Debate como arma negacionista

Por Marcelo Yamashita e Natalia Pasternak, na Revista Questão de Ciência

O aquecimento global antropogênico, aquele causado pela ação do ser humano, deve figurar entre os primeiros lugares na lista dos consensos científicos vigentes neste século. A despeito dos diversos estudos bem fundamentados, apresentados por cientistas sérios em revistas de alta qualidade, é impressionante que instituições renomadas ainda incorram no erro de estimular falsa controvérsia, e pior, falsa equivalência no debate público.

Em episódio recente, divulgado no site da instituição e nas redes sociais, o Instituto de Física (IF) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) anunciou um seminário intitulado “Evidências científicas indicam que não há aquecimento antropogênico” que se propunha, entre outros absurdos, a mostrar que “o papel desempenhado pelo CO2 antropogênico é insignificante, mesmo se duplicada a sua concentração”. Em tempo, a “polêmica” relacionada ao aquecimento global antropogênico é equivalente à “polêmica” envolvendo terraplanistas e o formato da Terra. A controvérsia não existe, a comunidade científica não está dividida sobre o aquecimento global, assim como não está dividida acerca do formato da Terra.

A repercussão negativa causou um certo rebuliço nas redes sociais e uma manifestação da direção do IF/UFRJ, fatos provavelmente responsáveis pelo cancelamento do seminário. Embora correta, a decisão pelo cancelamento acarretou algum desconforto em parte da comunidade acadêmica.

Houve defesa da manutenção do evento, com o pressuposto de que as ideias absurdas naturalmente cairiam por terra, com a exposição à sabatina de uma plateia qualificada. A realidade, porém, é outra. Cientistas sérios não devem debater com, ou dar palco para, quem nega a ciência e cria a sua própria pantomima dos fatos.

No livro “O Capelão do Diabo”, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, Richard Dawkins, em uma carta endereçada a Stephen Jay Gould (1941-2002), descreve um episódio que mostra um dos problemas de debater com negacionistas. Philip Johnson, fundador de uma escola criacionista, escreveu no site “Wedge of Truth” uma nota intitulada “Wells hits a home run at Harvard” (Wells marca gol de placa em Harvard – tradução livre). A nota escrita por Johnson tratava do convite feito ao seu colega Jonathan Wells para debater com um cientista sério, em Harvard, as suas maluquices relacionadas ao design inteligente.

O gol de placa, mencionado por Johnson, obviamente não tem nada a ver com o desempenho de Wells no debate – isso pouco importa para o negacionista. A vitória de Wells consolidou-se no momento que ele recebeu o convite para falar na prestigiosa universidade, como fica claro na frase escrita por Johnson: “esse é o tipo de debate que ocorre atualmente nas universidades”, sugerindo que se Harvard, uma instituição séria, aceita sediar um debate sobre o assunto, então a “controvérsia” entre criacionismo e a teoria da evolução também seria séria. Ao acolher o debate, a universidade permitiu que sua “marca” fosse sequestrada pela máquina publicitária de uma doutrina pseudocientífica.

É ilusório, portanto, achar que haverá algum fragmento de decência intelectual dos negacionistas durante um debate ou seminário – o objetivo dessas pessoas não é convencer o cientista competente de que as suas ideias têm mérito, mas tão somente construir, para o público desinformado, a ilusão de que o assunto é levado a sério pela ciência e por instituições identificadas com a ciência. Seja qual for o resultado do debate ou seminário – normalmente, um vexame completo –, o negacionista já ganhou um certo verniz de respeitabilidade ao ser acolhido pela instituição que o convidou.

No livro “Contra a Realidade”, os autores atentam para o fato de que o negacionismo, em geral, é motivado não pelos fatos em si, mas pelo que eles representam e por suas consequências. No momento em que aceitamos que certo fato é real, seja ele aquecimento global antropogênico, eficácia e segurança de vacinas ou que o tabaco causa câncer de pulmão, espera-se que nos comportemos de acordo. Que atuemos, como cidadãos, ou gestores públicos ou empresários, para minimizar os efeitos do aquecimento global, do tabaco, do movimento antivacinas.

Uma forma de escapar das exigências morais e racionais que fatos como a mudança climática nos impõem é validar teorias negacionistas. Se o problema não existe, não é preciso fazer nada a respeito, afinal. E que forma melhor de validar o negacionismo, perante a opinião pública, do que criando a impressão de que suas propostas são levadas a sério por instituições científicas de renome? Se os cientistas ainda estão debatendo se o problema existe ou não, então talvez seja muito cedo para investir em fontes limpas de energia.

Quando a imprensa, ou as universidades, cedem espaço para a falsa equivalência, e convidam criacionistas para debater com biólogos evolutivos, ou negacionistas do clima para falar em instituições de renome, estão atuando como inocentes úteis – cúmplices involuntários – dessa retórica.

É compreensível que empresas, como a indústria do tabaco, por exemplo, empenhem-se em implementar uma falsa polêmica na mídia para manter seus produtos viáveis – como ficou claro no livro Mercadores da Dúvida. É inaceitável, porém, que instituições sérias se deixem levar por falsas equivalências e se permitam usar por quem busca criar a impressão de que consensos científicos, estabelecidos há décadas, na verdade não existem.

Há, é claro, questões na ciência e discussões acadêmicas em aberto, onde a evidência disponível, por ser pouca ou ambígua, permite que cientistas se dividam, de forma honesta, em campos que propõem hipóteses divergentes e, até, opostas. Só acontece de a evolução e o aquecimento global não estarem entre elas.

Além disso, controvérsias científicas legítimas desenvolvem-se e são resolvidas no debate interno, na troca de argumentos, dados e resultados experimentais entre especialistas, processo que tem lugar em fóruns específicos – como revistas científicas –, não em debates-performance perante o público geral. Essa é a natureza do conhecimento especializado: se dois engenheiros discordam sobre se um prédio corre ou não risco de cair, a dúvida deve ser dirimida por meio de cálculos revisados por profissionais da área, e não por voto na assembleia de condomínio.

Assim como a solidez de um edifício, a ciência não se define por aclamação – não se decidem questões técnicas através de votos em audiências públicas. Nesse sentido, dar voz à mentira não é imparcialidade, é irresponsabilidade. Trata-se de um caso em que a alegoria do pombo enxadrista, que defeca, derruba as peças do tabuleiro e volta para o seu bando cantando vitória, é válida para ilustrar por que não devemos debater com um negacionista (ou convidar um pombo para jogar xadrez).

*Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência e Natalia Pasternak é microbiologista, pesquisadora associada do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV), presidente do Instituto Questão de Ciência, membro do Committee for Skeptical Inquiry (CSI), colunista do jornal O Globo e coautora de “Ciência no Cotidiano” (Editora Contexto), obra vencedora do Prêmio Jabuti em 2021, e “Contra a Realidade”(Papirus 7 Mares). Atualmente, é professora adjunta em Columbia University.

Foto: Hieronymus Bosch: detalhe de “O jardim das delícias”

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Regina Moreira.

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