Mais de um terço da população brasileira com mais de 25 anos está com a escolarização incompleta. EJA poderia formar, capacitar e garantir qualidade de vida, mas política nacional foi desmontada: turmas foram fechadas e matrículas despencam
Por Cátia Guimarães, na EPSJV/Fiocruz
Cerca de 70 milhões de brasileiros com mais de 25 anos não tinham concluído a escolarização básica em 2019. Num país com mais de 212 milhões de habitantes, isso corresponde a mais da metade da população adulta acima dessa faixa etária – um contingente grande e diverso, que inclui desde o seu jovem vizinho que não terminou o ensino médio porque precisou trabalhar até a avó que nunca teve a oportunidade de estudar. “É impressionante o mito de que a baixa escolaridade da população é um problema do passado, de que com o investimento na educação das novas gerações isso estará em breve superado e que, portanto, a Educação de Jovens e Adultos pode acabar. É um equívoco total”, explica Maria Clara di Pierro, professora da Universidade de São Paulo (USP), que faz as contas: somando-se os 11 milhões de analfabetos que ainda existem no Brasil à parcela da população que não concluiu o ensino fundamental ou o médio, tem-se como público potencial da EJA um número maior do que os 47,3 milhões de estudantes matriculados em toda a educação básica em 2020. “Não faz nenhum sentido imaginar que a educação de adultos possa estar na iminência de se tornar dispensável ou irrelevante”, completa Pierro.
É verdade que a maior parte desse público potencial da EJA é formada por pessoas idosas, que talvez não se reconheçam como estudantes, não tenham disposição nem condições de estudar e, portanto, nunca venham a desfrutar do direito que a Constituição Federal de 1988 lhes garantiu. Mas é importante saber que esse direito existe: a partir dos 18 anos, os jovens e adultos já não são obrigados a frequentar a escola mas, se demandarem, é dever do poder público oferecer essa oportunidade. “A educação também é chave para a qualidade de vida no envelhecimento. Esse raciocínio que tende a não conferir tanta importância aos idosos porque supõe que eles não são produtivos, a meu ver, é um equívoco”, alerta Pierro.
É inegável, no entanto, que hoje a maior pressão sobre a EJA vem da juventude que teve uma formação inconstante ou incompleta. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) Contínua, desenvolvida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – mesmo estudo que apontou os dados que abrem esta reportagem –, 12% dos jovens entre 15 e 17 anos, idade em que deveriam estar cursando o ensino médio, estavam fora da escola em 2019. “São candidatos à EJA”, ressalta Pierro. E vale lembrar que esses números são anteriores à pandemia de Covid-19: embora não haja dados oficiais sobre evasão escolar decorrente da crise sanitária, a experiência de escolas fechadas, junto com a dificuldade de oferta e acesso ao ensino remoto, além do agravamento da crise econômica, sugere uma piora que vai impor desafios às políticas de educação em todos os níveis. “A Educação de Jovens e Adultos é uma porta de reinserção dessa juventude pobre à qual o sistema escolar não conseguiu garantir permanência e aprendizagem relevante”, explica Pierro.
Diminuição da oferta
A realidade das políticas públicas de EJA no Brasil, no entanto, segue no sentido contrário. Cálculos do professor José Marcelino Pinto, da USP, sistematizados num artigo da Revista de Financiamento da Educação, da Fineduca, em setembro deste ano, mostram que, no Brasil, entre 2007 e 2019, caíram praticamente à metade as matrículas de Educação de Jovens e Adultos no ensino fundamental e em 20% no ensino médio. No segmento que atende aos primeiros anos de escolarização, nenhum estado brasileiro ampliou as matrículas nesse período. Já quando se observa a EJA de ensino médio, nove estados ampliaram matrículas mas em 19 houve queda, em alguns casos muito significativa: no topo do ranking, São Paulo, por exemplo, reduziu à metade; Mato Grosso do Sul a um pouco menos (47%) e Santa Catarina a um pouco mais (54%).
