Bolsonaro e de seu governo por algum mecanismo político-jurídico (impeachment ou impugnação da chapa Bolsonaro-Mourão por crimes cometidos no processo eleitoral).
  4. Bolsonaro e o seu governo ainda tem o apoio de uma parcela significativa da sociedade, entre 25% e 30% de brasileiros, parte deles organizados em um movimento neofascista através das redes sociais; e/ou com presença significativa nas forças de segurança (forças armadas e polícias militares e civis), no sistema de justiça e nas igrejas evangélicas, em particular as suas denominações neopentecostais.

No entanto, e sem desmerecimento dessas razões mais aparentes, pode-se mencionar uma razão mais profunda que explica a resiliência de Bolsonaro e seu governo: o apoio e a sustentação, explícitos ou camuflados, que lhes são dados pelas classes dominantes; em especial o grande capital financeiro ou financeirizado, grandes grupos corporativos nacionais e multinacionais atuantes em todas as áreas da economia, grandes proprietários fundiários e o agronegócio; além de segmentos importantes das “classes médias”. Embora com tensões entre as partes, esse fato expressa a convergência objetiva (uma espécie de afinidade eletiva), entre o neoliberalismo e o neofascismo, construída no Brasil, paulatinamente, desde as manifestações de 2013, passando pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff e consolidada em 2018 com a eleição de Bolsonaro. O conjunto da obra executada pelos governos Temer e Bolsonaro, sintetizado nas políticas econômico-sociais e reformas neoliberais (teto dos gastos, previdenciária, trabalhista e administrativa), não deixa dúvidas quanto à existência dessa aliança. Assim como as divergências no campo político-cultural (Estado de Direito e valores morais e religiosos) evidenciam tensões importantes entre as forças político-sociais neoliberais-neofascistas.

As barbaridades e os crimes cometidos até aqui por Bolsonaro e seu governo são de uma gravidade única, quando se compara com a realidade atual (de pandemia) de todos os outros países do mundo e, mesmo do ponto de vista histórico, só é equiparada às piores tragédias ocorridas com a humanidade no século XX. Por isso, em que pese a pertinência de todas as razões acima mencionadas para explicar por que Bolsonaro e o seu governo não caíram, existindo quase que uma espécie de normalização dos crimes cometidos pelo genocida, há de ter uma razão mais profunda e essencial para que a população brasileira, o povo, os cidadãos ou qualquer outra designação que se queira dar aceitem e admitam, a contragosto ou não (uma espécie de “servidão voluntária”), que o país seja dirigido por um criminoso, que explicita os seus crimes, dia sim dia não, sem nenhum disfarce.

Uma hipótese, que acredito ser crível, se relaciona a uma causa não diretamente material e tangível e que se encontra subjacente a todas as demais causas anteriormente mencionadas, qual seja: a falta de caráter das classes dominantes do país. Caráter aqui definido como em Richard Sennett: “o valor ético que atribuímos aos nossos próprios desejos e às nossas relações com os outros (…) expresso pela lealdade e compromisso mútuo, pela busca de metas a longo prazo, ou pela prática de adiar a satisfação em troca de um fim futuro”. Em suma, o reconhecimento de sua própria identidade constituída a partir de sua relação com o outro, no caso referida não a relações entre indivíduos, mas a relações entre classes sociais. A chave desse entendimento se localiza na constatação de que o Brasil é uma nação incompleta, profundamente fraturada socialmente.

A burguesia brasileira, em especial a sua fração hegemônica, no seu processo político-social de constituição e de ruptura parcial com a ordem não especificamente capitalista comandada pelo capital cafeeiro até antes da Revolução de 1930 (ordem herdada do período colonial-escravista), se fez através de um tipo de revolução passiva (modernização conservadora), que conservou-incorporou características (de natureza regressiva) importantes do período anterior – destacadamente a manutenção e reprodução da grande propriedade fundiária e o poder político dos latifundiários. Adicionalmente, a fragilidade político-econômica dessa burguesia, implicou na constituição de um tipo de capitalismo dependente e subordinado ao imperialismo, no qual a sua articulação com o capital internacional produziu um tipo de vassalagem que se sustenta na superexploração do trabalho. Essa mesma fragilidade também implicou na necessidade de a burguesia ser impulsionada permanentemente pelo Estado, em todos os momentos da história do Brasil, inclusive no atual momento neoliberal supostamente contrário ao “intervencionismo estatal”.

Portanto, uma classe dominante reacionária, autoritária e pervertida (herdeira do escravismo), acovardada e violenta (com medo permanente dos de “baixo”) e sem identidade nacional, que não teve capacidade de construir uma nação, de forma completa, com a incorporação substantiva das demandas e interesses das classes subalternas. A histórica fragilidade da democracia brasileira, sua estreiteza e limitações, com reiteradas interrupções institucionais, encontra a sua razão mais profunda nessa incompletude que, por sua vez, associa-se a falta de caráter da burguesia brasileira. Nas últimas décadas, a hegemonia neoliberal e, mais recentemente, a ascensão do neofascismo, só agravaram essa incapacidade.

O cenário mais provável que se desenha, a partir de agora, é de o país ter que conviver com o genocida até as eleições de 2022, com reiteradas ameaças ao Estado de Direito, mais destruição de direitos sociais e todo tipo de agressão que a sociedade conhece de sobra e que parece que se acostumou e normalizou. A esperança que resta é de que as classes subalternas e suas direções ainda consigam cumprir o seu papel contra-hegemônico, antineoliberal e antifascista, de forma independente e não caindo no “conto do vigário” da “frente ampla” contra Bolsonaro – que só existe na retórica da direita neoliberal que, na prática, está preocupada mesmo, desesperadamente, em construir e viabilizar uma candidatura que derrote, preferencialmente, a esquerda.

*Professor Titular da Faculdade de Economia da UFBA. Pesquisador na área de Economia Política, Desenvolvimento e Economia brasileira.

Ilustração: Duke

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