Advogadas criam organização para defender jornalistas de ataques e assédio judicial

Por Leanderson Lima, na Amazônia Real

Manaus (AM) – A luta pela garantia ao direito de liberdade de expressão é contínua e ainda mais necessária em um momento histórico em que a imprensa no Brasil vive sob constantes ataques vindos de várias esferas de poder, seja do setor público ou do privado. Não é fácil encarar esse tipo de enfrentamento quando faltam recursos e acesso à defesa na Justiça, o que é garantido pela Constituição brasileira. 

Para tentar corrigir essa desigualdade, inclusive na região Norte do país, a advogada Taís Gasparian, especialista na área do direito civil relacionada à mídia, publicidade e internet, fundou a associação Tornavoz, que tem o objetivo de garantir a defesa jurídica especializada a comunicadores alvos de processos jurídicos ou ameaças enquanto estão no exercício da liberdade de expressão.  

Neste dia 7 de abril, Dia do Jornalista, a Amazônia Real publica uma entrevista com Taís Gasparian sobre a iniciativa. Confira:

Amazônia Real – Quando surgiu a ideia da Tornavoz? Em que momento você decidiu começar esse trabalho?

Taís Gasparian – Eu sou advogada há mais de 35 anos na área de imprensa e mídia. Trabalhando com veículos e com jornalistas, sempre recebi muitas solicitações para trabalhar pro-bono como advogada. Muitas solicitações de pessoas ou pequenos veículos pedindo orientação e pedindo ajuda, pedindo para eu ser advogada e defender. Aí comecei a verificar essa necessidade. Isso aí foi durante minha vida profissional, principalmente nos últimos anos, nos últimos cinco, seis anos. Também tive algumas reuniões com o pessoal da Ajor (Associação de Jornalismo Digital). Em uma reunião com a Ajor, acabei tendo contato com diversos veículos que faziam perguntas sobre como se defender, quais as providências a tomar quando recebe uma intimação de um processo ou uma ordem judicial. Comecei a perceber a necessidade de pequenos veículos de mídia de terem uma assessoria jurídica mais estável, talvez para casos em que eles não tenham muito tempo para buscar ajuda. Muitas ordens judiciais são concedidas liminarmente, os juízes decidem com muita rapidez para mandar retirar um conteúdo ou para publicar um direito de resposta, ou então para uma audiência muito próxima. E os veículos, alguns pequenos veículos, ou pessoas físicas, comunicadores, artistas, jornalistas, blogueiros, não têm tempo hábil para procurar advogado, apresentar a citação para o advogado, pegar cópia, depois acertar os honorários. Quando consegue fazer tudo isso já acabou o prazo. Então eu fui percebendo a necessidade de ter um corpo jurídico que pudesse estar à disposição para isso, daí criei o Tornavoz. Eu e mais cinco mulheres, todas advogadas. A maior parte das cinco, quatro entre as cinco, são advogadas na área civil e tem também uma advogada na área criminal, para tratar processos em razão do exercício da liberdade de expressão, em razão daquilo que noticiaram, daquilo que informaram. Então, é específico para essa área do direito, da liberdade de expressão.

Amazônia Real – O pontapé inicial foi o lançamento no Festival 3i – Jornalismo Inovador, Inspirador e Independente?

Taís – Foi agora no final de março, 23 de março de 2022, com o lançamento oficial, embora a gente já estivesse começando a trabalhar. Já pegamos alguns casos, mas a gente começou a dar visibilidade agora, a partir de março. Lá no site tem um botãozinho que é o “peça a sua defesa” e,  clicando, tem ali os critérios básicos e um formulário para a pessoa que precisar dessa defesa. Ela deve preencher o formulário com os critérios.  Como nossos recursos não são infinitos, a gente precisa tratar com prioridades e as prioridades nossas neste ano serão as temáticas ligadas a grupos excluídos, marginalizados, mulheres, negros, indígenas, LGBTQIA+, e também pessoas que estejam afastadas do eixo Rio-São Paulo, da região Sudeste, Sul. A gente acha que na região Sul e Sudeste acaba tendo mais informação e mais possibilidade de defesas judiciais. Pessoas que tenham atuações locais, veículos locais, veículos regionais, essas são as nossas prioridades para este ano. Porque tudo depende dos financiamentos que nós conseguimos. Os recursos a gente obtém com financiamentos, a maior parte vindos do exterior. E para a gente ter os recursos é preciso apresentar projetos e os projetos que a gente conseguiu contemplam esses segmentos.