Outra expressão dessa redução de oferta são as denúncias de fechamento de turmas no período noturno, que costumam atender principalmente à EJA. De acordo com tabela produzida pela pesquisadora Aline Sonobe, que integra o grupo de estudo em Financiamento e Trabalho Docente da Universidade Federal do Paraná (UFPR), disponível no artigo de José Marcelino Pinto, entre 2007 e 2019, mais de 21 mil escolas brasileiras teriam deixado de funcionar à noite, representando uma redução de 37% da oferta de ensino nesse turno. Segundo esses números, sistematizados a partir dos microdados do Censo Escolar, a maior diminuição se deu na esfera municipal (49%), com quase o dobro da redução de 25% que aconteceu nos estados.
De 2019 para cá, no entanto, um outro processo vem influenciando diretamente as redes estaduais de ensino, com possíveis impactos também para a Educação de Jovens e Adultos. Trata-se da implementação do novo ensino médio, resultado da reforma aprovada em 2017. De acordo com o cronograma oficial, todas as redes estaduais devem operar com o novo currículo do ensino médio a partir de 2022. Mas experiências preparatórias para esse momento já vêm sendo feitas por diversas redes há mais de dois anos. Combinados, dois elementos da reforma impactariam a Educação de Jovens e Adultos. O primeiro deles é a ampliação da carga horária – de 2,4 mil para 3 mil horas –, que muitas vezes inviabiliza o estudo de adultos trabalhadores. O segundo, que consta das novas Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio, aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) em 2018, como parte do processo de adequação das normas legais à reforma, é o que autoriza que até 80% da carga horária da EJA possa ser oferecida à distância – no ensino médio cursado fora da Educação de Jovens e Adultos, o máximo de EaD são 20% no diurno e 30% no noturno. “Toda a lógica da reforma do ensino médio é aumentar a carga horária. E eles não sabem o que fazer com o ensino noturno e com a Educação de Adultos. Então, foram omissos: dizem que é problema dos estados, que os estados devem regulamentar isso, mas se cogitou a hipótese de um percentual muito alto da carga horária ser feito a distância”, contextualiza Pierro, que opina: “Esses alunos vão ficar fora do sistema porque não têm o suporte pedagógico necessário”.
Embora o impacto definitivo desse processo só possa ser medido após a implementação completa da reforma, a partir do ano que vem, Pierro considera uma “boa hipótese de pesquisa” a suposição de que, impulsionada pela reforma do ensino médio, uma parte significativa das matrículas de EJA oferecidas migre para a modalidade a distância. “Há dados empíricos e evidências que sustentam essa hipótese”, diz.
Um desses indícios vem exatamente da experiência de São Paulo. De acordo com Fernando Cássio, professor da Universidade Federal do ABC, o Programa de Ensino Integral (PEI), que vem sendo desenvolvido no estado desde 2012, portanto muito antes da aprovação da Reforma do Ensino Médio, tem intensificado o fechamento de turmas noturnas e, particularmente, de EJA. Nota técnica da Rede Escola Pública e Universidade (Repu), da qual Cássio é pesquisador, publicada em junho deste ano, mostra uma queda de mais de 75% nas matrículas de EJA entre 2011 e 2018 nas escolas em que o programa foi implementado. O texto reconhece que o governo garante a transferência de matrícula desses estudantes para outras escolas, mas alerta que isso aciona um problema historicamente conhecido desse segmento: a dificuldade de alunos adultos trabalhadores se locomoverem e estudarem longe de casa ou do trabalho. Na avaliação de Fernando Cássio, embora a Reforma do Ensino Médio deva intensificar esse processo, é preciso ter em conta que, especificamente em São Paulo, ele vem de muito antes. “O fechamento do noturno é um fenômeno que acontece em São Paulo há muito tempo. E uma das políticas que contribui para esse fenômeno é a expansão dessas escolas de ensino integral, que ampliam a jornada dos alunos mas também excluem os mais pobres”, diz.
