Caso de mulher faminta que furtou em supermercado expõe onde está o perigo. Por Janio de Freitas

A Justiça seletiva é velha conhecida da opinião pública

Na Folha

Cuidado. Um perigo não identificado transita pela cidade de São Paulo, se não saiu daí para outros ares hospitaleiros. Sua liberdade de ameaçar o país foi assegurada pelo Superior Tribunal de Justiça. Contra um dos mais aceitos costumes jurídico-sociais, contra o Ministério Público e contra a decisão de uma juíza e seu senso de justiça.

A ameaça está dimensionada sem subterfúgios nas palavras em que a juíza concorda com o pedido de prisão preventiva, longa e severa, feita pelo Ministério Público para a fonte da ameaça, já na cadeia: a prisão preventiva, no caso, “é a mais adequada para garantir a ordem pública, porquanto, em liberdade, a coloca em risco, agravando o quadro de instabilidade que há no país”.

Uma força tão nefasta, portanto, quanto Bolsonaro e o furor destrutivo do bolsonarismo. Basta-lhe, o que não ocorre a Bolsonaro, o desfrute da liberdade de ir e vir para agravar a instabilidade do país. Logo, é também uma força de alcance nacional. Que pode ser assim descrita: mulher, 41 anos, cinco filhos entre 2 e 16 anos, faminta e famintos, e por isso furtou dois pacotes de macarrão instantâneo, dois refrigerantes e um refresco em pó, que o supermercado na Vila Mariana avaliou em R$ 21,69.

Questão interessante, dentre as muitas suscitadas pelo episódio, seria identificar qual das suas três partes é a mais representativa do Brasil. O olhar em que se esperaria ao menos algum discernimento, devido pela magistratura, refletiu a paranoia feita, além do mais pessoal, de séculos de discriminação, Justiça seletiva, indiferença aos desservidos da sorte.

Só na tão cantada originalidade brasileira uma magistrada, do alto dos seus códigos, é capaz de ver em uma mulher —mãe paupérrima— as condições para pôr em risco a ordem pública, a ponto de agravar a instabilidade criada por generais, um celerado e seu bando de aproveitadores.

E não é visão pessoal, nem é generalizada na magistratura. A Justiça seletiva é velha conhecida da opinião pública. No mesmo episódio, está acompanhada do olhar não menos abrasileirado do representante do Ministério Público — órgão para dar voz, perante o Judiciário, ao interesse geral— que pediu o agravamento da prisão, por ser ato reincidente. Como a fome de cada dia da mulher. Como a fome de cada dia de cada filho. Como a miséria sem fim.

Juíza, promotor e a família que retrata milhões são protagonistas, a rigor, de uma banalidade brasileira. Pretexto, sempre, de melhorias que não melhoram e correções que não corrigem, porque são apenas conveniências.

Por isso está prevista para os próximos dias a votação parlamentar de alterações nas normas do Ministério Público. Se aprovadas, o Congresso absorve atribuições como a escolha do corregedor no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e de quatro conselheiros, em vez dos dois atuais, no plenário aumentado. Os procuradores/promotores, que compõem o MP, reagem em todo o país. Com e sem razão.

CNMP está mais para a proteção da classe do que para sua função corretiva e punitiva. A deformação exemplificou-se de modo gritante e definitivo. Os deltans dallagnois da Lava Jato curitibana fizeram violações contínuas às suas regras e à legislação criminal, sob a falsa atenção e a verdadeira conivência do Conselho.

Lá e, por consequência, no próprio CNMP —mas não só— desenvolveu-se uma das partes fundamentais da interferência —uma conspiração, sem dúvida— no processo de eleição para a Presidência do país. Um golpe, sem dúvida.

Submeter o CNMP ao jogo político é entregá-lo por inteiro à pior das deformações que o têm acometido e ao MP. Além disso, o Conselho Nacional de Justiça não se distingue, no que mais importa, do seu congênere. E aí os parlamentares não ousam entrar, quando não são réus. O Ministério Público e o seu Conselho precisam de reformulação, mas fogem dela, e o Congresso busca outra deformação.

No fundo, e com crueza, nada disso tem algum significado para a grande maioria. As mulheres famintas continuarão a sentir fome, seus filhos continuarão famintos, os furtos de alimentos precisarão continuar. E nós outros continuaremos a escrever e ler, como há décadas enfileiradas, os mesmos fatos sobre o nosso país. Sim, nosso, não deles.

Destaque: Coppo di Marcovaldo, Inferno (1260-70). Fragmento de mosaico do teto do Batistério de Florença

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