Erika Hilton e a resistência transvestigênere no poder

No mês da visibilidade trans, a vereadora mais bem votada do país fala de resistência e da CPI da Violência Contra as Pessoas Trans e Travestis

Por Mariama Correia, em Agência Pública

No mesmo país onde candidaturas e a eleição de pessoas trans bateram recordes em 2020, pessoas transgêneras da política institucional sofrem agressões e ataques que tentam impedir o pleno exercício de seus mandatos. Segundo o “Dossiê sobre violências contra pessoas trans brasileiras” publicado nesta sexta-feira (28) pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), no ano passado, a violência política de gênero atingiu “de forma desproporcional as parlamentares trans/travestis”. 

O documento, lançado por ocasião do Dia da Visibilidade Trans (29/1),  identifica que a transfobia na política se dá por “diversas formas de ameaças e ataques por suas identidades de gênero, raça e pautas que defendem”. E afirma que a violência transfóbica vêm se acirrando desde a eleição de Bolsonaro. 

“Desde janeiro do ano passado o cerco fechou muito, para mim”, confirma a vereadora Erika Hilton (PSOL), que entrou na Câmara Municipal de São Paulo nas últimas eleições como a mulher mais bem votada do país e primeira vereadora trans da maior cidade da América do Sul. 

Em entrevista, Erika afirma que mesmo com as várias violências que sofreu desde que assumiu cadeira no Legislativo municipal – tanto as veladas quanto as diretas, como quando teve o gabinete invadido e passou a ser acompanhada por seguranças diariamente – ela não se intimida em assumir sua identidade travesti, negra, periférica, ativista pelos direitos humanos. Travesti é, vale frisar, uma identidade feminina, como ela fez questão de explicar em seu Twitter, em apoio à cantora Linn da Quebrada, que sofreu transfobia no Big Brother Brasil sendo chamada por pronomes masculinos. A vereadora também usa o termo transvestigênere, que ela cunhou para abarcar “todas identidades de homens e mulheres trans, travestis, pessoas trans não binárias, pessoas que fogem do CIStema”. 

Na entrevista, Erika conta ainda sobre sua atuação à frente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Vereadores e na presidência da primeira CPI  da Violência Contra as Pessoas Trans e Travestis. 

Você prefere ser identificada como travesti e não como uma mulher transgênero ou transexual. Você inclusive cunhou o termo “transvestigênere”. Pode explicar o termo?

Sim, eu me identifico como travesti, como mulher trans, transvestigênere, que foi um termo cunhado por mim e Indianare Siqueira para abarcar todas essas identidades, homens e mulheres trans, travestis, pessoas trans não binárias, pessoas que fogem do CIStema. É claro que cada um de nós tem suas especificidades, porque é sobre identidades que estamos falando, mas o esforço transvestigênere é um esforço para nós agrupados nessa diversidade toda, porque também temos muito em comum, somos contra a imposição de gênero que nos foi designado antes de sabermos que nós éramos.

Instituto Marielle Franco lançou recentemente uma pesquisa sobre violência política de gênero e raça no Brasil. O documento registra um pouco do que aconteceu na vida de políticas negras após as eleições de 2020, quando tivemos um recorde de candidaturas e eleições de pessoas trans. A pesquisa destaca, entre outras questões, atentados contra transexuais e travestis na política institucional e inclui um depoimento seu sobre o ataque sofrido dentro da Câmara Municipal de São Paulo, na semana da visibilidade trans, em janeiro do ano passado. Você começou a ter escolta policial desde então. Passado um ano, esse episódio ainda repercute na sua vida e na sua atuação parlamentar? Se sente segura tanto nas atividades cotidianas quanto para trabalhar? 

Ah, isso mudou tudo. Desde janeiro do ano passado o cerco fechou muito, para mim. Sempre ando acompanhada por meus seguranças e motorista, com protocolos rígidos de locomoção. Para ir à academia, ao trabalho, ir e voltar de casa. Nem jornal eu recebo na minha casa com medo que meu endereço vaze. Naquela época, um dos meus agressores disse em tom de ameaça que sabia os meus dados, inclusive onde eu morava. Depois do episódio da tentativa de invasão do meu gabinete, tivemos que lacrar as janelas por recomendação de especialistas de segurança e deixá-lo sempre trancado – com uma porta de vidro, equilibrando segurança e transparência. 

