“Competição com bolsonarismo nas redes sociais é injusta”

Para pesquisador de Harvard, enquanto bolsonarismo gera engajamento com mentiras, campo democrático é cobrado a seguir ética e moral. Com resposta institucional insuficiente, fake news vão rolar soltas na eleição, prevê.

Por João Pedro Soares, Deutsche Welle

Nas eleições de 2018, as instituições brasileiras foram surpreendidas pelo fenômeno das fake news. Desde então, o Legislativo vem discutindo medidas para enfrentar o problema, enquanto o Judiciário apresentou medidas concretas, por meio do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A resposta, porém, é insuficiente para transformar o cenário na eleição deste ano.

A avaliação é do antropólogo David Nemer, pesquisador da Universidade de Harvard, no Berkman Klein Center para a Internet e Sociedade, e autor do livro Tecnologia do Oprimido: desigualdade e o mundano digital nas favelas do Brasil.

Nemer classifica o esforço das instituições como “bem-vindo e bem-intencionado”, mas pouco eficaz, uma vez que não é acompanhado por um compromisso real das plataformas digitais no combate à desinformação.

“Essas plataformas prometem muita coisa e tendem a passar uma mensagem de que são democráticas e prezam pelo bem-estar social. Eles falam muito que não são os árbitros da verdade, e que prezam pela liberdade de expressão dentro do entendimento da lei”, afirma.

“Só que, diversas vezes, a lei é quebrada dentro dessas plataformas. Os termos de serviço das próprias plataformas são quebrados o tempo todo. A gente não as vê agindo energicamente, principalmente em um tema tão delicado e que é a coluna da nossa democracia, que são as nossas eleições”, acrescenta.

O pesquisador acredita que o cenário de crise econômica deverá impulsionar a disseminação de notícias falsas pela campanha de Jair Bolsonaro. Em busca da reeleição, o presidente terá que maquiar a realidade apresentada aos eleitores, avalia Nemer – que, desde 2018, está imerso em grupos bolsonaristas no WhatsApp e Telegram.

“A única forma de recriar essa realidade é pela desinformação, pelas fake news. O volume de desinformação necessário para tentar fantasiar essa realidade real que o brasileiro está vivendo vai ter que ser muito intenso. Por isso, eu prevejo que vai ser novamente uma ansiedade social muito grande, a desinformação vai correr solta”, diz.

Ele também classifica que a disputa entre o bolsonarismo e o campo democrático nas redes sociais é injusta. “Não é só o Lula ou o PT que tem dificuldades, todo o campo democrático tem dificuldade de competir com o bolsonarismo, porque este não tem qualquer apreço pela ética, ou até mesmo pelas leis, para conduzir seu conteúdo. Eles estão o tempo todo engajando em conteúdos mentirosos, desinformação, sendo que o outro campo é colocado em uma lente de escrutínio, pela qual eles precisam seguir a regra, a ética, a moral.”

DW Brasil: Em 2018, a difusão massiva de notícias falsas teve um peso decisivo na eleição. Desde então, o ambiente digital se modificou muito, com novas regras sobre essa prática. Qual cenário devemos ver na eleição deste ano?

David Nemer: Em 2022, a gente vai viver uma ansiedade social muito maior, já que a disputa eleitoral vai estar muito acirrada. Teremos, na disputa direta, dois personagens que são vistos como completos opostos – não extremos opostos, mas opostos no entendimento do que seria o representante da direita e o representante da esquerda. É claro que o Lula não é um extremista como o Bolsonaro, mas eles se encontram em lados opostos. Bolsonaro se fez criando o Lula como seu grande inimigo, só que nunca enfrentou o Lula. Em 2022, eles se enfrentam. Além disso, Bolsonaro entrega o país em uma crise sem precedentes. Vivemos a maior inflação dos últimos 28 anos, o retorno da fome, e uma crise institucional que nunca esteve tão intensa.