Amazônia Real – Você falou do atendimento aos centros mais distantes do eixo Rio-São Paulo. Como vai funcionar esse atendimento no Norte do Brasil?

Taís – Damos ajuda financeira para pagamento de honorários. Só para pagamento dos honorários dos advogados, para que as pessoas tenham boa defesa. Essa pessoa que vier pedir recursos pode ela própria sugerir um advogado de sua escolha ou poderá escolher uma lista de advogados que vamos apresentar para ela. A maior parte dos processos hoje em dia são digitais então, a rigor, não deverá fazer muita diferença se os advogados estiverem em São Paulo ou em Manaus para atender alguém que esteja em Manaus, vamos supor. Mas nós também queremos dar preferência para profissionais que sejam dessas regiões diversas, além do eixo Rio-São Paulo.  A gente queria dar preferência para advogados, sobretudo, se puder ser advogadas mulheres, porque queremos também valorizar a advocacia. Por isso vamos pagar honorários. A gente quer valorizar a advocacia, uma advocacia específica para essa temática da liberdade de expressão.

Nós achamos que tem havido muitos ataques nos últimos anos, especificamente ou mais especificamente contra jornalistas mulheres e nós gostaríamos de uma atenção específica para essa área, capacitando ou ajudando outros advogados a também terem mais conhecimento nessa área, para poderem defender mais casos nessa área específica do direito. É uma área muito particular, diferente, hoje em dia o direito é muito especializado, como a medicina especializada. Então, para você conseguir uma pessoa que trate, se você quebrar a mão, não adianta você ir para um ortopedista que trate do pé, você precisa ir a um ortopedista que trate membros superiores, ou mão, entendeu? Então é um pouco assim com o direito também.

Amazônia Real – Falando dessa questão dos ataques a jornalistas, principalmente mulheres, às vezes eles acontecem, durante as entrevistas. A impressão é que hoje as pessoas se sentem muito à vontade para fazer esse tipo de ataque, principalmente às mulheres. Como você analisa esse cenário?

Taís – Isso faz parte de um ataque maior. A gente vê que já começou um pouco antes da eleição do presidente Jair Bolsonaro (PL). Eu diria que foi num crescente desde 2013, depois aumentou ali com o impeachment da Dilma Rousseff,  logo ali naquela época de 2016, 2018. Então vimos um aumento expressivo de ataques contra a mídia, em geral contra veículos de mídia tradicional, ou pequenos veículos de mídia, não importa, diversos veículos de mídia começaram a ser atacados. E entre os profissionais dos veículos de mídia os mais atacados ainda são as mulheres. Você tem o exemplo da Miriam Leitão (atacada pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro, do PL, que debochou do episódio em que a jornalista foi torturada durante a ditadura militar, grávida e trancada em um quarto com uma cobra). A gente viu no passado o caso da jornalista Patrícia Campos Mello (da Folha de S.Paulo, atacada por conta de uma reportagem sobre disparo de mensagens em massa em aplicativo de WhatsApp) e de muitas outras jornalistas. Então eu acho que é parte de um todo maior, faz parte de uma estratégia de governança, do governo ou de muitos membros do governo federal, mas também é uma estratégia de comunicação que procura atingir as mulheres, com ataques misóginos, com ataques sexistas, ataques que humilham,  que visam desestabilizar a profissional mulher.

Amazônia Real – Nesses 35 anos de atuação como advogada, quais são os casos mais bizarros, mais absurdos que você acompanhou?