E é todo um contexto que deixa ainda mais perigosa a nossa vida. Um contexto de ataques a mim, à Duda Salabert, ameaças à Benny Briolly… enfim. Todo cuidado é pouco.

Já sofreu violência institucional e política no exercício do seu mandato? Como você lida com isso? 

As violências no exercício do mandato, pelos meus pares, são veladas. Eles não chegam a me desrespeitar enquanto pessoa, porque eu imponho muito, sou muito bem relacionada, nunca deixei margem para isso. São veladas, mas igualmente ou mais prejudiciais.

As violências a que me refiro, calcadas no conservadorismo e transfobia, são um reflexo de algo que sempre existiu na Câmara, mas com a minha entrada, e das minhas pautas, se agravaram. Eles tentam vetar, reprovar, sabotar, tudo, todas as leis, projetos, que falam de gênero. Desde gênero humano, até gênero alimentício. Juro. Esse é o nível. 

Nesse relatório do Instituto Marielle Franco, você diz que a violência passa pelo seu corpo muito antes da política. Essas experiências anteriores te prepararam para as violências que você tem enfrentado como vereadora?

Me deixaram mais forte, experiente e resiliente, com certeza. Me prepararam, inclusive, para que eu já chegasse blindada de muitas delas.

Voltando ao atentado na Câmara, as co-vereadoras Samara Sosthenes e Carol Iara, do PSOL como você, também sofreram ataques graves naquela época, na mesma semana. Havia uma investigação aberta sobre relações entre os três casos, apontando para transfobia e motivação política nos crimes. Houve conclusão? Você acredita que esses ataques foram direcionados ao partido ou a mulheres trans e travestis, negras e periféricas?

Acho que os casos delas foram encerrados, já, segundo a Polícia Civil. Encerrados já no meio do ano passado. Sei que foram tratados de maneira independente dos meus. Quero dizer, é óbvio que existe um contexto em comum… a transfobia enraizada na sociedade e a nossa recente chegada aos espaços públicos de poder e visibilidade, mas os casos não tinham conexão, não. 

A investigação acerca do que ocorreu com elas já foi encerrada, comigo o processo ainda vai mais longe, pela quantidade de casos e acontecimentos.

Samara e Iara não conseguiram ter acesso à escolta policial por integrarem mandatos coletivos. Inclusive a posição da Câmara na época foi de que não teria condições de oferecer seguranças sempre que fosse feita uma denúncia de agressão a parlamentares. Você recebeu o apoio que esperava, inclusive de outros parlamentares?  Pegando os casos de vocês como exemplo de tantos outros relatos semelhantes no Brasil, na sua percepção, essas denúncias estão sendo tratadas com a devida seriedade? 

Sim, felizmente tive apoio dos colegas parlamentares pela gravidade e quantidade de casos. Tentaram invadir meu gabinete. Meus processos continuam, investigações também, não foram encerradas, já há inclusive indicativos de sentenças para alguns de meus agressores, e mesmo assim as ameaças continuaram, escalando a gravidade. Por isso a Câmara mantém a minha proteção, não foram fatos isolados e as investigações seguem em curso. 

Mas tenho consciência de que sou uma exceção. Nem todas as parlamentares trans conseguem o apoio que consegui, pela visibilidade que meus casos tiveram. 

Em 2021, segundo a Transgender Europe (TGEU), o Brasil concentrou 41% de todos os casos de assassinatos de pessoas trans e LGBTQIA+ no mundo em nível global. Os assassinatos de pessoas trans e travestis aumentaram durante a pandemia, segundo a Antra. Você propôs a primeira CPI a investigar especificamente violências contra pessoas trans e travestis em São Paulo. Na presidência da CPI, qual o balanço que você faz dos trabalhos até agora?  

Costumo dizer que a nossa CPI, a nível municipal, serve para abrir caminho, cortar o mato muito fechado que encobre os casos de violência na cidade e no país. Porque esses dados ainda são muito subnotificados, não são qualificados enquanto casos de transfobia pelo poder público, são agrupados com outras violência LGBTfobicas. Então além de lidar com casos que repercutem e furam as bolhas da mídia, estamos conseguindo mapear os gargalos da subnotificação, estabelecer parcerias importantíssimas com a Polícia Civil e o Ministério Público de São Paulo para dar vazão aos casos cotidianos que aparecem para a gente nas mais diversas áreas: violências nos serviços públicos de educação, saúde, transporte, assistência social, violências físicas e verbais, violência policial, institucional, falta de continuidade nos tratamentos hormonoterapeuticos, que prejudicam nossa saúde. Temos um canal direto de denúncia com a sociedade, o [email protected].

