A notável conquista da vacina anticovid nacional

Uma jornada revolucionária levou a Fiocruz à produção das primeiras doses da vacina anti-covid integralmente produzida no Brasil. Ótimo augúrio para o desenvolvimento científico, técnico e industrial brasileiro

por Flávio Dieguez, em Outra Saúde

Em princípio, existe a expectativa de a Fundação Oswaldo Cruz começar hoje mesmo a entrega ao ministério da Saúde dos primeiros lotes para serem distribuídos para a aplicação na população brasileira, consolidando uma conquista histórica da capacidade científica, técnica e industrial brasileira. E que foi levada a termo em tempo recorde, considerando que o acordo que permitiu a absorção da tecnologia da Oxford foi acertado ainda em meados de 2020.  

A vacina está essencialmente pronta. Nasceu em meio às aflições geradas pela disseminação da covid, quando o país ainda estava imerso em dúvidas sobre se encontraria vacinas para contê-la. As doses protetoras estavam sendo fortemente direcionadas para os países industrializados, privilegiados pelas grandes farmacêuticas internacionais que controlam o oligopólio de produção de vacinas e fármacos em geral. Mas já nos primeiros meses de 2021, lançava-se o edital para a construção do Complexo Industrial de Biotecnologia em Saúde (CIBS). 

Quando estiver pronto, o complexo industrial da Fiocruz deverá ter capacidade para produzir cerca de 120 milhões de frascos da vacina brasileira ao ano, dando autonomia à Saúde nacional nesse campo. Esse volume pode ser maior, inclusive, e para se ter ideia, representa quase um terço de todas as doses aplicadas no Brasil para deter e controlar o auge da covid, no ano passado. Algo que o Brasil fez de maneira exemplar, diga-se. Uma parcela das novas vacinas de tecnologia nacional, possivelmente, começará, a partir de agora, a substituir a produção brasileira do imunizante da Oxford/AstraZeneca – ainda feita com ingredientes importados pela Fiocruz. 

O início dessa produção, anunciado em março de 2021 pelo Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos, levou a entregas semanais em larga escala da vacina contra covid-19 ao Programa Nacional de Imunização (PNI). No final de setembro a Fiocruz comemorou outro marco na sua atuação contra a pandemia: as mais de 100 milhões de vacinas entregues ao PNI em apenas oito meses. 

O acordo assinado em 2020 estabeleceu uma garantia formal de que, ao final do processo, haveria transferência total de tecnologia para a produção do imunizante em terras verde-amarelas – “eliminando os riscos de dependência nacional”, enfatizou a Fundação. A assinatura apenas confirmou o repasse do conhecimento que já vinha sendo feito, de fato, a fim de agilizar a produção do ingrediente farmacêutico ativo, dito IFA, nas instalações de Bio-Manguinhos – no Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos. O penúltimo passo dessa jornada ocorreu há cerca de três semanas, dia 14/1, com a transferência do primeiro lote de IFA produzido no Brasil para as instalações de formulação do produto. 

O IFA estava essencialmente pronto, faltando ser envasado e embalado, entre outras finalizações, como já ocorria – e ocorre – com as vacinas produzidas com IFA importado. Já se produzia, no início de janeiro deste ano, cerca de 20 milhões de doses, e a fabricação estava sendo escalonada para ganhar capacidade nos próximos meses, conforme afirmação à imprensa do diretor da Bio-Manguinhos, Maurício Zuma. A presidente da Fiocruz Nísia Trindade confirmou à imprensa que parte da produção poderá, inclusive, ser exportada, como acontece com outros imunizantes já produzidos pela Fiocruz. 

É uma maneira de enfatizar o caráter extraordinário das iniciativas em curso no campo da Saúde no Brasil. No artigo a seguir, Outra Saúde procura dar uma medida das realizações que marcaram essa trajetória, do contexto promissor em que ocorreram e dos desenvolvimentos futuros que propiciam, na medida em que as conquistas avançam. 