Taís – No lançamento que a gente fez (no Festival 3i – Jornalismo Inovador, Inspirador e Independente), nós fizemos um debate com alguns jornalistas. Alguns deles são casos que eu cuidei. Tem o da Elvira Lobato (Folha de S.Paulo), que foi processada, que recebeu no prazo de dois meses mais de 100 processos. Uma pessoa física que recebeu mais de 100 processos (por causa da reportagem que mostrava a evolução patrimonial da Igreja Universal do Reino de Deus, publicada em dezembro de 2007). Elvira Lobato sofreu isso, mas essa tática continua sendo utilizada, com outros jornalistas e comunicadores. Também tem o caso do Juca Kfouri,que é um jornalista famoso, um jornalista esportivo que foi processado diversas vezes pela CBF, pelo Ricardo Teixeira (ex-presidente da CBF, que foi banido do futebol por suspeita de corrupção). E aí todos os dirigentes de futebol do país, cada um que o Juca Kfouri criticava, processava ele. E também o Alex Silveira, um outro exemplo, que é um jornalista que estava cobrindo uma manifestação em São Paulo, que recebeu um tiro de uma bala de borracha (disparado pela PM) que atingiu o olho dele. O acidente que não foi acidente. Ele recebeu um tiro, foi praticamente fatal para a profissão dele, que é a de repórter fotográfico. Então foram três exemplos que nós trouxemos ali naquele debate, que inclusive está disponível no YouTube. São bem interessantes. Por exemplo, o Luciano Hang (empresário) agora tem processado muitos jornalistas, cada jornalista que faz uma matéria contra o Luciano Hang, ele tem entrado com um processo. São muitos casos desses.

Amazônia Real – É uma estratégia de assédio para calar os jornalistas, certo?

Taís – No caso do Alex Silveira é uma coisa um pouquinho diferente, mas a estratégia no caso da Elvira Lobato e do Juca Kfouri é essa. É meter medo, constranger, inibir a crítica, constranger o profissional, constranger a mulher profissional. Em diversos casos são processos que constrangem o profissional para que falem cada vez menos ou não falem, ou pensem três vezes antes de fazer crítica, para que tenham medo de fazer crítica. Tudo isso traz um reflexo muito grande para a democracia brasileira, que já está sob ataque. A pior coisa que pode acontecer para uma democracia diminuir ou acabar são os ataques à imprensa, ataque à informação e é isso que a gente quer defender. Defender a liberdade de expressão. Defender a informação e por isso que a gente vai patrocinar, pagar pela defesa dos processos, para que isso não cause mais esse efeito nos jornalistas e comunicadores, que eles não tenham medo. Não que eles não precisem tomar cuidado nas apurações. As matérias precisam ser muito bem apuradas, mas pelo menos que a pessoa tenha a possibilidade de ter uma boa defesa judicial.

Amazônia Real – Para finalizar eu queria que você deixasse uma mensagem neste momento em que o jornalismo está vivendo muitos ataques, tempos de liberdade de expressão ameaçada. Qual é a mensagem que você deixa principalmente para os jornalistas dos lugares mais distantes do Brasil sobre a necessidade de continuar em frente, de lutar, continuar levando informação de qualidade.

Taís Gasparian – Talvez a principal mensagem seja para que continuem fazendo boas apurações, fundamentadas, documentadas, munindo-se de documentos, de informações bem fundamentadas, de prints, de gravações, de tudo que puderem. Porque é extremamente importante. Façam uma boa apuração e deixem a defesa judicial ser feita pelos advogados. Então façam o trabalho de vocês e nós faremos o nosso trabalho. Acho que é um modo de a gente poder dividir as tarefas, tudo em prol do livre fluxo da informação. É importante para todos nós, como sociedade.

Veja como pedir sua defesa?

O Tornavoz pode prover auxílio técnico e financiar a defesa de pessoas ou pequenos veículos de mídia que estejam sofrendo processos judiciais, em virtude do exercício de sua liberdade de expressão, e que não tenham condições de contratar defesa especializada. Como os recursos são limitados, será dada prioridade a casos que envolvam temáticas ligadas a grupos historicamente marginalizados, tais como, mulheres, pessoas negras, indígenas, LGBTQIA+, que estejam afastadas de grandes centros, e veículos que tenham tais temáticas ou tenham atuação local/regional.

 Leanderson Lima – É graduado em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário Nilton Lins. Tem MBA executivo em Gestão de pessoas e coaching, pelas Faculdades Idaam. Com 18 anos de experiência profissional, atuou por veículos como Jornal A Crítica, Correio Amazonense, Jornal do Commercio e Zero Hora (RS). Na televisão trabalhou na TV A Crítica, Rede TV! Manaus, e na rádio A Crítica, como comentarista. É o vencedor do Prêmio Petrobras de Jornalismo de 2015, com a reportagem “Chute no Preconceito”.

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