No Semiárido, organização comunitária e parcerias são essenciais para proteger sementes crioulas da contaminação por transgenia

Érica Daiane Costa, ASA, no Irpaa

A prática da agricultura teve início a partir das mulheres, ao perceberem, por acaso, que as sementes lançadas na terra germinavam e davam origem a novas plantas, as quais garantiam alimento de origem vegetal. Isto ainda no período neolítico, há mais de 12 mil anos.

No passar dos séculos, a prática foi sendo aprimorada por comunidades camponesas tradicionais, que são pioneiras na produção de alimentos para auto consumo nos territórios, criando toda uma diversidade ancestral em torno da culinária, que varia em cada região do mundo. À medida que a população mundial foi crescendo, a demanda por alimentos foi aumentando também. A ciência, por sua vez, passou a buscar desenvolver tecnologias que garantissem a produção de alimentos em maior escala.

As estratégias adotadas para atender a essa realidade, no entanto, na maior parte do mundo, foram oriundas do modelo capitalista, onde há concentração dos meios de produção. Assim, a produção de alimentos em larga escala foi sendo viabilizada pelos países, mas com isso se instaurando também a concentração de terra e água, a exploração da mão de obra humana e a desigualdade social.

As sementes não escaparam a essa conjuntura. Com vistas a imprimir um ritmo de produção mais acelerado para gerar lucros e não apenas saciar a fome da população, os agrotóxicos chegaram às lavouras, depois de terem sido criados e experimentados durante a primeira e segunda guerras mundiais, no século XX. Nessa mesma lógica, registrou-se investimentos em estudos para o chamado melhoramento genético das sementes, o que interfere no processo natural de garantia da existência das espécies nativas cultivadas pelas famílias camponesas, indígenas, quilombolas, etc ao longo das gerações.

Transgenia – Quando se fala em Convivência com o Semiárido brasileiro, assim como o acesso à água e à terra, o uso da biodiversidade está no centro das estratégias, trazendo, portanto, as sementes, sejam vegetais ou animais, para este lugar de centralidade, lembra Luciano Silveira, integrante da AS-PTA, entidade que faz parte ASA. Trata-se de “um patrimônio genético que vem de uma história, de gerações de cultivo de uma enorme biodiversidade e conhecimentos associados que vem de gerações a gerações sendo conservadas por essas populações que vivem no Semiárido”, contextualiza.

A mudança genética ou processo de transgenia consiste em incorporar material como vírus ou bactéria de uma espécie em outra, com a finalidade de implantar novas características, a exemplo da resistência a fenômenos naturais como a seca. Já se sabe que essa ação contamina as espécies nativas, mas quem se beneficia com essas alterações?

Quem detém as patentes das tecnologias para realizar esse tipo de pesquisa são empresas multinacionais, as quais aplicam os altos investimentos em espécies geralmente produzidas em larga escala com finalidade de exportação, gerando lucro apenas para esses poucos grupos empresariais que passaram a dominar a chamada indústria alimentícia no mundo.

Esse processo de modificação de sementes sob o argumento de garantir melhores condições de produção causou grande impacto nas comunidades tradicionais que mantinham a tradição da produção de alimentos saudáveis. Por volta da década de 1970, por exemplo, relembra Luciano, o coronelismo que predominava no Semiárido chegava a usar a semente, assim como a água, para manter relações clientelistas e de subordinação.

Este testemunho também é dado pelo agricultor Euzébio Cavalcanti, presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras de Remígio (PB), que conta que, após um trabalho de formação feito por organizações da sociedade civil, teve início a construção das redes de bancos comunitários de sementes, com vistas a proteger a maior diversidade e variedade de espécies possíveis.

O agricultor destaca que o milho tem sido a semente que mais contamina e por isso é dada uma atenção maior a ela. De acordo com a pesquisadora da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Paola Cortez, “a contaminação de sementes crioulas de milho por transgênicos é um problema muito grave que vem se alastrando em vários países do mundo (…), essa contaminação acaba descaracterizando essas sementes quanto a alguns atributos que são essenciais” para garantir sua longevidade e diferentes usos. A contaminação interrompe esse ciclo, segundo Paola.

No Brasil, “a gente não tem medidas e normas claras de proteção ou de mitigação aos efeitos da contaminação”, isso faz com que as/os agricultores/as inclusive adquiram facilmente sementes contaminadas e as insiram em seus territórios, muitas vezes sem ter conhecimento dos prejuízos que isto causa à perda da biodiversidade, constata a pesquisadora.

Ela reforça que as sementes crioulas são patrimônios materiais e imateriais dos/das agricultores/as, estão diretamente ligadas à cultura destas pessoas, mas também é um patrimônio estratégico para a humanidade. A afirmação da colaboradora da Embrapa só reafirma o que pensa Euzébio Cavalcanti: “as sementes crioulas, elas dependem de nós e nós dependemos delas”.

Enfrentamento – As sementes nativas são chamadas de crioulas. Na Paraíba, elas recebem também o nome de Sementes da Paixão, cuja origem desta nomenclatura é contada por Euzébio: “Seu Dodô, um agricultor do médio sertão, ele disse: o governo pode distribuir a semente que ele quiser, a semente que eu tenho lá em casa, que é adaptada à minha região, eu tenho paixão por ela”. Assim, desde 2003, as sementes nativas foram batizadas também de Sementes da Paixão.

