Mesmo subnotificadas, prisões de indígenas crescem. Processos estão envoltos por inúmeras violações, inclusive às mulheres gestantes. Invisibilizados, perdem o direito de cumprir pena junto à comunidade. Racismo e medo são constantes
Por Beatriz Drague Ramos, na Ponte Jornalismo
Reconhecido pelo “olhar” por uma suposta vítima, o indígena Pankararu Evandro dos Santos, 31 anos, que trabalhava com serviços gerais em São Paulo, ficou preso em regime fechado por dois anos por uma acusação de roubo. Apesar de o suspeito do delito usar capacete na hora do crime, a identificação pelo “olhar” foi irregular, conforme reportou a Ponte. Após aguardar uma vaga por sete meses, Evandro está desde agosto em regime semiaberto no Centro de Progressão Penitenciária (CPP) Tremembé, na Região Metropolitana do Vale do Paraíba, interior de São Paulo.
Evandro poderia ter cumprido o regime semiaberto desde janeiro, a partir da autorização judicial expedida naquela época, e além disso, por ser indígena, ele poderia executar a pena junto à sua comunidade indígena, em Pernambuco, sob fiscalização da Funai (Fundação Nacional do Índio), mas foi somente em agosto que a Defensoria Pública protocolou um pedido ao judiciário.
A morosidade para a identificação de Evandro como pessoa indígena perante a justiça criminal faz parte de um sistema de invisibilização de indígenas dentro do sistema carcerário. Um levantamento realizado pelo Instituto das Irmãs da Santa Cruz (IISC) em parceria com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), com dados do primeiro semestre deste ano, mostra como funciona essa dinâmica.
Segundo a pesquisa feita periodicamente via Lei de Acesso a Informação, ao menos 887 pessoas indígenas estão presas hoje no Brasil. 22,2% delas estão em prisão provisória, 56,4% estão condenadas, 7,1% estão em outras situações, como cumprindo medidas cautelares. 14,3% dos estados não forneceram informações sobre a situação jurídica, ou as apresentaram apenas parcialmente.
Os dados colhidos não retratam com completa precisão a realidade, pois como no caso de Evandro, muitos estados não seguem corretamente o critério da autodeclaração no decorrer processual dentro das instituições da justiça criminal: o estado do Acre, por exemplo, não respondeu a solicitação de acesso à informação. Assim, a pesquisa está restrita aos dados fornecidos oficialmente pelos estados da federação.
Quando comparado com os dados da mesma pesquisa feita em 2020, houve um aumento na quantidade de indígenas encarcerados, passando de 861 no segundo semestre do ano passado para 887 nos primeiros seis meses deste ano. O número é menor do que as informações do último Infopen [Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias], divulgado com dados de 2019, que diz que havia no sistema prisional brasileiro 1.390 indígenas presos, sendo 1.325 homens e 65 mulheres.
O levantamento do IISC em parceria com o Cimi observou que entre os estados com maiores taxas de encarceramento estão Mato Grosso do Sul (MS) com 363 pessoas indígenas presas, Roraima com 161, seguido do Ceará com 57 indígenas presos. A pesquisa identificou que 79,1% das pessoas indígenas presas no estado do MS já se encontram condenadas e 19,6% foram classificadas como provisórias.
Na visão de Viviane Balbuglio, advogada e consultora do Instituto das Irmãs da Santa Cruz (IISC) responsável pela realização do mapeamento periódico sobre prisões de pessoas indígenas no Brasil, por conta da subnotificação dos dados que envolvem o aprisionamento de pessoas indígenas no Brasil, não é possível falar em números absolutos ou em redução do encarceramento. “Principalmente quando não vemos políticas que caminham nesse sentido”, alerta.
Nessa linha, a advogada explica que a pesquisa tem o propósito de dar subsídios para pensar em caminhos desencarceradores para pessoas e comunidades tradicionais no Brasil, e que os dados podem estar subnotificados por uma série de razões como “falta de campo de preenchimento nos sistemas de informação, medo da pessoa que pertence a um povo indígena se identificar como tal, e a frequente heterodeterminação das pessoas realizadas pelas autoridades prisionais e judiciárias”, diz.
