Metade do mundo condena a guerra na Ucrânia mas não confia no Ocidente

As recentes declarações do Papa Francisco sobre os motivos da guerra na Ucrânia e do candidato brasileiro Lula da Silva sobre a falta de vontade do poder ucrâniano negociar a paz mostram que o conflito na Ucrânia não é visto de forma igual em todo o planeta.

Por AbrilAbril

O Papa Francisco, nascido na Argentina, sugeriu, em entrevista do jornal Corriere della Serra, que a NATO poderá ter motivado a invasão da Rússia à Ucrânia. O Papa disse que a NATO «ladrou» à porta da Rússia e que isto pode ter forçado a invasão da Ucrânia.

Por seu lado, o candidato à presidência brasileira, que é vencedor em todas as sondagens, realçou a falta de vontade dos EUA e da União Europeia em que haja uma negociação séria para conseguir a paz na região, numa entrevista à revista Time.

«Nós, políticos, colhemos aquilo que nós plantamos. Se eu planto fraternidade, solidariedade, concórdia, eu vou colher coisa boa. Mas se eu planto discórdia, eu vou colher desavenças. Putin não deveria ter invadido a Ucrânia. Mas não é só o Putin que é culpado, são culpados os Estados Unidos e é culpada a União Europeia. Qual é a razão da invasão da Ucrânia? É a NATO? Os Estados Unidos e a Europa poderiam ter dito: ‘A Ucrânia não vai entrar na NATO’. Estaria resolvido o problema.»

Para o antigo presidente brasileiro, Putin, mas também Zelansky quiseram a guerra.

«Zelansky quis a guerra. Se ele [não] quisesse a guerra, ele teria negociado um pouco mais. É assim. Eu fiz uma crítica ao Putin quando estava na Cidade do México, dizendo que foi errado invadir. Mas eu acho que ninguém está procurando contribuir para ter paz. As pessoas estão estimulando o ódio contra o Putin. Isso não vai resolver! É preciso estimular um acordo.»

Há várias formas de ver o mundo

Ao contrário da maioria das nações ocidentais, lideradas pelos Estados Unidos, os países do Sul estão a tomar uma posição cautelosa em relação ao conflito armado entre Moscovo e Kiev. É indicativo disso a atitude das monarquias do Golfo, aliadas preferênciais de Washington durante décadas, nesta recusa de tomar partido: denunciam tanto a invasão da Ucrânia como as sanções contra a Rússia.

Esses países acusam o Ocidente de ser cego à sua própria hipocrisia e aos seus estreitos interesses ao apelar a uma ordem baseada em regras que eles historicamente raramente cumprem..

Será a Ucrânia um confronto global entre «democracia e autocracia», como proclamado pelo Presidente dos EUA Joseph Biden e repetido por comentadores e políticos ocidentais? «Não», diz o jornalista americano Robert Kaplan, citado por Alain Gresh num artigo no Le Monde Diplomatique,  «mesmo que possa parecer contra-intuitiva». Afinal de contas, «a própria Ucrânia tem sido uma democracia fraca, corrupta e institucionalmente subdesenvolvida há muitos anos. No índice mundial de liberdade de imprensa, o relatório Repórteres sem Fronteiras 2021 classifica-o em 97º lugar». «A luta», acrescenta Kaplan, «é sobre algo mais amplo e fundamental, o direito dos povos a decidirem o seu próprio futuro e a estarem livres de agressões.».

Se, no Norte, as vozes discordantes sobre a guerra na Ucrânia continuam a ser raras e pouco audíveis, de tal modo que uma única forma de pensar em tempos de guerra se impôs mais uma vez , elas dominam no Sul, neste «resto do mundo» que constitui a maioria da humanidade e que observa este conflito com outros óculos. A sua visão foi resumida pelo Director-Geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, que lamenta que o mundo não dê igual importância às vidas de negros e brancos, às dos ucranianos, iemenitas ou dos cidadãos do Tigre, que «não trate a raça humana da mesma forma, sendo uns mais iguais do que outros». Ele já tinha feito esta observação no coração da crise da covid-19, recorda Alain Gresh .

Esta é uma das razões pelas quais um número significativo de países, particularmente africanos, se absteve das resoluções das Nações Unidas (ONU) sobre a Ucrânia – entre os quais, a África do Sul , Índia, Arménia e México, Senegal e Brasil. E no final de Abril, nenhum país não ocidental parecia pronto a impor grandes sanções contra a Rússia.

O Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky tem tido uma prestação muito eficiente junto ao público ocidental. O esmagador apoio ocidental à Ucrânia deve-se não só à brutalidade da invasão ilegal da Rússia, mas também à astúcia e ao carisma com que Zelensky tem conseguido pressionar para ser concedida uma ajuda militar à Ucrânia. Um reforço militar que vai no sentido da política da administração Biden de prolongar uma guerra que desgaste a Rússia.

