Especular com a terra e explorar trabalho alheio? Por Gilvander Moreira*

O ser humano tem vocação para se emancipar, no sentido de se transformar sempre para melhor, ou seja, libertar-se de todas as amarras que reduzem seu infinito potencial de envolvimento humano sempre na perspectiva da construção de uma sociedade justa economicamente, socialmente igualitária, politicamente democrática, ecologicamente sustentável, culturalmente plural e religiosamente (macro)ecumênica. Mas o sonho comum de transformação da sociedade tem sido obstacularizado por muitas questões. Partimos do pressuposto de que a luta pela terra e pela moradia, em defesa do território, é fator preponderante no processo de educação popular em lutas emancipatórias dos Movimentos Sociais Populares. A prática social dos Movimentos Sociais Populares que lutam pela terra e pela moradia se põe, portanto, como o ponto de partida e o ponto de chegada de uma prática pedagógica. Não é crítica uma pedagogia idealista, fora da histórica e sem ser dialética. Quem advoga a educação como detentora de um poder de transformação social por si só está sendo idealista, ‘bate em ferro frio’ e desconsidera a análise que se faz da realidade pelo método do materialismo histórico-dialético.

Enquanto saber que se tornou (e se torna) cada vez mais necessário: social, política e culturalmente, na segunda década do século XXI, a pedagogia é atualmente um universo em fermentação e ebulição. Franco Cambi já apontava isso, em 1999, ao afirmar: “A pedagogia é um saber em transformação, em crise e em crescimento, atravessado por várias tensões, por desafios novos e novas tarefas, por instâncias de radicalização, de autocrítica, de desmascaramento de algumas – ou de muitas – de suas “engrenagens” ou estruturas” (CAMBI, 1999, p. 641). Nesse contexto de transformação pedagógica afirmamos a luta pela terra e pela moradia, protagonizada pelos sujeitos Sem Terra e Sem Teto, como pedagogia de emancipação humana, isto é, como caminho e jeito de caminhar para a superação do capitalismo e construção de novas relações sociais para além da opressão do capital.

Dependendo da forma como for travada, toda luta pela terra e pela moradia, mesmo que de imediato não obtenha conquistas econômicas, pode se tornar de alguma forma pedagogia de emancipação humana, porque desperta o pensar e o agir autênticos, críticos e criativos e desperta experiência que marca indelevelmente a vida das/os camponesas/es e dos sem-teto que se engajam na luta pela terra e pela moradia. Bem diferente das pedagogias alienadoras da escola tradicional, onde há “lições que falam de Evas e de uvas a homens que às vezes conhecem poucas Evas e nunca comeram uvas. “Eva viu a uva”. Pensamos – diz Paulo Freire – numa alfabetização que fosse em si um ato de criação, capaz de desencadear outros atos criadores” (FREIRE, 2002, p. 112). Na luta pela terra e pela moradia se criam e se constroem realidades emancipatórias, tais como: arte e cultura popular, e se cria, acima de tudo, pessoas novas comprometidas com a luta em prol da superação das injustiças sociais, econômicas, políticas, ecológicas, etc, injustiças criadas pelo “modo de reprodução sociometabólica do capital que em suas contradições antagônicas insuperáveis é incapaz de atacar essas injustiças” (MÉSZÁROS, 2007, p. 76). A luta pela terra e pela moradia é luta anticapitalista, “é uma luta contra a conversão da terra de trabalho, terra utilizada para trabalhar e produzir, em terra de exploração, terra para especular e explorar o trabalho alheio” (MARTINS, 1983, p. 145). Especular com a terra e explorar trabalho alheio são ações que interessam ao sistema do capital, que sempre ‘desemancipa’ o ser humano. Para se superar a expropriação da terra dos camponeses e a superexploração da classe trabalhadora Mészáros aponta uma única solução. Diz ele: “Só pode haver um único tipo de solução: a eliminação do antagonismo social de nossa reprodução sociometabólica. E só é possível concebê-la, em seus termos próprios, se a transformação abarcar tudo, desde as menores células constitutivas de nossa sociedade às maiores corporações monopolistas transnacionais que continuam a dominar nossa vida” (MÉSZÁROS, 2007, p. 77).

