Especialistas avaliam que a legislação protegeu muitos trabalhadores da cultura, porém, sem regulamentação nacional, sofreu distorções locais que causaram morosidade, burocracias e exclusões. Nova edição da lei é oportunidade de corrigir problemas
Por Rodrigo Juste Duarte com colaboração de pesquisadores da rede do Observatório da Cultura do Brasil, em Outras Palavras
O setor cultural segue no Brasil uma estagnação sem precedentes, funcionando em ritmo equivalente ao de uma guerra, dependendo de fomento público. Enquanto os recursos da Lei Aldir Blanc dão alguma segurança para parte dos trabalhadores, estruturas de trabalho fecham e profissionais mudam de ocupação. Um balanço precisa ser feito, considerando que ainda não existe um plano de recuperação deste importante setor (responsável pela ocupação e renda de cerca de 6 milhões de pessoas), mas que por enquanto respira por aparelhos.
Como na peça de Samuel Beckett, Esperando Godot, os trabalhadores da cultura aguardam os recursos que não chegam, os espaços e empresas que abrem e fecham, e carreiras que se encerram.
As primeiras reportagens da série “A Crise da Cultura”, publicada no Le Monde Diplomatique Brasil, analisaram questões referentes à aplicação da lei Aldir Blanc no estado do Paraná a partir de pesquisas realizadas pelo Observatório da Cultura do Brasil, que abordaram aspectos como o número de municípios que não foram atendidos no estudo de caso, análises legais que apontam para excessiva burocracia e quebra de direitos constituídos, até denúncias de irregularidades, como premiação de funcionários públicos, conselheiros, jurados e membros de comissão com os recursos assistenciais. Após a publicação da série, a Superintendência-Geral de Cultura do Paraná tomou medidas, recuando em questões apontadas.
No entanto, ainda existe uma carência de estudos, relatórios e informações do uso dos recursos e dos resultados. Para realizar um primeiro balanço da Lei Aldir Blanc, foram convidados especialistas em políticas culturais para analisar os caminhos dos últimos dois anos de crise do setor cultural.
Além da observação dos resultados até o momento, os especialistas analisam questões que visam a melhoria nos mecanismos. Os entrevistados são:
• Cecilia Rabêlo: advogada, presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais – IBDCult, mestre em Direito Constitucional e especialista em Gestão e Políticas Culturais;
• Celio Turino: historiador, escritor e consultor de políticas públicas que contribuiu com a formulação da Lei Aldir Blanc em 2020, foi secretário da cidadania cultural no Ministério da Cultura entre 2004/10, criou o programa Cultura Viva e os Pontos de Cultura;
• Maria Alice Gouveia: pós-graduada em Educação pela USP e em Ciências Sociais pela PUC/SP e mestre em Artes Plásticas pela Unesp, trabalhou na Secretaria Municipal de Cultura e na Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo e foi diretora de Cultura de Bragança Paulista;
• Manoel J. de Souza Neto: pesquisador, produtor cultural, cientista político e conselheiro nacional de cultura entre 2005-2017, editor do Observatório da Cultura do Brasil; e
• Humberto Cunha: doutor pela UFPE e com pós-doutorado pela UNIMIB-Universidade de Milão-Bicocca em Direito, atua como professor em Direito da Universidade de Fortaleza, onde lidera o Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais, e é presidente de honra do IBDCult.
Aplicação dos recursos
Mesmo com o nobre propósito de socorrer o setor cultural impactado pela pandemia, a Lei Aldir Blanc é objeto de questionamentos enquanto solução para a crise, em vista da maneira como muitos municípios e estados aplicaram os recursos, fazendo a regulamentação da lei de acordo com decisões locais. Em boa parte dos casos, foram adotados os mecanismos que julgaram mais adequados (e que no geral repetiu o formato de inscrição em editais em moldes já existentes). Existiam hipóteses de transferência direta por meio de previdência pública (o que poderia simplificar os repasses), ou por meio de editais através das secretarias e fundações de cultura, solução proposta pela Lei Aldir Blanc. Mas qual a eficácia do modelo adotado?