Quando as regras internacionais só são cumpridas por uns

Mas por mais eficaz que Zelensky tenha sido em angariar apoio da opinião pública ocidental, a mensagem da Ucrânia tem sido muito menos convincente para as audiências do Sul Global, onde muitos países se têm recusado a aderir às campanhas para sancionar a economia russa e isolá-la diplomaticamente. Isto ficou muito claro no Fórum de Doha no Qatar, onde Zelensky e a vice-ministra dos Negócios Estrangeiros ucraniana, Emine Dzhaparova, intervieram. A antiga jornalista, poderosa comunicadora por direito próprio, Dzhaparova, tártara da Crimeia, argumentou a partir dos temas usados pelos líderes ocidentais: Esta guerra não tem a ver apenas com a Ucrânia, mas com a sobrevivência da «ordem internacional baseada em regras». Argumentos que o presidente dos EUA Joe Biden e os líderes europeus têm repetidamente iusado para condenar a intervenção russa.

Mas é aí que reside o motivo da falta de empatia com grande parte do Sul Global. A maior parte desses países sabe, por experiência própria, que há muito que os países ocidentais não cumprem as regras do direito internacional.

É conhecida a velha anedota mexicana, em que o presidente desse país no final do século XIX e início do século XX, Porfírio Díaz, garantiu que «o problema do México era estar muito longe de Deus e muito perto dos EUA», assinalando as dezenas de intervenções que a América Latinha tinha sofrido às mãos do seu poderoso vizinho.

Em conversas com diplomatas e analistas de toda a África, Ásia, Médio Oriente e América Latina, o dirigente do Quincy Institute for Responsible Statecraft, Trita Parsi, nota que estes países simpatizam largamente com a situação do povo ucraniano e vêem a Rússia como o agressor. Mas as exigências ocidentais de que façam sacrifícios dispendiosos, cortando os laços económicos com a Rússia para manter uma «ordem baseada em regras», geraram uma reacção alérgica. Essa ordem não tem sido baseada em regras; em vez disso, tem permitido aos EUA violar impunemente o direito internacional. A mensagem do Ocidente sobre a Ucrânia é pouco provável que ganhe o apoio de países que muitas vezes experimentaram os piores lados da suposta ordem internacional.

Quando os aliados dos EUA no golfo o abandonam

Os países que têm contrariado os apelos ocidentais à ajuda e à unidade diplomática que têm recebido mais atenção são a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos. Numa ruptura brusca com Washington, promoveram o seu abraço económico e político à Rússia, ao mesmo tempo que rejeitaram o pedido de Biden de baixar os preços do petróleo através de bombearem mais petróleo e o disponibilizarem nos mercados internacionai. Os EAU recusaram-se a denunciar a invasão da Rússia no Conselho de Segurança da ONU, e enquanto o seu líder de facto, Mohammed bin Zayed, recusou um telefonema com Biden, ordenou ao seu ministro dos Negócios Estrangeiros que se deslocasse à Rússia para reforçar os laços económicos com Moscovo. As preocupações de Riad e Abu Dhabi diferem nitidamente das da maioria do Sul Global, mais vasto, e radicam principalmente na deterioração dos seus laços com Washington, por problemas económicos e por considerarem que os EUA não os têm apoiado suficientemente em relação à disputa regional que têm com o Irão.

Esta degradação das relações políticas tem reflexos na imprensa e na opinião pública desses países.

«A NATO é uma das chaves para esta recente crise […]. É certo que a Rússia – o legítimo herdeiro da União Soviética – não aceitará a expansão da NATO perto das suas fronteiras sob quaisquer condições», afirmou um editorialista no influente diário saudita Okaz a 25 de Fevereiro de 2022, três dias após o início da invasão da Ucrânia. No dia seguinte, outro comentador no mesmo diário observou: «O que é certo é que a invasão da Ucrânia pelo presidente russo, Vladimir Putin, estabeleceu novos factos no terreno que não podem ser ignorados. Impôs uma nova ordem mundial completamente diferente da que o Ocidente impôs à Rússia». Na mesma linha, o diário saudita Al-Riyadh insistiu a 3 de Março: «A velha ordem mundial que surgiu após a Segunda Guerra Mundial era bipolar, mas tornou-se unipolar após o colapso da União Soviética. Hoje estamos a assistir ao início de uma mudança para um sistema multipolar». E, visando o Ocidente, acrescentou: «A posição de alguns países nesta guerra não é defender os princípios da liberdade e da democracia, mas os seus interesses em manter a ordem mundial existente».