Dessa forma, segundo ela, muitas vezes as instituições ignoram que uma pessoa se identificou como pertencente a um povo indígena ou sequer realizam a pergunta, “o que consequentemente acarreta no desaparecimento dessas pessoas entre os trâmites prisionais, judiciais e as dificuldades que as famílias e comunidades indígenas enfrentam para apoiar diretamente a pessoa que foi presa ou responde processo criminal.”
O advogado indígena do povo Macuxi de Roraima, Ivo Cípio Aureliano, avalia que há de fato um aumento no encarceramento indígena. “Isso nos preocupa muito, uma vez que tira a pessoa da comunidade, aplica uma pena e ela não sabe como funciona o sistema carcerário, não sabe qual é o direito que tem e às vezes o indígena não sabe falar bem o português e começa a ser ‘aculturado’ de forma forçada.”
Ivo é também assessor jurídico do Conselho Indígena de Roraima (CIR), integrante do Observatório Justiça Criminal e Povos Indígenas da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), professor voluntário da língua Macuxi pelo Programa de Valorização das Línguas Indígenas de Roraima pela UFRR (Universidade Federal de Roraima) e membro da Comissão Especial de Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas do Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).
Ele explica que quando uma pessoa indígena já está presa não existe nenhum acompanhamento específico a ela na prática. “Elas sofrem racismo, isso dificulta muito a situação deles lá dentro. A família não sabe como é o sistema carcerário e elas ficam esquecidas, muitas vezes a família mora muito longe das cidades e não tem condições financeiras de visitar o preso.”
Segundo o advogado, a possibilidade de alas e celas especiais para indígenas dentro das unidades prisionais são vistas com ressalvas por ele, pois “isso seria visto como privilégio pelos outros presos e os indígenas seriam atacados.”
Em relação às informações sobre povo que pertence ou etnia, os povos mais encarcerados, segundo a pesquisa foram os Kaiowá, com 17,6%, Macuxi, com 13,2%, seguido de indígenas do tronco Guarani com 10%, Terena com 6,8% e Kaingang com 5,7%.
Mulheres indígenas encarceradas
Com relação às mulheres indígenas, o estudo ressalta que apenas no Mato Grosso do Sul estão presas 22 mulheres, o equivalente a 45,8% em relação às mulheres indígenas presas do Brasil todo. O segundo estado com o maior número é Roraima, totalizando 17 mulheres presas.
No total foram registradas 48 mulheres presas no levantamento, em relação às mulheres com filhos (as) menores de 12 anos ou com deficiência, entre os estados que apresentaram esta informação foram registradas 11 mulheres que declararam ser mães. Foi registrada apenas uma mulher indígena gestante e que estava custodiada na Penitenciária Feminina da Capital em São Paulo.
A prisão dessas mulheres pode estar violando a Lei 13.769/2018, que dispõe sobre a substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar da mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência e a disciplina do regime de cumprimento de pena privativa de liberdade.
Homens são a maioria nas prisões
São centenas de homens indígenas presos no Brasil, segundo o levantamento, cerca de 839 deles estão privados de liberdade. Entre os estados com maior número de homens indígenas presos estão Mato Grosso do Sul com 341, seguido por 144 em Roraima e 57 no Ceará.
Em números absolutos, consolidados pelo censo demográfico do IBGE (2010), o Mato Grosso do Sul concentra 73.295 pessoas autodeclaradas indígenas, a segunda maior população indígena no Brasil, atrás apenas do Amazonas, com 168.680, o que pode explicar em parte as altas taxas de aprisionamento de indígenas no estado. Para Ivo outro fator que explica isso é o acesso a elementos externos nas comunidades indígenas, “como por exemplo o uso de álcool e as drogas, o que acaba gerando conflitos de agressão, de assassinatos, são casos que eu tenho visto e que tem acontecido nas comunidades e não há uma política pública para falar sobre isso nas comunidades.”