O Estado, em geral, oferece assistência social ou apoio em momentos de crises, catástrofes, ou impedimentos ao trabalho, como nos casos de pescadores em períodos de sazonalidade ou moradores atingidos por enchentes. Até economias capitalistas aplicam estes mecanismos, como explica Humberto Cunha. “Por exemplo, no New Deal, o presidente Franklin Delano Roosevelt nos Estados Unidos, que é um país liberal em termos econômicos, ele também criou um campo específico para financiar as atividades artísticas e culturais”, relata.
A necessidade do auxílio era evidente, segundo apontam os especialistas. No entanto, há críticas quanto ao formato utilizado para distribuir os recursos. Maria Alice Gouveia afirma: “As pessoas ficaram em situação financeira péssima. Havia necessidade de se dar um auxílio. Agora, esse auxílio ser feito a partir de avaliação de projeto eu acho completamente absurdo, porque o projeto não é maneira de fazer chegar o dinheiro nas mãos de quem mais precisa”.
Entrevistados ouvidos por esta série questionam o mecanismo, por exigir não só um determinado conhecimento (capital simbólico), mas habilidades com questões burocráticas, como formulários, de modo que os editais com seleção de projetos se mostraram excludentes, pois nem sempre os trabalhadores da cultura que precisam ser atendidos por políticas públicas têm familiaridade com este universo. Deste modo, as verbas não chegavam a muitos trabalhadores.
Todos os especialistas convidados se declararam apoiadores da Lei Aldir Blanc. Entre os principais destaques citados estão a renda emergencial mensal e o subsídio mensal para espaços. No entanto, foi observado que a lei apresentou problemas na aplicação. “Mas é como se fosse pior sem ela”, pondera Cecilia Rabêlo. “Ela foi e é necessária, nasceu de uma vontade popular, foi para o Legislativo e culminou na lei”.
A regulamentação da Lei Aldir Blanc foi um dos principais questionamentos dos entrevistados. Em sua estrutura, a lei trouxe mecanismos que poderiam funcionar de um modo mais efetivo, o que ocorreu de forma desigual pelo país. “No final das contas, quem regulamentou foram os estados e municípios. E aí é que foi um dos grandes problemas, pois a falta de norma geral fez com que cada um fizesse de um jeito”, completa Cecilia.
O Congresso brasileiro, majoritariamente de direita e liberal, apoiou a aprovação da Lei Aldir Blanc, que tem características de uma política de esquerda, que ocupa minoria na Casa Legislativa. Fóruns e movimentos sociais apontaram que campanhas teriam sensibilizado os parlamentares para uma vitória da cultura. No entanto, Humberto Cunha cita que o grande motivo da criação da lei Aldir Blanc não foi propriamente cultural, mas econômico, pois os votos foram dados mais em preocupação com “o mercado imobiliário não sofrer a bancarrota com atrasos dos aluguéis, as companhias energéticas não deixarem de receber, do que propriamente com a cultura”, afirma. “Dói dizer isso, mas o problema foi efetivamente emergencial, tanto que não se cobrou resultados culturais propriamente ditos, e as respostas que foram dadas (…) de retorno social não foram satisfatórias, pois eram apresentações em lives pouquíssimo vistas”. (…) A sociedade não ficou mais amiga do setor cultural por causa da Lei Aldir Blanc”.
A fala do especialista revela uma oportunidade que foi perdida: de se formar uma frente ampla em prol da cultura no Parlamento. No entanto, se constatou que as redes militantes da lei Aldir Blanc fazem única conexão com parlamentares de poucos partidos e uma mesma base política. Além disso, entrevistados das primeiras reportagens desta série apontaram que a Lei Aldir Blanc foi marcada por disputas de territórios, movimentos sociais, políticos e partidários.