Para se compreender a luta pela terra e pela moradia como pedagogia de emancipação humana, urge considerar que “há múltiplas formas de educação, entre as quais se situa a escolar. Segundo essa tendência, a escola não é a única e nem mesmo a principal forma de educar; há, até mesmo, aqueles que consideram a escola negativa, do ponto de vista educacional, o que foi formulado explicitamente pela proposta de desescolarização, cujo principal mentor foi Ivan Illich” (SAVIANI, 2013, p. 83).

A luta pela terra e pela moradia não nega a importância da educação escolar, tanto é que o campesinato luta aguerridamente pelo fortalecimento da educação do campo, mas não hipertrofia a escola como se só ela tivesse um poder preponderante capaz de transformar socialmente a realidade rumo à superação do capitalismo. Uma pedagogia de emancipação humana da luta pela terra e pela moradia desmascara a mistificação da noção de propriedade privada capitalista da terra que ancora os discursos que legitimam o latifúndio como algo natural e excluem a pertinência da socialização da terra. Ainda nas primeiras décadas do século XIX, a noção de propriedade privada capitalista tornou uma ideologia tão forte que em 1835, o governo da França aprovou as Leis de setembro que, entre outras determinações, previam penas de prisão e altas multas para publicações que se manifestassem contra a propriedade privada capitalista e a ordem estatal vigente[2]. Ainda perdura “a ideologia da propriedade privada, individualista e absoluta, mesmo contra o texto da Constituição de 1988 ainda impera no seio do Estado, ou no seio da elite dominante que dita a interpretação que lhe favorece” (MARÉS, 2003, p. 13).Até quando no Brasil se especulará com a terra e explorará trabalho alheio? Até que aconteça a rebelião massiva dos 99% que são superexplorados pela elite escravocrata. Todos os injustiçados/as precisam participar das lutas coletivas por direitos, o que nos levará à libertação. Para isso é preciso priorizar o comunitário e participar da Grande Marcha da Liberdade. “Se isso significa deixar o trabalho e a escola: estejam lá. Ou ascendemos juntos ou caímos juntos”, bradava Martin Luther King, antes de ser martirizado na luta pela superação do racismo e do capitalismo.

Referências.

CAMBI, Franco. História da pedagogia. Tradução de Álvaro Lorencini. São Paulo: Fundação Editora da UNESP (FEU), 1999.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

MARTINS, José de Souza. Os Camponeses e a Política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no processo político. 2ª edição. Petrópolis: Vozes, 1983.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã: crítica da mais recente Filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.

MÉSZÁROS, István. O desafio e o fardo do tempo histórico: o socialismo do século XXI. São Paulo: Boitempo, 2007.

SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. 11ª edição revista. Campinas, SP: Autores Associados, 2013.

05/4/2022.

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – “Nossa Mãe, nós e nossos filhos e netos viverão aqui no nosso Quilombo Araújo, Betim, MG”. Vídeo 4

2 – Basta de sexta-feira da Paixão em Betim, MG! Construamos Domingos de Ressurreição. Araújo! Vídeo 3

3 – Ato Público e Culto na Comunidade Tradicional Quilombola Família Araújo, de Betim/MG. Início/Vídeo 1

4 – Culto de Resistência n Comunidade Tradicional Quilombola Família Araújo, de Betim/MG. Luta! Vídeo 2

5 – “Se Medioli não respeita pobres e derruba suas casas, não pode mais ser prefeito de Betim/MG”: Zélia

6 – “Em Betim/MG, prefeito Medioli faz guerra contra os pobres e destrói casas” (Adv. Dr. Ailton Matias)

7 – Na ALMG: “Da nossa Comunidade Tradicional Quilombola Família Araújo, de Betim/MG, só saímos mortos”

8 – Frei Gilvander, na ALMG: “Despejo Zero não só até 30/6/22, mas para sempre! Cadê a função social?”

*Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG.

[2] Cf. nota n. 285, MARX; ENGELS, 2007: 564.

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