A própria polícia tem visto os indígenas como “alvos fáceis” para serem encarcerados, afirma Ivo. “Alguns delegados mandam uma intimação até a comunidade e pedem para a pessoa prestar depoimento na delegacia, sendo que há um mandado de prisão contra o indígena, ele vai lá sem saber e é preso por uma coisa que ele poderia responder em liberdade muitas vezes”, pondera.
Justiça indígena
Situações em que a própria comunidade indígena aplica uma medida de “punição” quando um integrante da Terra Indígena comete um crime são recorrentes, segundo o advogado Ivo. “A gente chama isso de pluralismo jurídico, quando penas são cumpridas dentro da própria comunidade, ou em uma região distante, onde ele é colocado naquele lugar para cumprir a pena.”
Segundo ele, Roraima é um estado onde há vários casos de comunidades que julgam seus membros. “Isso é legal, é constitucional, e várias comunidades têm preservado essa prática reconhecida pelo próprio Tribunal de Justiça do estado. Algumas pessoas dentro do Ministério Público, da Defensoria e alguns juízes têm conhecimento disso, só que a gente está buscando fortalecer isso como uma das soluções para não encarcerar os indígenas em massa.”
Um dos casos citados por Ivo é o do Denilson Trindade, indígena da Terra Indígena Manoá-Pium, em Roraima, que foi condenado a construir uma casa para a esposa da vítima, a remoção de sua comunidade por cinco anos e a prestação de serviços comunitários na comunidade Wai Wai, por ter assassinado seu irmão. Depois disso Denilson foi denunciado pelo Ministério Público, mas o órgão deixou de apreciar o mérito da ação e declarou ausência do direito do Estado de punir, uma vez que ele já havia sofrido punição da sua própria comunidade.
Por outro lado, Ivo explica que as comunidades decidem quais são os crimes passíveis depunição de acordo com cada cultura específica. “Tem práticas que não tem previsão no Código Penal, mas a comunidade considera como um crime, algo muito grave, como a feitiçaria, ou o fazer ‘mal’ com uso dos poderes das plantas.”
Ainda de acordo com o advogado, é muito comum que juízes, ao tentarem cumprir normas legais que assegurem os direitos dos povos indígenas, acabem fazendo isso de forma equivocada. “Muitas vezes eles desconhecem a realidade das comunidades e determinam que um sujeito cumpra um serviço na comunidade mas sem consultar a comunidade, então há falta de informações básicas por parte de alguns magistrados e defensores.”
Medidas desencarceradoras
A pesquisa também aponta caminhos possíveis para a redução do encarceramento indígena, incluindo a aplicação da Resolução 287 de junho de 2019, publicada pelo Conselho Nacional de Justiça. Ela dá diretrizes para assegurar os direitos dessa população no âmbito criminal do poder Judiciário.
Entre as legislações nacionais e internacionais que versam sobre o tratamento das pessoas indígenas inseridas no sistema de justiça criminal, está o Estatuto do Índio (Lei 6001/1973) e o artigo 9º da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ele diz que: “Na medida em que for compatível com o sistema jurídico nacional e com direitos humanos internacionalmente reconhecidos, deverão ser respeitados os métodos aos quais os povos interessados recorrem tradicionalmente para a repressão dos delitos cometidos pelos seus membros”.
A resolução do CNJ também sugere a presença de um intérprete, preferencialmente membro da própria comunidade indígena, em todas as etapas do processo em que a pessoa indígena figure como parte, explica o advogado Ivo. Para o pesquisador, apesar da Resolução 287 reforçar que o sistema de justiça reconheça os direitos dos povos indígenas, ainda há uma certa resistência da própria justiça em reconhecer isso. “Queremos garantir que o indígena tenha direito a um intérprete e tradutor, muitas vezes na audiência ele não conhece os termos jurídicos e acaba até se autoincriminando. E isso é uma forma importante como meio de acessar a Justiça, o acesso à Justiça que respeite a língua do povo indígena, porque aí sim a gente começa a fazer justiça de fato.”
