Caipirinha. Por Julio Pompeu

No Terapia Política

Entremeando a pequena multidão do bloco que desfilava clandestinamente à vista de todos, Márcio entrou no bar. Gente suada e bêbada dividia o espaço com os bêbados habituais do lugar. A porta barulhenta do banheiro abria e batia secamente liberando cheiro de urina que se misturava a outros cheiros doces e azedos. A música de trompetes estridentes do lado de fora disputava o ambiente com gritos, gargalhadas desproporcionais e apelos por atenção do garçom.

Encostou-se no balcão e pediu uma caipirinha. “Com vodka?”, perguntou o atendente de olhar vago. “Caipirinha! Eu disse caipirinha. Caipirinha é com cachaça!”. Olhou para a loira que dançava cambaleante e graciosa entre o aperto de mesas e cadeiras do salão. Reparou no preto que olhava com tesão para ela. E no branco que olhava para o preto com raiva e nojo. Pediu um cigarro para o sujeito que disputava um naco de balcão ao seu lado. “Não fumo”. Merda, ninguém mais fuma! Pensou.

Na TV grande quase esquecida pendurada na parede ao lado, notícias do desfile das Escolas de Samba. A imagem de um Exu performático ocupa toda a tela. De uma das mesas, um coroa deixa de lado a porção de frituras para gritar coisas que não dá para entender. Levanta-se e agita os braços. Aponta para a tv. O intervalo dos trompetes deixa sobressair algumas palavras: guerra, diabo, Jesus, Exú. Era papo de igreja. Bem ali, no boteco. Bem naquela hora, de um carnaval fora do tempo. Cadê a caipirinha?

A amiga morena da loira era ainda mais bonita. Parecia insistir para saírem dali. A loira dançava indiferente, vistosa como uma Pomba Gira. O preto sorria para ela. Que via, mas fingia não ver. O branco marrento não a via mais, olhava só para o preto. Mudou de lugar para ficar entre os dois, como se pudesse impedir que se aproximassem. A moça percebeu. Entendeu a dele, que não entendeu a dela. Sem perder o ritmo, dançou em direção ao preto, que mostrava alegria num sorriso escancarado e gingado tímido. Passou de costas para ele e, num rodopio, afagou-lhe carinhosamente o rosto colando seu olhar no dele. Num rápido encaixe de corpos, beijaram-se.

O branco deu as costas. Olhou de volta. Bateu na mesa. Virou para a cena do beijo, que parecia infinito. O coroa levantou-se aos gritos de que Exú é Satanás e carnaval é perdição. A morena desistiu de levar a amiga dali e sentou-se, meio bêbada, meio cansada. A caipirinha chegou. Deu uma golada sedenta e fez careta. Era com vodka.

Um grito de “cale a boca!” veio sabe-se lá de onde. O coroa achou que fosse com ele. Desajeitadamente, sacou uma arma. “Quem foi? Quem foi?”. Gritos de medo alertaram os distraídos. Todos se mexeram. Uns se levantaram. Outros agacharam. Quem estava perto da porta saiu. “Quem foi? Ninguém cala quem fala em nome de Cristo!”. O cara branco, mostrando-se desarmado com os braços abertos, pedia calma para o coroa. “Foi você?”. Foi Exú! Gritou-se.

O coroa disparou. Gritos e correria. Uma, duas, três vezes. Teria disparado mais se o branco e o preto não tivessem pulado em cima dele. “Vou matar todos vocês!”, gritava o coroa rendido no chão. “Está tudo bem, sou policial!”, disse o branco procurando acalmar as coisas. “Ali! Ai, meu Deus!”, gritou a loira quando viu Márcio encostado no balcão com a camisa ensangüentada e o olhar vazio. “Sou médico!”, apressou-se o preto na direção dele. “Caipirinha… Caipirinha…”, disse Márcio desmaiando sem largar o copo.

Do lado de fora, a banda tocava marchinhas antigas para uma multidão alegre pela ilusão efêmera de viver em outra realidade.

Ilustração: Mihai Cauli

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