Esses usos políticos podem ter se reproduzido conforme a região, gerando conflitos regionais no uso dos recursos. Gestores de muitas regiões acabaram por ignorar o caráter assistencial da lei e suas novas modalidades que não existiam antes nas leis da cultura (o Inciso I, de renda emergencial; e o Inciso II, de subsídio para espaços). Quando os recursos chegaram, as secretarias acabaram fazendo editais e chamadas (o Inciso III da lei) nos mesmos moldes que já faziam antes. “Não funcionou porque a lógica era diferente, mas houve a pandemia, chega a Aldir Blanc em outro contexto, e os editais continuaram os mesmos, com as mesmas regras, as mesmas burocracias. Os incisos I e II tiveram seus problemas, mas acho que foram menos problemáticos que o Inciso III, pois tratava de um universo de coisas que as pessoas não sabiam o que fazer”, alega Cecilia Rabêlo.
Na análise Manoel J de Souza Neto, a questão pode ser dividida entre a legal, a moral e a política. “No sentido legal, a lei está correta, no sentido constitucional, ainda que vaga em alguns pontos, especialmente no Inciso III. Mas no sentido moral, numa emergência causada por uma pandemia, foi um desvio perigoso tentar articular a lei Aldir Blanc com mecanismos do Sistema Nacional de Cultura (SNC) e Fundo Nacional de Cultura (FNC) para provocar politicamente os repasses por meio das secretarias dos estados e municípios, causando burocracia. No final, se exigiram apenas planos de execução, mas ocorreram atrasos”.
Questões sociais
Pesquisadores apontaram que a Lei Aldir Blanc estava sujeita ao Orçamento de Guerra de combate à pandemia, tendo portanto função assistencial, e de proteger a integridade social dos trabalhadores. Além disso, também deveria cumprir funções relacionadas a outras leis, princípios e tratados, relacionados à Constituição, SNC, FNC, e Convenção da Diversidade Cultural da Unesco.
Celio Turino, quando secretário do Ministério da Cultura, participou da Convenção da Diversidade da UNESCO em 2005, na qual Brasil, França e Canadá foram os principais protagonistas. Ele reforça que em qualquer aplicação de recursos específicos na cultura, o Brasil é signatário. “A lei atende isso perfeitamente. Tanto que na maioria dos lugares, isso aconteceu. Vi resultados de projetos em quilombos, comunidades periféricas, indígenas e ciganos. Pode ser que algum município ou estado não quis cumprir, mas isso houve”. Mas na elaboração e aplicação de políticas públicas culturais, no caso da Lei Aldir Blanc, ele alerta que se os repasses ficassem condicionados a adesão ao Sistema Nacional de Cultura, para receber os recursos, cerca de 4 mil municípios do Brasil ficariam excluídos. “Estaria excluindo os trabalhadores e trabalhadoras”, afirma.
Do ponto de vista jurídico, o texto da lei abriu precedentes para interpretações diversas da aplicação dos recursos. Havia margem para que municípios e estados fizessem exigências excessivas para as inscrições em editais, como aconteceu no Paraná. Seria contraditório num período de pandemia este uso de uma lei emergencial para socorrer o setor, causando perda de eficácia e de velocidade de aplicação dos recursos. “Quanto ao ponto de vista jurídico formal, ela passou por todas as instâncias, como todas as leis”, afirma Celio Turino. “Ainda que na aplicação e na execução, alguns estados e alguns municípios, talvez por má interpretação, por desinteresse em aplicar o recurso adequadamente, ou incompreensão acabaram fazendo exigências além daquelas que estavam contidas na lei”. “Também porque achavam mais confortável concentrar tudo na forma de editais.”, salienta.
Lentidão no lançamento de editais, seleção e pagamentos
Qual seria a intenção dos legisladores, ao criar um recurso emergencial para a cultura se os mecanismos não permitiram repasses rápidos? No sentido institucional da Lei Aldir Blanc, pela falta de dispositivos adequados estruturantes de gestão de fundos públicos da cultura, os autores da lei optaram, ao invés de um envio direto dos recursos pela relativamente eficaz previdência brasileira, por fazer repasses aos órgãos de cultura. Isso gerou uma lentidão na chegada dos recursos para trabalhadores culturais necessitados.