No Semiárido, diversas experiências têm sido desenvolvidas há décadas, buscando preservar e proteger as sementes tradicionais. O trabalho das Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s) e de sindicatos foi fundamental para estimular as comunidades a se organizarem em torno disso, reconhecem Luciano Silveira e Euzébio Cavalcanti.
“Além dos estoques tradicionais que as famílias já conservavam das suas sementes crioulas, as comunidades de base estimularam (…) estoques coletivos que permitissem que as famílias se libertassem da dependência das sementes fornecidas muitas vezes pelo poder local”, rememora Luciano.

No Pólo Sindical da Borborema, no semiárido paraibano, surgiram redes de bancos comunitários de sementes, as quais vêm se fortalecendo ao longo dos anos, com apoio de organizações como a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) e chegando a propor políticas públicas voltadas para o tema. Hoje a região produz, dentre outros alimentos, o cuscuz da paixão, fubá produzido a partir de milho crioulo cultivado nos territórios.

“Nós temos várias comunidades aqui que são livres de transgênicos, são protegidas, todas as famílias plantam a mesma variedade e praticamente um vigia o outro pra não deixar nenhuma semente estranha chegar nessa comunidade”, relata Euzébio. Ele também demarca: “nossa luta atual é pra que nos conselhos municipais de desenvolvimento rural sustentável não distribuam milho que não seja da nossa região, estamos brigando para que as prefeituras comecem comprar milho agora para estocar (…), porque o milho é nossa maior preocupação hoje, ele é quem contamina”.

A Paraíba segue com a campanha “Não planto transgênico pra não apagar minha história”, assim como outra mais recente intitulada “Multiplique sementes crioulas: conserve memórias no mundo”, lançada no último dia 15 pelo Centro de Apoio Cultural (Centrac).

Em outros estados do Semiárido a defesa das sementes crioulas também acontece a partir de diversas ações protagonizadas pelos movimentos sociais e organizações de apoio. Assim como o problema da transgenia é mundial, o enfrentamento também é. Atualmente, o México, onde há uma predominância no consumo e cultivo de inúmeras variedades de milho, trabalha a campanha “Sin maíz no hay país” (cuja tradução é “sem milho não há país), evidenciando a ameaça a soberania alimentar dos povos e lutando pela defesa das sementes livres de modificação genética.

Para Luciano, da AS-PTA, na década de 1960, 1970, a disputa era com os grandes coronéis, hoje são com as grandes corporações “que dominam o mercado de sementes e de produção de alimentos no mundo”. Para tanto, é preciso um enfrentamento que junte forças para além das famílias e movimentos sociais, mas que envolva toda a sociedade, considerando os aspectos culturais, mas também ambientais, econômicos e políticos que estão imbricados.

Conquistas – A partir das diversas experiências de conservação e preservação das sementes crioulas, a pressão social realizada pela sociedade civil organizada provocou o lançamento do Programa Sementes do Semiárido, em 2015, durante o governo Dilma Roussef (PT). Mais de mil casas e bancos comunitários foram beneficiados, aproximadamente 20 mil famílias contempladas, cita Luciano.

O Programa foi executado pela ASA e estimulou a autogestão no processo de estoque de sementes nativas, intensificando, inclusive, o debate acerca da autonomia das/dos agricultores/as familiares na conservação da genética frente ao processo de dominação do mercado dos transgênicos.

Outro aspecto bastante positivo nessa trajetória, foi a aproximação de organizações como a ASA com a Embrapa, o que tem rendido estudos, pesquisas e projetos voltados para a valorização das sementes crioulas. Esta parceria tem garantindo, inclusive, ações como análises, ensaios comparativos para identificar índices de contaminação e implantação de campos de multiplicação das sementes nativas em diversos estados do Semiárido, a exemplo do que foi viabilizado nos últimos anos, por meio do projeto Agrobiodiversidade no Semiárido, que é parte do Programa Inova Social da referida empresa pública de pesquisa.

O estado do Rio Grande do Norte apresenta também uma experiência bastante exitosa no campo das políticas públicas. Dentro do programa do governo de Fátima Bezerra (PT) consta o trabalho de compra e distribuição de sementes, “o maior programa de distribuição de semente no Brasil”, afirma o secretário estadual de Desenvolvimento Rural e Agricultura Familiar, Alexandre Lima.

Em parceria com a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e com diversas parcerias, a exemplo da ASA, famílias agricultoras fornecem e recebem sementes crioulas com o objetivo de preservarem as espécies. Segundo Alexandre, o Programa é fruto, inclusive, do Programa Sementes executado pela ASA.

No início deste ano, foi aprovada a Politica Estadual de Sementes Crioulas (Lei nº 10.852/21) que trata também de mudas nativas. Com recursos próprios, o estado estabeleceu a meta de distribuição de 96 toneladas de sementes, com um investimento total de um milhão de reais, incluindo sementes de feijão, milho, fava, arroz vermelho, sorgo forrageiro e gergelim, totalizando 17 variedades destas.

No período de 2020/2021 o número total de famílias beneficiadas já foi de 4.773. Para o secretário estadual, contudo, pesquisas feitas no estado têm apontado o desafio da contaminação como um entrave ao programa. A avaliação de eventos de transgenia a partir de 27 amostras constatou que 63% destas estavam contaminadas e apenas 37% livre de transgenia.

Ao celebrar esse avanço no estado, Alexandre reconhece a importância da parceria com a ASA, Emater e os movimentos sociais e reforça: “Sem a parceria com a ASA e os movimentos sociais, o programa não aconteceria aqui”.

Foto: Joka Madruga

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