O tratamento jurídico penal de uma pessoa que pertence a um povo tradicional no Brasil deveria caminhar com uma série de cuidados e direitos específicos previstos em lei, diz a advogada Viviane Balbuglio. “O principal deles é a prisão como medida excepcionalíssima ao encarceramento das pessoas indígenas no Brasil.”
Para que isso ocorra, há direitos como da realização de perícia ou laudo antropológico para a verificação dos métodos tradicionais de resolução de conflitos daquela comunidade, assim como a relação da situação enquadrada como crime com a vida e o contexto do povo, esclarece a pesquisadora. “Além da atenuação da pena com base no Estatuto do Índio, a flexibilização das regras de visita nas unidades prisionais respeitando os costumes da comunidade que pertence e uma série de outras medidas que já fazem parte do direito hoje, mas estão longe do dia a dia das instituições.”
Ela menciona a prisão de um indígena do povo Pataxó, da Bahia, que foi preso e que foi acompanhado por ela durante a pandemia de Covid-19. Segundo Viviane, assim como no caso de Evandro, citado no início da reportagem, os direitos indígenas dele foram ignorados.
No caso do senhor do povo Pataxó, ela conta que foi realizado um pedido para que ele pudesse ter o cumprimento de pena transferido para a comunidade dele no regime de semiliberdade, previsto no artigo 56, parágrafo único do Estatuto do Índio e detalhado na Resolução 287 do CNJ.
Segundo a advogada, em conjunto ao pedido foi anexada uma carta da comunidade a que ele pertence assinada por cerca de 100 pessoas, afirmando que aceitam que ele cumpra pena lá e se responsabilizando coletivamente por isso. “Mesmo assim,a negativa do direito dele de cumprir pena na comunidade veio sempre justificada pelo fato de ele ‘ter carteira de motorista’ e exercer outras funções similares, por isso ele não poderia recorrer à identidade indígena para cumprir pena fora do cárcere”, relata Viviane.
Para ela, essa situação dá pistas dos preconceitos e do racismo institucional que é reproduzido dentro do sistema de justiça. “Uma magistrada, como nessa situação, se sente na possibilidade de determinar ou não a existência e a identidade de uma pessoa para negar direitos. Esse processo de desconstrução de estereótipos e do racismo em si é muito longo, mas precisa ser enfrentado de várias formas, sempre vislumbrando um horizonte desencarcerador.”
Algumas práticas para possibilitar a redução do encarceramento de indígenas, são, segundo Viviane, formação específica para pessoas que compõem carreiras na justiça criminal, facilitação do acesso à informação e contato para as famílias e comunidades indígenas que tenham parentes presos(as), além do aprimoramento dos sistemas de informação para que conste como campo de preenchimento obrigatório a categoria etnia/povo a que pertence. “Um primeiro ponto é que é papel das instituições judiciárias conhecer e desconstruir seus preconceitos acerca do critério da autodeclaração de pertencimento a um povo.”
A pesquisa chama a atenção para os dados prisionais do estado do Rio Grande do Sul. O estado informou que apenas 42 indígenas estavam presos no primeiro semestre de 2021, enquanto no 2º semestre de 2020 eram 382. “É necessário a cobrança de transparência pública dos dados prisionais do estado do Rio Grande do Sul para que se compreenda as razões que envolvem as drásticas alterações nas informações prestadas, uma vez que não houve uma política de desencarceramento em massa de pessoas pertencentes aos povos originários em meio à pandemia de Covid-19”, diz o texto do mapeamento.
A reportagem questionou o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) sobre quantos indígenas estão presos atualmente, bem como sobre quais medidas estão sendo feitas para reduzir o aprisionamento de pessoas indígenas e para aprimorar a transparência da presença desse grupo dentro do sistema carcerário e aguarda respostas.
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Ilustração: Otto Mendes