Via assessoria de imprensa, a Secretaria Estadual de Educação de São Paulo reconheceu que a implementação do PEI veio acompanhada de fechamento de turmas de EJA até 2018, mas garante que, desde a nova gestão, a orientação normativa é o contrário: que se mantenha essa modalidade em todas as escolas em que houver demanda. Não existem, no entanto, dados sobre manutenção ou fechamento de turmas de Educação de Jovens e Adultos no estado a partir de 2019. Procurado pela reportagem, o Ministério Público de São Paulo informou que também não tem dados atualizados. “Em regra, quando o Grupo de Atuação Especial de Educação (Geduc) requisita informações (e normalmente em casos concretos e localizados de notícia de fechamento de turmas ou escolas), há justificativa de ausência de demanda e possibilidade de atendimento em outras unidades. Mas sabemos que falta muita divulgação e trabalho de estímulo para que adultos procurem as escolas”, completou o órgão, via assessoria de imprensa.
Pierro destaca que, em todo o país, a queda da matrícula na EJA é um “fenômeno complexo”. “Ele é anterior à reforma e não tem a ver só com o ensino médio porque ocorre também no fundamental. Mas tem a ver, por exemplo, com a lógica de nucleação”, explica a professora, referindo-se ao processo de agrupamento de várias turmas em uma única escola, que é parte das estratégias de gestão para economizar recursos e organizar o trabalho docente. Ela explica que, do ponto de vista da “racionalidade administrativa”, essa nucleação traz vantagens para o professor, que concentra a carga horária em uma única escola, e para o gestor, que reduz pessoal e gastos. “Mas para o atendimento à demanda é um desastre”, diz, reforçando a dificuldade de locomoção desses estudantes. “Ao invés de mobilizar a demanda potencial por EJA, desmobiliza”, resume.
Além da Reforma do Ensino Médio, há outras novidades recentes que também geram impacto na Educação de Jovens e Adultos. Em maio deste ano, o Conselho Nacional de Educação publicou uma nova resolução (nº 01/2021), que busca alinhar a EJA a outras duas mudanças em curso: a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a Política Nacional de Alfabetização (PNA), além de estabelecer regras específicas para a EaD nesse segmento. A professora Maria Clara di Pierro, que tem fortes críticas à resolução, explica que a origem do problema está na forma como essas políticas concebem a EJA. Segundo ela, a PNA, instituída pelo Decreto nº 9.765 em 2019, é “uma tentativa de impor os métodos fônicos [que ensinam primeiro os sons das letras] como a única alternativa de alfabetizar baseada em evidências científicas”. Já sobre a BNCC, ela argumenta que em nenhuma das edições da Base foram discutidas, de fato, as necessidades da EJA. Para amenizar, conta, nas versões finais do documento foi acrescentada a palavra “adultos” em trechos que antes se referiam apenas a crianças e jovens. “Mas não houve nenhuma reflexão, nenhuma consideração da especificidade [desse segmento]. É uma concepção da EJA como uma extensão, sem especificidade curricular”, lamenta.
Procurado via assessoria de imprensa para comentar essas críticas e fornecer informações sobre o financiamento da EJA em nível federal, o Ministério da Educação não respondeu à reportagem.
EJA no Plano Nacional de Educação
Da oferta de Educação de Jovens e Adultos depende, em grande medida, o cumprimento de algumas metas do Plano Nacional de Educação (PNE), a lei nº 13.005/2014, atualmente em vigor. A meta 8 do PNE estabelece, entre outras coisas, que a escolaridade da população de 18 a 29 anos que mora no campo e está entre os 25% mais pobres seja ampliada para no mínimo 12 anos, o que significa garantir o ensino médio completo. O prazo é 2024. Segundo os indicadores mais recentes divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), em 2019 a média nacional para essa população era de 11,6 anos de estudo. Um recorte regional mostra que o Sudeste até já atingiu a meta, mas o contraste fica evidente quando se constata que seis estados – um do Norte, o Pará, e cinco do Nordeste, Alagoas, Bahia, Maranhão, Paraíba e Sergipe –, tinham média inferior a 11 anos de estudo.