A mesma crítica foi expressa nos meios de comunicação social dos Emirados Árabes Unidos (EAU). «As flutuações na posição dos EUA não são surpreendentes. Não é novidade para eles entregarem-se ao engano e renegarem os seus compromissos, como têm feito em várias áreas e questões. Têm utilizado de forma consistente as forças locais para servir os seus propósitos, apenas para lhes virar as costas e deixá-las vulneráveis. Washington e o Ocidente encorajaram a propensão ucraniana a opor-se à Rússia […]. O comportamento de Washington e as posições europeias sobre a crise ucraniana, e a sua exploração da difícil situação de Kiev, revelam um problema nos valores dos seus sistemas políticos».

Lendo estes comentários, quase parece que a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos não são aliados estratégicos dos EUA. No entanto, resumem os dois temas que dominam nos meios de comunicação nestes países, para além da condenação mais ou menos pronunciada da invasão da Ucrânia. Primeiro, uma crítica por vezes virulenta ao presidente dos EUA, Joe Biden, e aos Estados Unidos, que, embora permanecendo um aliado, não é considerado fiável porque acaba por trair os seus amigos. Quanto à sua defesa do direito internacional, é hipócrita: não invadiram e destruíram o Iraque em 2003 sem aprovação das Nações Unidas? E se a Ucrânia está parcialmente ocupada há algumas semanas, a Palestina está ocupada há décadas, com o apoio determinado dos Estados Unidos e o apoio mais embaraçado dos europeus. Para não falar do racismo expresso na crise dos refugiados e da «duplicidade de critérios», «dependendo se é ucraniano ou africano».

O outro leitmotiv desses orgãos de comunicação social desses países, é a reorganização da ordem internacional, que se tornou multipolar, com um novo lugar para a Rússia e sobretudo para a China (e mais amplamente para a Ásia), acompanhada pela retirada dos Estados Unidos do Golfo. É portanto do interesse de ambos os países prosseguir a diversificação das suas relações e afastar-se de uma relação de um para um apenas com o Ocidente.

Para o resto do Sul Global, vários factores estruturais locais e mais amplos contribuíram para uma hesitação em apoiar o isolamento da Rússia. Potências sul-americanas como o Brasil e o México, os pesos pesados africanos África do Sul e Etiópia e a crescente potência asiática Índia são todas maioritárias nas suas regiões na sua recusa em sancionar a Rússia.

As relações da Índia com a Rússia remontam à Guerra Fria, quando a União Soviética vetou numerosas resoluções do Conselho de Segurança da ONU sobre Caxemira que a Índia se opunha. A Rússia continua a ser um dos principais fornecedores de armas da Índia até aos dias de hoje. O mesmo se aplica a muitos países africanos. De acordo com o Stockholm International Peace Research Institute, 18 por cento de todas as vendas de armas russas foram para África entre 2016 e 2020. A dependência africana do trigo e fertilizantes russos e ucranianos é ainda maior – um quarto dos países africanos recebe um terço do seu trigo da Rússia e da Ucrânia. O Egipto conhece demasiado bem o significado disto. O aumento dos preços dos cereais russos e ucranianos nos meses que antecederam a Primavera árabe em 2011 desempenhou um papel crucial na criação das condições sociais para os protestos que eclodiram em toda a região.

Mas a maior dependência ou vulnerabilidade do Sul Global em relação à Rússia não conta a história toda. Muitos destes Estados também vêem uma hipocrisia flagrante ao enquadrar a guerra da Ucrânia em termos da sobrevivência da ordem baseada em regras. Do seu ponto de vista, nenhum outro bloco minou mais o direito internacional, as normas ou a ordem baseada em regras do que os Estados Unidos e o Ocidente.

Exemplos não faltam. Nos últimos anos, os EUA subverteram a ordem baseada em regras quando Donald Trump retirou-se do Conselho de Direitos Humanos da ONU devido às suas críticas ao tratamento dado por Israel aos palestinianos e cortou verbas à Organização Mundial de Saúde no meio da pandemia da covid-19, por esta não endossar acusações fantasiosas contra a China, e sancionou altos funcionários do Tribunal Penal Internacional por procurarem investigar os crimes de guerra americanos no Afeganistão. (O mesmo EUA que se recusa a ser investigado por crimes de guerra pede que o tribunal investigue os crimes de guerra russos na Ucrânia).

Há também a flagrante ilegalidade da invasão do Iraque pela administração George W. Bush, a intervenção da administração Obama na Líbia, o apoio contínuo dos EUA e do Reino Unido à guerra saudita no Iémen (que deixou 13 milhões de pessoas em risco de fome) e a celebração da resistência armada ucraniana contra os invasores russos, condenando ao mesmo tempo não só a resistência palestiniana contra a ocupação israelita, mas também proibindo a oposição económica não violenta a essa ocupação de décadas. E depois há a «guerra global ao terror», que desestabilizou grande parte do Médio Oriente e do Norte de África, matando mais do dobro do número de pessoas que os próprios terroristas assassinaram desde os ataques de 11 de Setembro.