Alguns dos especialistas visualizaram uma intenção dos legisladores de articular a Lei Aldir Blanc por meio do Sistema Nacional de Cultura (SNC, previsto na Constituição no artigo 216-A como ferramenta de gestão centralizada, mas que ainda não está em funcionamento) e do Fundo Nacional de Cultura para realização dos repasses por meio das secretarias de cultura estaduais e municipais. Para exemplificar, o Estado brasileiro tem em seus sistemas (como os de saúde e educação), estruturas com repasses permanentes vindos da União para estados e municípios. Se estivessem regulamentados, sistemas e fundos de cultura acelerariam a ação, segundo alguns dos especialistas. “Se romantizou no sentido da construção de um Sistema Nacional de Cultura só porque houve repasse de recursos”, observa Humberto Cunha.
Ainda para o professor, outros interesses acabaram determinando a estruturação da Lei Aldir Blanc. “Essa coisa de não perceber que efetivamente deveria tratar uma lei de emergência cultural como de emergência mesmo, mas trataram como se fosse Sistema Nacional de Cultura”. Segundo ele, para que fossem efetivadas as transferências de recursos, acabaram por criar o que ele chamou de “sistema de escalonamento”, para garantir os repasses, foi necessário criar ferramentas de controle e burocracias excessivas, e isso teria ocorrido tanto na produção das normas no âmbito dos estados e municípios, quanto no sistema de prestação de contas. “Tudo poderia ser facilitado exatamente por causa da situação emergencial”, avalia Cunha.
Cecilia Rabêlo também associa um entrave inicial da Lei Aldir Blanc com o SNC. “Em tese, o Governo Federal poderia ter repassado esses recursos para os fundos que existiam, estaduais ou municipais, por meio da lógica do Sistema Nacional de Cultura”. Segundo ela, o SNC existe, mas após 10 anos nunca foi regulamentado. “A Constituição fala que a União vai fazer uma norma geral. Essa norma não existe até hoje”, lembra. “A Lei Aldir Blanc caiu de paraquedas, porque de fato não tinha um sistema estruturado”, avalia. O SNC previa repasses fundo a fundo (como por exemplo do Fundo Nacional de Cultura para os estaduais, e dos estaduais para os municipais), mas Cecilia Rabêlo informa que isso nunca aconteceu. “A Lei Aldir Blanc apareceu nesse contexto deficitário. Cada estado e município fazia do seu jeito”. (Leia mais sobre o SNC neste link.)
Este conjunto de questionamentos revela que a Lei Aldir Blanc, ainda que necessária, gerou dúvidas se foi o melhor modelo para repasses dos recursos emergenciais da cultura. Ainda segundo Manoel J de Souza Neto, “a decisão política intentou lançar uma fagulha para fazer “pegar no tranco” o Sistema Nacional de Cultura, ainda que legalmente constituído, de fato não estava em funcionamento, e resultou em atrasos que causaram dolo para muitos cidadãos. Existem critérios na formulação de políticas públicas. Repasses diretos por assistência social seriam mais rápidos. A emergência dos repasses eram fatores fixos e não uma variável”.
A necessidade de uma norma geral para repasse de recursos
Enquanto outros setores têm planos e normas gerais para repasses de verbas federais (como a Educação, que possui a Lei de Diretrizes e Bases), o mesmo não ocorre no setor cultural. Os entrevistados levantaram a questão de que há problemas relacionados aos aspectos estruturais das políticas culturais brasileiras (SNC, PNC, FNC, e suas regulamentações), pois as estruturas existentes não estariam consolidadas.
“A Constituição diz que a União tem que fazer norma geral sobre cultura, os estados têm que fazer as normas suplementares e os municípios, as normas locais”. Afirma Cecilia Rabêlo. “Como é que eu vou fazer o repasse de um recurso do Fundo Nacional para o Fundo Estadual sem uma lei que regulamente esse repasse? (…) Toda hora [tem que] criar uma lei diferente para garantir o repasse do recurso, enquanto se houvesse uma norma geral, já poderia prever quanto seria repassado a cada ano. É como se a gente estivesse enxugando gelo”, completa.
