Alckmin prova que matar negros e pobres nunca fez mal à reputação de ninguém

Por Fausto Salvadori, da Ponte

Logo após a morte de George Floyd, no ano passado, quando um crime ocorrido nos EUA fez os brancos brasileiros passarem a olhar para o racismo de seu próprio país e o debate racial saltou para o primeiro plano de todas as conve11rsas, o professor Silvio Almeida alertou para o risco de que tudo aquilo não passasse de uma “micareta racial”, que acabaria esquecida como se fosse uma modinha, “uma espécie de antecipação do dia 20 de novembro” ou “um 13 de maio fora de época”.

Um ano depois, parece que a profecia do professor se confirmou. Apesar de todos os quadrados pretos e das frases inspiradoras do Instagram de famosos, parece que de, lá para cá, muita gente se esqueceu da luta antirracista e vem deixando a questão racial de lado na hora de discutir os temas que “importam de verdade”, como economia e eleições. Prova disso é a falta de questionamento com que foram recebidas as notícias de que Lula e Geraldo Alckmin estariam discutindo uma aliança para as alianças do ano que vem.

Não é fácil saber o que é fato, fofoca ou balão de ensaio neste tipo de informação, mas não é disso que quero falar. O que me chama a atenção é ter visto muito pouca gente, mesmo entre analistas e militantes progressistas, lembrar dos vários crimes que os governos de Geraldo Alckmin praticaram contra a população negra e pobre de São Paulo. Parece que nunca existiram.

Então, vamos lembrar um pouco do que tantos parecem ter esquecido. Assim que assumiu o governo de São Paulo, em 2001, com a morte de Mário Covas, Alckmin tratou de sepultar, junto com o seu antecessor, as políticas que, entre avanços e recuos, buscavam diminuir a violência policial e construir uma segurança pública menos autoritária e racista. “Em São Paulo, bandido tem dois destinos: prisão ou caixão”, foi o que Alckmin declarou logo no início da gestão, antecipando em quase 20 anos uma frase parecida com a que João Doria haveria de dizer (e depois negar) ao sentar na mesma cadeira.

Foi no início do governo Alckmin que a polícia armou uma emboscada em que atraiu 12 membros do PCC para um roubo a um avião pagador (que não existia) e atirou mais de 700 vezes no ônibus em que viajavam, até não sobrar ninguém com vida, na rodovia Castelinho, em 5 de março de 2002. Todos os envolvidos no massacre da Castelinho foram absolvidos na Justiça e os comandantes da operação foram promovidos por Alckmin.

“O tucano paulista virou carcará”, escreveu o jornalista Élio Gaspari. Um promotor de justiça declarou que a operação Castelinho era “a maior farsa já protagonizada pela polícia de São Paulo”. Não tinha como imaginar o que estava por vir.

Um dos secretários de Segurança Pública da gestão Covas, José Afonso da Silva, foi de uma clareza pouco comum entre os tucanos ao descrever o que mudou com a chegada de Alckmin ao governo. “Havia uma orientação anterior [no governo de Luiz Antonio Fleury Filho, antecessor de Covas] de que o policial deveria matar os delinquentes. Em nosso período implantamos uma orientação diversa, instruindo os policiais a prender os suspeitos e levá-los a julgamento. Acho que [no governo Alckmin] essa orientação [de matar] voltou a ser tal como era antes.”

Em maio de 2006, quando Alckmin estava nominalmente afastado do governo para concorrer à Presidência da República, mas na prática continuava a influenciar nas ações do governador Cláudio Lembo, o governo de São Paulo executou um dos maiores massacres da história republicana: os Crimes de Maio. Em resposta a uma onda de ataques do PCC que matou 59 agentes públicos, a polícia matou 505 pessoas nos bairros periféricos, mais do que a ditadura militar em 21 anos. Mais da metade das vítimas eram negras.

Em 2012, a polícia paulista voltou a colocar em prática o mesmo lema da ditadura que havia adotado em 2006: “para cada um dos nossos que cair, dez deles devem morrer” — “eles”, no caso, entendidos como qualquer morador de periferia que estivesse na rua à noite. Em resposta a ataques do PCC, que dessa vez mataram dezenas de policiais, a PM praticou uma série de ataques em bairros periféricos que deixaram centenas de mortos. Novamente, a maioria das vítimas era negra.

Num desses ataques, quando a Rota invadiu um “tribunal do crime” do PCC e matou as nove pessoas que estavam lá, inclusive a vítima dos criminosos que os policiais supostamente pretendiam salvar, Alckmin defendeu enfaticamente a ação: “Quem não reagiu está vivo”.

O que não me cansa de surpreender é constatar que Alckmin e sua gangue, mesmo após nadarem em uma piscina de sangue, tenham conseguido sair dela imaculados, sem uma única mancha na reputação. Ninguém associa Alckmin com crimes ou com truculência, ao contrário: ele é universalmente considerado anódino, um “picolé de chuchu”. Não deveria me surpreender, é claro, porque não faltam exemplos na história do Brasil de como matar negros, indígenas e pobres não costuma fazer mal para a reputação de ninguém. As estátuas dos bandeirantes estão aí para provar.

Que ninguém tenha se preocupado em tocar nessas questões quando se falou de uma possível aliança entre Lula e Alckmin é mais uma prova de que, um ano após a morte de George Floyd, a carne negra continua sendo a mais barata do mercado. Segundo a colunista Thaís Oyama, Lula teria definido  Alckmin como “o único tucano que gosta de pobre”. O cientista político Celso Rocha de Barros, que costuma ser associado a posições progressistas, enumerou uma série de vantagens econômicas e táticas na aliança entre PT e PSDB, mas em nenhum momento tocou na questão dos direitos humanos e do massacre da juventude pobre, preta e periférica, como se não existisse.

Não estou fazendo um apelo moralista e ingênuo. Sei que alianças são necessárias e sei que o próprio PT, a rigor, teria pouca moral para criticar a política genocida de Alckmin, já que segue uma cartilha bem parecida na Bahia com o governador Rui Costa, que já comparou a chacina de 12 jovens negros a um gol de campeonato. O que eu queria era ver os direitos humanos sendo trazidos à mesa e virando tema dos debates políticas. Nenhum partido de esquerda ou da direita democrática (se é que isso existe no Brasil) deveria planejar suas alianças e táticas sem levá-los em conta.

Já passou da hora de ver os candidatos de qualquer cargo eletivo se sentindo obrigados a assumir posições e fazer propostas a respeito de temas como extermínio negro e indígena, encarceramento em massa e seletividade penal, da mesma forma como fazem com tantas outras pautas. Só quando isso acontecer é que poderemos dizer que vidas negras e indígenas passaram a importar.

Fausto Salvadori
Diretor de redação

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