O mecanismo agride pretos, prende pretos, mata pretos, ou quase pretos
Na Folha
Existe uma Constituição não escrita da brutalidade brasileira. A compilação de praxes sociais e institucionais está traçada em livros de sociologia, história e literatura, mas não ecoa nos códigos jurídicos.
Não está traduzida na linguagem das leis, linguagem mais livre para fugir da vida real e emitir comandos. Mas permanece em vigência disfarçada e normalizada nesse lusco-fusco da cordialidade brasileira.
Qualquer programa para desenvolvimento humano do país precisa sacar essas normas das entrelinhas, psicografá-las e ter estratégia para revogá-las.
Bolsonaro contribuiu à consciência da incivilização brasileira ao dar corpo, voz e legitimidade eleitoral a essa Constituição das ruas e morros, florestas e garimpos. Nunca houve melhor encarnação do “Brasil feião, sem maquiagem” (Mano Brown).
Esse esforço de síntese sociológica no dialeto normativo tem algum valor didático. O capítulo constitucional não escrito da polícia, pouco reconhecido e mais sentido na pele de alguns que de outros, poderia se ler assim:
Artigo 1º Todos são iguais perante a lei, exceto pretos etc.
Artigo 2º A violência preventiva é imperativo de segurança pública e privada.
Artigo 3º Preto se presume suspeito até prova robusta em contrário.
Artigo 4º Preto deve ser abordado com força e contundência. Polícia deve cobrar nota fiscal do tênis, do relógio, do celular e da bicicleta. Se estiver de carro novo, pode prender para averiguação. Policial não precisa justificar nem formalizar seus atos.
Artigo 5º Em operações policiais, quem leva tiro se presume bandido. Parágrafo único. Se policial ou cidadão branco de bem ficar incomodado diante de corpo preto e matar sob leve emoção, homicídio será culposo. Se matar sob violenta emoção, legítima defesa.
Artigo 6º Palavra de preto e marcas de tortura em corpo de preto não têm valor em inquérito ou decisão judicial. Palavra de policial se presume verdadeira e tem fé pública.
Artigo 7º Ignoram-se disposições da Constituição de 1988 em contrário.
Essa é a Constituição que polícia aplica, promotor defende e juiz confirma. A violência é policial. A cumplicidade é judicial e ministerial. A indiferença é social. Os dividendos se distribuem entre políticos do pânico e circo.
Levantamentos já quantificaram os delitos dessa instituição de uso da força que navega à margem do estado de direito. O dispositivo de irresponsabilização da polícia que mais mata e mais morre no mundo, e o apagamento da cadeia de comando que faz o policial lá embaixo matar, é obra magistocrática. Procure saber como o TJSP, palácio da magistocracia bandeirante, lidou com o massacre do Carandiru nesses últimos 30 anos.
Pelo menos quatro temas merecem a maior urgência. Primeiro, a abordagem policial de cidadãos. Relatório “Elemento Suspeito” (Cesec) constatou que pessoas negras correspondem a 63% das abordadas, e que 20% passaram por isso mais de dez vezes (os “superabordados” ou “freios de camburão”).
Pesquisa da FGV e Cebrap revela tendência judicial de chancelar abordagens ilegais e de invasões domiciliares sem mandado. Alegações de “legítima defesa”, “fundada suspeita” e “estrito cumprimento do dever legal” são senhas aceitas por seu valor de face.
Segundo, a condução judicial das audiências de custódia, que buscam neutralizar prisões ilegais, controlar tortura e garantir ampla defesa, desidratam seu potencial de desencarceramento.
Na melhor das hipóteses, a liberdade provisória concedida vem acompanhada de condicionamentos que restringem a liberdade sem razão jurídica específica (“medidas cautelares” como o recolhimento noturno ou a proibição de circular numa área).
Relatório “O Fim da Liberdade” (IDDD, 2019), percebeu que menos de 1% das concessões de liberdade provisória não trazem uma medida restritiva a reboque.
Terceiro, o reconhecimento fotográfico pela vítima e a palavra policial como única prova que embasa acusação (a partir da presunção ilegal da veracidade da palavra policial) também agravam a injustiça e o viés discriminatório do sistema de justiça. Relatório da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, que analisa prisões ilegais de 2012 a 2020, indica que 81% foram de pessoas negras.
Quarto, operações policiais em favelas precisaram do STF, semanas atrás, para reafirmar a necessidade de protocolos e algum meio de controle e accountability. Ninguém sabe se a autoridade do STF vencerá o policial que delínque. Em operação no Jacarezinho, polícia matou 28, muitos baleados pelas costas, a curta distância e com excesso de tiros. Maioria negros.
Não chame de “lei e ordem” uma política que viola a lei e multiplica a desordem. Libera arbitrariedade sem prestação de contas. Entrega medo e morte, populismo e liberticídio. Só não entrega segurança.
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“Parem de nos matar”: Manifestação denunciou aumento da violência policial em favelas do Rio de Janeiro. Foto: Clívia Mesquita