Há outro questionamento sobre riscos de violações. A Lei Aldir Blanc não está acima de tudo, pois existem tratados internacionais e emendas constitucionais com hierarquias acima de leis e legislações. Portanto deveriam ser respeitadas. Humberto Cunha relata que essa lei só poderia excepcionar as regras constitucionais se alguma medida excepcional tivesse sido adotada, como estado de sítio ou estado de defesa, por exemplo. “Atividades violadoras de valores constitucionais não poderiam ser financiadas”, comenta.
Na mesma linha, Manoel J. de Souza Neto reforça sobre os aspectos de direitos constitucionais envolvidos: “A Lei Aldir Blanc está sujeita ao conjunto do Artigo 216-A CF-1988, bem como a Convenção da Diversidade Cultural da Unesco e outras, de caráter expansivo do espectro de atendidos nos direitos culturais envolvidos, devido à origem no Orçamento de Guerra da Covid-19, e submetida aos direitos sociais, visando a proteger a integridade, a saúde e a dignidade humana destes trabalhadores, e portanto uma lei assistencial. Editais de seleção de mérito seriam uma violação dos direitos. E produções realizadas durante uma pandemia, violações do trabalho digno e da preservação da vida.”
Casos contraditórios e equívocos
A série de reportagens “A Crise da Cultura”, publicada no Le Monde Diplomatique Brasil, revelou denúncias sobre funcionários públicos, conselheiros de cultura, membros de júri e de comissão de elaboração de editais da Lei Aldir Blanc que foram premiados com verbas da própria lei, conforme processos e protocolos citados em reportagem anterior. As denúncias resultaram na abertura de processos administrativos pela Superintendência-Geral da Cultura do Paraná. Questionamento ainda sem esclarecimentos das autoridades e nem respostas satisfatórias dos pedidos de Lei de Acesso à Informação. Os especialistas foram categóricos em confirmar que não teria sido lícito ou moral diante da lei das licitações (8.666/93) que pessoas dentro destas condições fossem premiadas com recursos assistenciais.
Questionado se havia legalidade quanto aos prêmios dados nestes casos contraditórios, Celio Turino afirmou: “Claro que não! Inclusive a lei nem dá abertura para que isso ocorra. Onde ocorreu isso, fere não a Lei nº 8666 de licitações, fere os próprios princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade. Não é possível que alguém que esteve em uma comissão julgadora seja selecionado. Ou um servidor público, inclusive porque a lei era de emergência cultural, para aquelas pessoas ou grupos culturais que deixaram de ter acesso a qualquer forma de recurso, ter uma bilheteria, apresentar um espetáculo, pois dependiam de uma aglomeração de pessoas”. Ele complementa: “a lei não permitiu isso, nem a Constituição brasileira permite isso. Eu penso que onde veio a ocorrer esse tipo de desvio, é necessário que os agentes culturais na cidade ou no estado acionem os meios legais, o próprio MP, defensoria pública”.
Casos como os revelados pela reportagem são considerados graves, ainda mais por se tratarem de recursos emergenciais. “Isso não seria moral nem com a lei normal de avaliação de projetos, muito mais imoral na Lei Aldir Blanc, num momento de extrema urgência. É uma imoralidade total e completa. São pessoas que não têm a menor noção”, desabafa Maria Alice Gouveia. “Como também são pessoas que estão acostumadas com a situação brasileira, em que a impunidade é uma regra.”
O Estado brasileiro deveria ter regulamentado as vedações. “Eu entendo que essa é uma lei de emergência cultural para a qual deveriam socorrer as pessoas físicas ou jurídicas em efetiva situação de carência e de necessidade para sobreviver”, relata Humberto Cunha. “Nem tudo que é legal é legítimo. No caso de pessoas que não foram efetivamente afetadas pelo impacto da pandemia, acho incorreto que essas pessoas tenham tido acesso a esses recursos”.
Questionamentos sobre os usos contraditórios de recursos públicos são recorrentes em todos os campos sociais, um problema popularmente conhecido por “jeitinho brasileiro”. Os especialistas manifestaram preocupação com os usos indevidos dos recursos assistenciais. Existem princípios que regem a administração pública, que são os da “legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”, que determinam que tanto os agentes quanto a administração públicas devem agir conforme os preceitos éticos. “Por causa desse princípio, a gente não pode ter uma pessoa que participa da decisão ser beneficiada pela decisão. É uma coisa básica”, afirma Cecilia Rabêlo.
