Governo Bolsonaro muda regra de reconhecimento de comunidades quilombolas; entidade diz que norma fere princípios legais

Segundo Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos, medida prejudica 2.500 comunidades. Em PE, 194 foram certificadas e reconhecidas, mas não foram tituladas.

Por g1 PE

Uma portaria publicada no Diário Oficial da União instituiu um cadastro e estabeleceu novas exigências para reconhecer comunidades como remanescentes de quilombo pela Fundação Cultural Palmares (FCP). Para a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), a medida “fere princípios legais”.

Com as mudanças estabelecidas pelo governo do presidente Jair Bolsonaro (PL), que foram publicadas na segunda-feira (4), o processo se torna mais burocrático e, segundo a Conaq, prejudica as mais de 2.500 comunidades quilombolas do país.

Em Pernambuco, 194 delas foram certificadas e reconhecidas, mas ainda não foram tituladas, e mais de 20 estão no processo de reconhecimento. Apenas duas foram reconhecidas e tituladas no estado (veja detalhes mais abaixo).

Assinada pelo presidente da Fundação Palmares, Marco Antonio Evangelista, a portaria institui o cadastro geral de remanescente dos quilombos e estabelece os procedimentos para expedição da certidão de autodefinição. Ela substitui uma portaria de novembro de 2007 e torna o processo de definição mais burocrático.

O reconhecimento pela Fundação Palmares é o primeiro passo para uma comunidade quilombola obter o título da terra. Após a emissão da certidão pela FCP, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) inicia os trâmites para a titulação, processo que inclui a elaboração de um relatório técnico, análise por comitê regional, entre outros pontos.

De acordo com a portaria, as informações correspondentes às comunidades deverão ser registradas em banco de dados físico e eletrônico.

Para que a certidão de autodefinição seja emitida, será necessário apresentar atas de reuniões e assembleia, como era feito anteriormente, mas também é solicitado um relato mais detalhado da trajetória do grupo com dados, documentos ou estudos realizados. É preciso, ainda, ter um endereço eletrônico (e-mail). A portaria entra em vigor no dia 2 de maio.

A Conaq emitiu uma nota em repúdio à portaria nesta terça-feira (5) afirmando que medida “pode tornar inacessível a certidão de autodeclaração quilombola”, já que a maioria das comunidades não dispõem de acesso à internet para fazer a consulta com frequência.

O coordenador executivo da Conaq, Antonio Crioulo, afirmou ao g1 que a portaria foi construída sem diálogo com representações das comunidades quilombolas e lembrou que é direito dos povos indígenas e tribais, como os quilombolas, serem consultados antes de serem tomadas decisões que possam afetar seus bens ou direitos.

“Essa portaria foi construída ferindo vários princípios legais. Qualquer ação precisa obedecer os princípios da Organização Internacional do Trabalho 169 e garantir o processo da escuta, da construção coletiva, das informações antecipadas. E ninguém foi ouvido”, criticou.

Ele acrescentou que a portaria não considerou algumas dificuldades das comunidades quilombolas. “Tornou tudo mais burocrático e não levou em consideração que grande parte das comunidades quilombolas no Brasil não tem acesso à internet. Antes as comunidades faziam e postavam pelos Correios. E a comunicação vai ser por Diário Oficial. A comunidade quilombola não tem acesso”, disse.

Antonio Crioulo também apontou que é curto o prazo de 30 dias para manifestação em caso de documentação incompleta ou insuficiente. Ele argumentou, ainda, que a determinação de que não compete à FCP “dirimir conflitos internos entre membros da comunidade” abre espaço para que proprietários privados se apossem das terras.

“Diz que a FCP não vai dirimir conflitos dentro dos territórios quilombolas, mas não especifica o que é. Abre margem para qualquer coisa. Quando tem um fazendeiro no território se torna um conflito interno. Então cabe ao governo e às instituições defenderem os territórios quilombolas e auxiliar a comunidade, principalmente das ações judiciais da defesa do território”, destacou.

O coordenador executivo da Conaq também faz uma observação sobre a exigência de relatório da trajetória do grupo. “Diz que tem as comunidades têm que encaminhar um relatório dessa trajetória do grupo e não diz qual relatório. fica subentendido que é uma exigência de um laudo antropológico que dificilmente uma comunidade quilombola teria como pagar para fazer a certificação”, disse.

Comunidades ameaçadas

Segundo Antonio Crioulo, todas as comunidades quilombolas ficam ameaçadas quando a portaria entrar em vigor. A Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos estima que no Brasil existam em torno de seis mil comunidades quilombolas.

“Dessas, nós temos menos de quatro mil reconhecidas. Então nós temos aí no mínimo 2.500 comunidades quilombolas que serão prejudicadas diretamente com essa portaria. Que ainda estão no processo de se fortalecer internamente, de autoidentificação, de buscar as bases legais”, observou.

Em Pernambuco, as comunidades de Castainho, em Garanhuns, e Conceição das Crioulas, em Salgueiro, são as únicas reconhecidas e tituladas pela Fundação Cultural Palmares no ano 2000. De lá para cá, outras 194 foram certificadas e reconhecidas, mas ainda não foram tituladas. E mais de 20 estão no processo de reconhecimento.

“A titulação é quando você resolve a questão fundiária e retira os intrusos, os não quilombolas, os fazendeiros. Precisa da anuência da Fundação Palmares, que é a certificação dela, para esse processo”, explicou o coordenador executivo da Conaq.

Antonio Crioulo apontou que falta agilidade do governo federal na regulação fundiária e que isto coloca as comunidades em risco. “Se o governo fosse mais ágil na indenização dos grileiros, dos fazendeiros, grande parte dos conflitos não aconteciam. A terra dessas fazendeiros fica nessas comunidades e eles, ao invés de pressionarem o governo, atacam as lideranças das comunidades”, disse.

O g1 entrou em contato com a Fundação Cultural Palmares para pedir uma resposta sobre os questionamentos feitos pelo coordenador do Conaq, mas não obteve retorno até a última atualização desta reportagem.

Cortes no orçamento
Ao sancionar o Orçamento de 2022, o presidente Jair Bolsonaro (PL) vetou recursos que haviam sido aprovados para as áreas de pesquisas científicas e para políticas públicas voltadas para indígenas e quilombolas.

Os cortes também atingiram projetos para a consolidação de assentamentos rurais, para pesquisas em universidades, para reforma agrária e regularização fundiária e para políticas de igualdade e enfrentamento à violência contra as mulheres.

Pé de Serra dos Mendes é uma comunidade quilombola em Agrestina — Foto: André Ráguine / TV Asa Branca

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