De facto, embora os EUA tenham desempenhado um papel instrumental no estabelecimento das regras e normas da ordem pós Segunda Guerra Mundial, começaram quase imediatamente a quebrá-las. Durante os seus dois mandatos, o Presidente Dwight D. Eisenhower autorizou nada menos que 104 operações encobertas, que incluíam derrubar governos e armar revoltas regionais.

Mas agora os EUA exigem que os países do Sul Global façam sacrifícios maciços e dispendiosos – com pouca consideração pelas suas vulnerabilidades e necessidades de segurança – para salvar uma ordem que os próprios EUA têm estado na linha da frente na sua violação. Voltar a uma ordem em que os EUA possam continuar a agir fora do direito internacional é equivalente a pedir ao Sul Global que faça sacrifícios insuportáveis para manter o excepcionalismo americano.

A outra linha de argumentação dos meios de comunicação árabes denuncia a dupla conversa do Ocidente. Democracia? Liberdade? Crimes de guerra? Os direitos dos povos à autodeterminação? Serão os Estados Unidos, que bombardearam a Sérvia e a Líbia, que invadiram o Afeganistão e o Iraque, os mais qualificados para reivindicar o direito internacional? Não utilizaram também munições de fragmentação, bombas de fósforo, projécteis de urânio empobrecido? Os crimes dos militares norte-americanos no Afeganistão e no Iraque foram amplamente documentados sem nunca conduzir a acusações, a destruição infligida a estes dois países excede em muito o que tragicamente está a sofrer a Ucrânia.

Dois pesos e duas medidas

A Palestina, que está totalmente ocupada há décadas enquanto a Ucrânia está parcialmente ocupada há algumas semanas, continua a ser um ponto doloroso no Médio Oriente, mas não suscita qualquer solidariedade por parte dos governos ocidentais, que continuam a oferecer um cheque em branco a Israel. «Não é inútil recordar», observa um jornalista local, «os cânticos entoados durante as manifestações, as declarações iradas que, ao longo dos anos e décadas, têm implorado sem resultados para ajudar o povo palestiniano bombardeado em Gaza ou que vive sob a ameaça de incursões, assassinatos, assassínios, apreensões de terras e demolições de casas na Cisjordânia, uma área que todas as resoluções internacionais consideram territórios ocupados».

A comparência do Presidente Volodymyr Zelensky perante o Knesset, traçando um paralelo entre a situação do seu país e a de Israel «ameaçada de destruição», indignou muitos, sem, além disso, obter o apoio esperado de Telavive, ligado às suas estreitas relações com Moscovo. Finalmente, o tratamento diferenciado concedido aos refugiados ucranianos, brancos e europeus em comparação com os do «resto do mundo», asiáticos, norte-africanos e subsaarianos, despertou uma amarga ironia no Médio Oriente, como em todo o Sul.

Dir-se-á que isto não é novidade, que as opiniões árabes (e os meios de comunicação social) sempre foram anti-ocidentais, que a «rua árabe», como por vezes é desdenhosamente chamada nas chancelarias europeias e norte-americanas, não tem muito peso. Afinal, na primeira Guerra do Golfo (1990-1991), a Arábia Saudita, o Egipto e a Síria deixaram-se arrastar para a guerra ao lado dos Estados Unidos, contra a vontade das suas populações. No caso da Ucrânia, por outro lado, estes países, mesmo quando são aliados de longa data de Washington, distanciaram-se do Tio Sam, e não apenas da Arábia Saudita. A 28 de Fevereiro, o ministro dos Negócios Estrangeiros dos EAU, Sheikh Abdullah bin Zayed Al-Nahyane, encontrou-se com o seu homólogo russo Sergei Lavrov em Moscovo e saudou os estreitos laços entre os dois países. E o Egipto não respondeu à injunção não diplomática dos embaixadores do G7 no Cairo para condenar a invasão russa. Até Marrocos, um aliado fiel de Washington, esteve convenientemente «ausente» da votação da Assembleia Geral da ONU sobre a Ucrânia no dia 2 de Março.

No momento que as medida e as linhas divisórias ideológicas de outrora se desvanecem, que as promessas de uma «nova ordem internacional» feitas por Washington no rescaldo da primeira Guerra do Golfo se afundam nos desertos iraquianos, um mundo multipolar está a emergir no caos. Oferece uma margem de manobra mais ampla para o «resto do mundo».

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