O que é preciso fazer para garantir segurança para pessoas trans e travestis? 

Acho que uma boa base para o combate à violência e a garantia de segurança é a efetivação do acesso aos direitos básicos. Uma vez que a sociedade nos veja como cidadãs e cidadãos de Direitos, que frequentemos escolas, hospitais, moradias, mercados, equipamentos culturais, enfim, que vivenciemos a cidade e a sociedade sem estarmos compulsoriamente marginalizadas às esquinas de prostituição e a dormir nas calçadas, essa naturalização da nossa presença já terá um efeito muito positivo. É pelo básico que estamos lutando.

Você acha que a CPI e as denúncias que ela está fazendo podem ser o grande legado do seu mandato?

Com certeza esse será um dos legados do nosso mandato. Desvendar os gargalos da violência, da sua subnotificação e a criação de políticas públicas que visem combatê-la e evitá-la. 

Mas não só. Tenho orgulho em dizer que nosso mandato, apesar de todos os boicotes e tentativas de intimidação, já vem deixando marcas profundas na cidade. Com a CPI, com a nossa atuação como presidenta da Comissão de Direitos Humanos, com a implementação do Fundo Municipal de Combate à fome, projeto de minha autoria aprovado por consenso na Câmara e sancionado pela prefeitura no aniversário da cidade, as conquistas orçamentárias visando a ampliação do atendimento de saúde para a população negra, a longa, diversa e interseccional produção legislativa do nosso mandato… Em 2022 teremos grandes batalhas e construções. 

Uma delas será tornar Lei o Projeto Transcidadania, que existe desde a gestão Haddad, mas que é um decreto que pode ser revogado a qualquer momento. Queremos que essa política deixe de ser uma política de governo e seja uma política de estado, para que não possa ser revogada, desestruturada, sabotada. Além de torná-lo lei, queremos ampliá-lo. Estamos construindo com a Câmara e a Prefeitura esse processo. 

A polarização política se aprofundou desde a eleição de Bolsonaro. Também houve um retrocesso na criação de políticas públicas LGBTQIA+, que vinham avançando. A violência e hostilidade na política são respostas a esses avanços? Em ano de eleições e de disputa presidencial, a tendência é um acirramento desses enfrentamentos enquanto mulheres, negros, LGBTQIA+, trans e travestis desafiam espaços de poder ou estamos caminhando para a construção de um cenário menos polarizado no Brasil? 

Ah, não tem como construir um cenário menos polarizado sem que os debates sejam feitos, de uma vez por todas. Então creio que as eleições de 2022 devam cumprir com um papel de popularizar a aprofundar ainda mais esses debates e bandeiras com o conjunto da população, para que nos próximos anos a gente só pavimente o caminho aberto para a expansão de políticas públicas e direitos para mulheres, negras e negros, LGBTQIA+. Mas para a sociedade em geral também, a eleição de 2022 precisa ser a eleição que vamos falar de inverter a política econômica, tributária, para que as massas trabalhadoras, pobres, a base da pirâmide, levando em conta toda sua pluralidade e diversidade – mas também o que temos em comum, somos explorados – tenha vez e voz na refundação que queremos para o país em 2023.

Você sempre denuncia que pessoas trans e travestis são comumente estigmatizadas, associadas à prostituição e retratadas apenas como vítimas de violência. E fala também da importância de referências positivas. Sendo a primeira vereadora trans da maior cidade da América do Sul, você se vê como um exemplo, sobretudo de resistência?

Sim, nos faltam referenciais positivos, mas creio que estamos num processo de subverter essa condição que já não pode ser parado ou revertido. Somos muitas que estamos chegando, não sozinhas, em espaços de liderança. Na cultura, na política, na moda, na gastronomia, na educação, na saúde. E não só no Brasil. No Chile, com Emília Schneider, com a efetivação de políticas para trans na Argentina, Sarah McBride, senadora nos EUA, Michelle Suárez, no Uruguai, enfim, estão pipocando referências mundo afora!

Erika Hilton é a primeira mulher travesti eleita como vereadora em São Paulo (Rafael Canoba)

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