Imperdível: “George, Robert e Louis”. Por Mauro Iasi

Não sei das intenções de George e Robert, mas gosto de pensar que Louis Armstrong nos traz uma oração maravilhosa para um mundo horrível, a síntese brutal do que nós somos enquanto seres humanos e o quanto a arte se esforça para nos dar uma chance.

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Você sabe quem foram George David Weiss e Robert Thiele? Provavelmente não.

Nos anos 1950 e 1960, os protestos pelos direitos civis explodiam nos Estados Unidos. Em 1955, Rosa Parks recusou-se a ceder o seu lugar no ônibus para um homem branco na cidade de Montgomery; em 1957, nove jovens negros ganham o direito de estudar na escola central de Little Rock e são hostilizados pelos alunos e a população; em 1961, na cidade de Greensboro, na Carolina do Norte, jovens sentam-se no chão em praças, museus, lanchonetes em protesto contra a segregação e são retirados violentamente pela polícia e presos, mas seu exemplo se espalha pelo país.

Em agosto de 1963 milhares de pessoas marcham pelos direitos civis guiados por Martin Luther King Jr. até Washington. Em 1966, Bobby Seale e Huey Newton fundavam o Black Panther Party for Self-Defense. Em 1965, Malcolm X seria assassinado em Nova York e, três anos depois, Luther King seria assassinado no em Memphis, Tennessee. Trinta anos antes, no dia 7 de agosto de 1930, dois jovens negros eram pendurados em uma árvore em Marion, Indiana. Seus nomes eram Thomas Shipp e Abram Smith.

Em 1936, um professor judeu do Bronx chamado Abel Meeropol, chocado com o linchamento e enforcamento dos dois jovens, publicou um poema no New Yorker Teacher sob o pseudônimo Lewis Allan. Ele mesmo o musicou, nascendo assim a música Strange Fruit, que Billie Holiday gravou. Ele era um militante comunista. Ela uma voz que brotava das inescrutáveis profundezas da alma. Uma vez que os versos encontram a voz, já não é possível separá-los. O compositor se recolhe para um lugar indefinido e invisível, aliena-se na objetivação artística subsumido como valor no corpo da mercadoria.

Trinta anos depois a luta pelos direitos civis tomava conta do país. Louis Armstrong já era um conhecido cantor de jazz, trompetista de primeira, dono de uma voz grave e melodiosa. Nascido em Nova Orleans, em 1901, foi abandonado pelo pai e criado somente pela mãe, enfrentando inúmeras dificuldades. Foi entregador de jornais, sapateiro e outros pequenos ofícios. Fugia de casa para os bares para ver os músicos e cantores de jazz. Conseguiu comprar seu primeiro trompete com o dinheiro emprestado de uma família de russos judeus, os Karnofskys. Desenvolveu seus estudos musicais quando passou 18 meses no reformatório por atirar com uma pistola na rua para comemorar o Ano Novo. Aos 14 anos, já corria com sua banda pelo país. Nos anos 1920, foi morar e trabalhar em Chicago onde, pela primeira vez, teve um apartamento com banheiro. Conheceu a fama, tocou em várias orquestras e participou de filmes, tornando-se a personificação do jazz.

Apesar disso, já morando em Nova York, sofria com o racismo, apedrejamentos em sua casa, roubo de suas cartas, proibição de entrar em restaurantes. Já na casa dos 60 anos, famoso e com uma carreira consolidada, eclode o movimento pelos direitos civis. Os militantes cobravam dele uma postura mais atuante em defesa do movimento, mas ele se manteve distante. Por trás da risada icônica, o músico estava triste.

É neste momento, no ano de 1967, que dois compositores resolvem fazer uma música especialmente para ele. Seus nomes: George David Weiss e Robert Thiele. O caminho é diverso, não é uma canção de protesto, não é uma denúncia, mas não é somente uma canção.

O mundo e o país que a receberiam ardia em fúria e ódio. Sangue escorria pelas costas negras de novos mártires. Jovens seriam mortos aos milhares nos campos de batalha do Vietnã, países da América Latina seriam varridos por golpes sanguinários, torturas e assassinatos. Patrice Lumumba é assassinado no Congo em 1961, Fred Hampton em 1969, Amílcar Cabral em 1973. Um mundo horrível.

George e Robert eram reconhecidos produtores musicais e pensaram em uma música que falasse do otimismo por tempos melhores, na contramão do clima do final dos anos 1960. A música, que desde o início havia sido composta pensando nele, foi oferecida a Louis Armstrong, que a gravou em 1967.

I see trees of green,
Red roses too
I see them bloom
For me and you
And I think to myself,
What a wonderful world

Quase uma cantiga de ninar. Uma singela mensagem que voa com uma voz rouca e centenária até os ouvidos de bebês que choram e crescerão aprendendo muito mais do que poderíamos saber. Na introdução da gravação da música, Armstrong diz que ouve jovens perguntando; “como assim, um mundo maravilhoso”? “E as guerras, a fome e a poluição, isso é maravilhoso?”. Ele, então responde, “escutem este velho senhor, não é o mundo, mas o que estamos fazendo com ele. Dizer que o mundo é maravilhoso seria uma forma de dar-nos uma chance”. E canta maravilhosamente sua canção de ninar.

Mais uma vez, aqui a voz que abraça as palavras, a melodia se apropria de tudo e os autores se retiram para aquele lugar de invisibilidade. A música se tornou de Louis Armstrong e, através dele, de todos nós.  Nós, então, agradecemos a George e Robert.

E o mundo? Bom, o mundo continua horrível. Em 25 de maio de 2020 um policial sufoca George Floyd até a morte em Minneapolis.

Em um dos muitos clipes desta música foram editadas imagens da guerra do Vietnã (I see skies of blue) e se vê helicópteros bombardeando os campos (And clouds of white, the brigth blessed days, the dark sacred nigth), explosões e corpos mortos e feridos. Não sei das intenções de George e Robert, mas gosto de pensar que Louis Armstrong nos traz uma oração maravilhosa para um mundo horrível, a síntese brutal do que nós somos enquanto seres humanos e o quanto a arte se esforça para nos dar uma chance. Então… and I think to myself… what a wonderful world. E me dedico a mudá-lo.

***

Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas. Na TV Boitempo, apresenta o Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.

Comments (1)

  1. Esperança! Sempre caminhar com esperança, principalmente em nós mesmos, no que podemos fazer e ser. Vivemos em um mundo imperfeito, mas MARAVILHOSO.

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