Nísia deu uma ideia desse movimento fazendo uma retrospectiva da orientação que a Fiocruz adotou em seu VIII congresso interno, como a de ser uma Instituição pública estratégica de Estado para a Saúde. As ações atuais, nessa visão, perpetuam o legado de Oswaldo Cruz, que já imaginava uma instituição que aliasse ciência, fabricação de produtos biológicos e projetos nacionais. 

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É possível contar a história das conquistas da Fiocruz para a produção da primeira vacina anticovid inteiramente brasileira começando em uma das mais jovens instituições de ensino superior brasileiras, a Universidade Federal do ABC, fundada em 2005. Foi onde fez a graduação em medicina o futuro infectologista Pedro Folegatti, depois celebrizado com um epíteto afetuoso: “o dedo brasileiro por trás da vacina de Oxford”. 

Após a especialização no Instituto Emílio Ribas, Pedro fez o mestrado em Londres, também foi à Uganda e à Tanzânia estudar doenças infecciosas tropicais, e em 2016 passou a estudar vacinas contra o vírus da influenza no Instituto Jenner, na Universidade Oxford. Logo no início da pandemia, participou das pesquisas da vacina contra a covid-19, conduzindo os testes do novo imunizante. 

Nesse papel, ajudou a criar um elo com o Brasil, onde parte dos testes foram feitos, com cinco mil participantes, quando a equipe do Instituto Jenner começou a buscar parceiros internacionais. Pesou nessa aproximação o fato de Pedro ser brasileiro, como ele contou, assim como as colaborações entre os cientistas dos dois países e a infraestrutura de pesquisa existente no Brasil. Essa infraestrutura, disse o pesquisador, permitiria fazer no Brasil os ensaios clínicos em larga escala necessários. 

Ressalta nessa história o conhecimento de qualidade que o Brasil sempre teve no ramo, em particular no campo das doenças infecciosas e das doenças tropicais, no qual a Fiocruz tem tido grande destaque. Em junho de 2020, teve início a parceria com Oxford e com a biofarmacêutica AstraZeneca para a compra de lotes de vacina, de um lado, e de outro, para a transferência da tecnologia desenvolvida pela Universidade de Oxford. 

A transferência ocorreria antes mesmo do término dos ensaios clínicos, como parte do movimento global de vacinação. Conforme explicou a Fiocruz, a produção da vacina adquirida representou a participação do governo brasileiro na colaboração internacional para controlar a covid, já em ampla expansão global, à época. A Fundação contribuiria com sua experiência em saúde pública, sua infraestrutura consolidada e capacidade para produzir e introduzir rapidamente novas vacinas no Sistema Único de Saúde (SUS).

O papel da Fundação é resultado direto desse acúmulo e de todo o investimento que se fez na Fiocruz nos últimos anos, “especialmente na atualização de seu parque tecnológico”, destacou sua presidente Nísia Trindade. Paralelamente avançavam os testes da vacina da Oxford em diversos países, inclusive no Brasil, que ainda tinha apenas 2 mil participantes recrutados, mas estava em vias de ampliar o total para 5.000 participantes. Os resultados preliminares poderiam sair já em outubro ou novembro de 2020, esperava-se então.

Esse período coincidiu, fortuitamente, com a comemoração dos 120 anos da Fiocruz, quando Nísia traçou um perfil histórico bastante oportuno e informativo por conectar as atuais expectativas da instituição com a obra de “Oswaldo Cruz, Carlos Chagas e tantos outros cientistas”, ressaltou ela. Brasileiros que no início do século 20 enfrentaram as epidemias da época. “Nossa instituição é um patrimônio do país porque revela o valor da ciência dedicada a resolver as grandes questões da vida dos brasileiros”. 

E não se trata da Saúde no sentido estrito que usualmente se emprega. No Brasil, é necessário ir além, ter em conta o desafio da desigualdade social: desemprego elevado, informalidade crônica do trabalho, moradia e saneamento precários, entre muitas outras mazelas. Nísia foi, em suas declarações, bastante incisiva sobre isso: “O momento requer solidariedade, participação ativa da sociedade e forte presença do Estado. Salvar vidas, fortalecer o SUS […] são os desafios que se impõem à instituição e à sociedade brasileira’’.