Quanto às irregularidades ocorridas no Paraná, Cecilia Rabêlo traçou um paralelo com o que observou em sua região, apontando diferenças. “Eu achei um escândalo o tanto de recursos que não foram utilizados, além de todas as denúncias de irregularidades. Pelo fato de tanto dinheiro não ter sido executado por um estado tão rico. Eu sou do Ceará, um estado mais pobre, e que conseguiu executar muito mais os recursos da Lei Aldir Blanc. Mas eu sei que se aqui a gente descer para os municípios, vários não executaram”, relata.
Os casos de irregularidades abordados aparecem nítidos para alguns especialistas, porém se faz necessário realizar apurações e estudos de abrangência nacional. Consultada, a deputada federal e relatora da lei Jandira Feghali (PCdoB-RJ) afirmou que que não chegou ao seu conhecimento denúncias de casos de irregularidades de corrupção na aplicação da Lei Aldir Blanc. “Ouvimos relatos do tipo ‘o edital serviu aos mesmos, serviu aos grandes, não aos pequenos’. A lei nacional não pode entrar nesse tipo de detalhamento. A lei é a lei. A aplicação é que depende de cada gestão”, afirma a deputada.
Por ter sido sujeita a regulamentações locais, de acordo com os estados e municípios que recebiam os recursos, a Lei Aldir Blanc passou por interpretações e incompreensões das mais variadas pelas gestões locais. Em situações de interpretações que geraram usos indevidos, cabe denúncia aos órgãos competentes. “[Em casos de] Irregularidades você tem que entrar com Tribunal de Contas, com fiscalização, denúncia, aí é fiscalização do poder local, da Câmara de Vereadores, da Assembleia Legislativa, do Tribunal de Contas. Irregularidade de corrupção não chegou a nós”.
[Nota: Na série de reportagens “A Crise da Cultura” há informações sobre irregularidades localizadas].
Considerações finais
Apesar da expressiva quantidade de material já gerado entre relatórios, estudos, depoimentos e análises de especialistas sobre o caso da Lei Aldir Blanc, somando 10 reportagens na série especial citada, o entendimento dos saldos positivos e negativos sobre a aplicação destas políticas ainda não pode ser considerado como compreendido, e muito menos como caso encerrado. Pelo contrário, só vai começar a ser estudado em sua totalidade quando todas as informações estiverem liberadas, e estejam realizados estudos de casos, bem como a produção de dados e indicadores.
Casos relatados na série são emblemáticos. Foram localizados mais de 40 protocolos no Paraná com pedidos de acesso à informação, sendo que em sua ampla maioria não foram respondidos após mais de um ano, e os poucos respondidos não o foram a contento.
Na segunda etapa da aplicação da Lei Aldir Blanc, quando houve distribuição de saldos remanescentes, foram observadas melhorias de alguns dos mecanismos adotados e editais em determinados estados, a fim de corrigir erros da primeira etapa. A fiscalização, cobranças, ofícios e reportagens têm sido relevantes como ferramentas de controle social, apoiando melhorias para as políticas públicas, e portanto para a cidadania.
A Lei Aldir Blanc está em sua fase final de execução de gastos. Alguns editais ainda estão abertos, e em seguida entrará na fase de prestação de contas, mas a pandemia não acabou, enquanto do outro lado, o setor da cultura e entretenimento segue devastado. Neste contexto surge a Lei Aldir Blanc 2 e a Lei Paulo Gustavo, abordadas neste artigo. A mensagem que fica deste debate entre especialistas é de que são necessários os recursos, mas que os mecanismos podem melhorar.
[Nota: esta reportagem é antecedida pela matéria introdutória “Lei Aldir Blanc: um balanço socioeconômico”, publicada no Le Monde Diplomatique Brasil, e que pode ser lida neste link para melhor contextualização sobre o tema tratado a seguir.]
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Foto: Kaio Fragoso