Também a meta 9, que prevê erradicar o analfabetismo absoluto e reduzir em 50% o analfabetismo funcional de pessoas com mais de 15 anos até 2024, depende de políticas de Educação de Jovens e Adultos. O acompanhamento feito pelo Inep mostra que em 2019 se chegou a 93,4% da população brasileira alfabetizada – uma expectativa intermediária da meta era alcançar 93,5% quatro anos antes, em 2015. Com 6,6% da população sem alfabetização, portanto, a erradicação do analfabetismo em 2024 parece pouco provável. Da mesma forma, o analfabetismo funcional alcançava 14,1% da população acima de 15 anos em 2019, distante quase cinco pontos percentuais da meta estabelecida para 2024.
Desinvestimento
Na divisão de responsabilidades educacionais, a EJA é atribuição principal de estados e municípios. E, embora nada impeça que dinheiro extra seja usado nessa etapa de ensino, o principal investimento nessa área se dá através do Fundeb, o Fundo Nacional de Manutenção da Educação Básica e Valorização dos Profissionais de Educação, que junta recursos dos três níveis de governo. Mas aqui esbarra-se no problema que José Marcelino Pinto classifica como mais uma expressão da “invisibilidade” desse segmento educacional: como, muitas vezes, o professor que dá aula para jovens e adultos é o mesmo que ensina no ‘regular’, esse gasto na maioria dos casos não está sequer contabilizado como EJA. Os cálculos, portanto, são difíceis.
Mesmo assim, no artigo Pinto calcula a “receita potencial mínima” estimada para a Educação de Jovens e Adultos, tendo 2019 como base e o número de matrículas como parâmetro. O resultado é que, em todo o país, naquele ano, a EJA teria recebido o equivalente a cerca de 7,5% do total do Fundeb – em 2007, segundo os mesmos cálculos, esse segmento recebia 10% do ‘bolo’. Na verdade, o argumento principal do professor é que a lógica do Fundeb – mesmo depois da sua nova versão, que entrou em vigor este ano –, não favorece a expansão de matrículas, porque, como o dinheiro total do Fundo cresce muito pouco, quanto maior o número de estudantes da rede, menor é o valor per capita. E ele ressalta ainda que, no caso da EJA, essa situação é mais grave. Primeiro porque, de acordo com os fatores de ponderação definidos no Fundeb, o aluno da EJA ‘vale’ menos do que o de outros segmentos e modalidades: para cada dez estudantes, recebe-se o dinheiro de oito. Segundo porque a pressão social sobre os gestores também é menor. “Na EJA é mais fácil de cortar. Quando o governo de São Paulo fechou escolas, os meninos as ocuparam. Mas a EJA é vista meio de favor, como se a escola emprestasse seu espaço noturno para essas aulas”, lamenta Pinto. Por isso, ele defende que, para incentivar a ampliação de matrículas nesse segmento, é preciso garantir de forma rápida recursos federais a partir de programas próprios de fomento, “por fora do Fundeb”.
Os números mais atuais do investimento federal na EJA, no entanto, não são nada animadores. Dados sistematizados pelo professor da USP, a partir do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento do governo federal (Siop), mostram que os valores empenhados pela União para a Educação de Jovens e Adultos caíram de R$ 1,38 bilhões em 2011 para R$ 8 milhões em 2020. O auge do investimento se deu em 2012, quando alcançou 1,78 bilhões. Agora, em 2021, o orçamento aprovado na Lei Orçamentária Anual para a EJA foi de R$ 3,5 milhões, dos quais, até o fechamento desta reportagem, apenas R$ 700 mil tinha sido empenhados. “É a barbárie da barbárie”, analisa Pinto. Consultado pela reportagem, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) informou, via assessoria de imprensa, os valores repassados por ele para ações de EJA. A série histórica começa em 2016, com um investimento federal de R$ 235 milhões, e termina em 2021, com apenas R$ 1,33 milhões, que se referem exclusivamente à Educação de Jovens e Adultos integrada à Educação Profissional.