A presidente assinalou que o enfrentamento da emergência reforça o compromisso da Fiocruz com as orientações máximas de seu VIII Congresso Interno. Entre elas, ser uma Instituição Pública Estratégica de Estado para a Saúde, voltada para o fortalecimento do sistema de vigilância nacional, e que põe sua capacidade de desenvolvimento tecnológico e inovação para a sustentabilidade e a efetividade do SUS, no enfrentamento dos desafios do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (Ceis). 

Cabe enfatizar o alcance desses objetivos. No caso do Complexo, muitos pesquisadores, autoridades e pensadores da saúde pública veem no seu desenvolvimento uma peça crucial para alavancar o próprio desenvolvimento brasileiro, nos próximos anos. É o caso de Carlos Gadelha, líder do grupo de pesquisa Desenvolvimento e Saúde da Fiocruz, que recentemente publicou um estudo importante no qual afirma que “saúde, gasto social, ciência e tecnologia são os novos motores no século XXI”. 

Seguindo as linhas traçadas por Nísia, acima, ele diz que o programa de pesquisa do CEIS “tem a Fiocruz como grande modelo e inspiração”. Além da atenção com o desenvolvimento, a Fiocruz, notou Nísia, atua baseada nos conceitos de diplomacia da saúde e ciência e tecnologia em saúde no contexto da saúde global, uma importante tendência contemporânea. Ela ilustrou essa atuação citando realizações da Fundação no enfrentamento ao novo coronavírus, entre as quais o Centro Hospitalar para a Pandemia Covid-19, integrado ao Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas. 

Teria, segundo informou a Fiocruz, então, 195 leitos hospitalares: 120 de unidade de UTI e 75 de semi-intensivo. O ensaio clínico mundial Solidariedade, da Organização Mundial da Saúde, é outra ação notável, sobre o qual há grande expectativa em termos de uma nova Saúde global. Coordenado pela Fiocruz no Brasil, o estudo pode reduzir em 80% o tempo de decisão sobre tratamentos, mobilizando 18 hospitais de 12 estados. Um exemplo de criatividade, nessa lista, é o desenvolvimento de uma vacina contra o coronavírus com base em uma técnica elaborada na Fiocruz Minas que utiliza o vírus da influenza. 

Inúmeras outras ações avançaram nesse período, como as análises integradas do Observatório Covid-19 sobre cenários epidemiológicos e impactos sociais da pandemia. A criação da Rede CoVida que produz sínteses de evidências científicas, e o Monitora Covid-19, que dá um quadro atualizado nacional da situação da doença. Esse conjunto de iniciativas denota um compromisso com o aproveitamento dos conhecimentos para a formulação de políticas públicas de saúde.

E assim foi no passado com o Instituto Soroterápico Federal, criado em 1900, depois batizado Instituto Oswaldo Cruz, em 1908. Inicialmente uma reação à ameaça da peste bubônica, uma emergência sanitária, seu escopo se ampliou ganhando uma agenda de pesquisa. Como diretor do Instituto e diretor-geral de saúde pública, Nísia lembra que Oswaldo Cruz instituiu uma agenda que induziu a produção de conhecimento em áreas diversas, como a microbiologia e a medicina tropical. 

A vida nacional também foi marcada, naquele período, pelas grandes expedições científicas, salienta Nísia, que nas primeiras décadas do século 20 representaram uma contrapartida das obras de infraestrutura, ferrovias e grandes projetos especiais para a Amazônia e o Nordeste. Com uma base institucional, o país combinou pesquisa de laboratório, trabalho clínico e trabalho de campo, vendo-se então um protagonismo que marcou a história brasileira e continua a inspirar o seu futuro. Nísia resumiu bem em uma frase essa caminhada histórica.  

“O papel da instituição nessas expedições foi fundamental para consolidar a medicina tropical como disciplina científica”, lembrou. ”Mas também para fortalecer o seu protagonismo nos debates referentes à saúde pública, como no movimento sanitarista dos anos 1920, que buscava a implementação de políticas federais de saúde, como a criação de um ministério da Saúde, e na formulação de projetos nacionais de desenvolvimento”. Finalizou, dizendo: “Essa é a matriz que nos orgulha, inspira e desafia a aprimorar a instituição”.

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