Para convencer a sua base ou até mesmo expandi-la para votar nele, o Bolsonaro vai precisar recriar uma realidade, e essa realidade não condiz com a que o brasileiro vive. A única forma de recriar essa realidade é pela desinformação, pelas fake news. O volume de desinformação necessário para tentar fantasiar essa realidade real que o brasileiro está vivendo vai ter que ser muito intenso. Por isso, eu prevejo que vai ser novamente uma ansiedade social muito grande, a desinformação vai correr solta.

Essas diferenças que a gente vai ver em 2022 são sutis. Eu não consigo ver nada que vai acontecer como extraordinariamente diferente de 2018. A desinformação vai continuar acontecendo, pessoas vão continuar sendo pagas para produzir desinformação, os mesmos personagens que promoveram a desinformação em 2018 vão estar engajados em 2022. Eles viram que o modelo dá certo, já que eles foram eleitos e muitos continuaram nesse modus operandi de campanha durante esses quatro anos. Portanto, irão continuar operando esse mesmo modelo. É claro que, hoje, nós somos muito mais atentos, mais conhecedores de que as redes sociais estão inundadas de fake news. Mas isso não quer dizer que as fake news não evoluíram para se tornarem mais convencíveis, por exemplo, que técnicas novas, para promover desinformação, também não tenham sido desenvolvidas. Como eu falei, vamos ter mudanças sutis, mas com o mesmo tipo de modelo de desinformação.

Embora pesquisas de intenção de voto mostrem uma ampla vantagem de Lula, Bolsonaro tem muita superioridade nos indicadores de engajamento no ambiente digital. Por que Lula e o PT têm dificuldade para alavancar sua presença nas redes?

Vamos pegar o Twitter como exemplo. É uma plataforma em que diversas bolhas estão inseridas. Elas se tocam o tempo todo, e no conflito. Quase todos os posts do Bolsonaro são desconstruídos ou criticados por diversas outras bolhas, ou então aclamados pela sua própria bolha. Ou seja, tudo o que ele produz tem um engajamento, independentemente de ser crítico ou favorável. Isso já coloca ele em uma posição que não é de vantagem, mas de maior engajamento, se comparado ao Lula.

Como falei há pouco, não é possível confiar no número de usuários do Twitter, porque não se traduz em número de pessoas votantes, pessoas que vão necessariamente votar em Bolsonaro. Como sabemos, conta inautêntica e robô não votam. Por isso, deve-se tomar muito cuidado para fazer essa correlação, porque ela não se traduz em pessoas que votariam em Lula ou Bolsonaro.

Não é só o Lula ou o PT que tem dificuldades, todo o campo democrático tem dificuldade de competir com o bolsonarismo, porque este não tem qualquer apreço pela ética, ou até mesmo pelas leis, para conduzir seu conteúdo. Eles estão o tempo todo engajando em conteúdos mentirosos, desinformação, sendo que o outro campo é colocado em uma lente de escrutínio, pela qual eles precisam seguir a regra, a ética, a moral.

É claro que, em campanha política, todo mundo vai fazer o seu jogo, isso não é novidade. É o período em que mais temos acesso a mentiras brandas ou até mesmo pesadas. Isso é da tradição das campanhas políticas, infelizmente. Mas, quando a gente fala dessas campanhas de fake news que ficaram muito famosas em 2018, a gente vê o bolsonarismo agindo pesadamente nessa disputa, enquanto o outro lado é colocado em um pedestal onde não pode errar, não pode quebrar as regras. É muito difícil competir, porque é uma competição injusta, na qual um lado pode fazer o que quiser, e o outro lado precisa seguir as regras. Por isso, é difícil o Lula, ou qualquer outro do campo democrático, competir nas redes com o Bolsonaro, porque o bolsonarismo está compartilhando conteúdo que vai gerar esse engajamento. É um conteúdo raivoso, que gera muito medo, e disputa, por exemplo, a questão das urnas eletrônicas. Isso gera muito engajamento e quem está no campo democrático jamais vai disputar as questões das urnas eletrônicas em um sistema eleitoral. Então, é uma disputa injusta.

É possível enfrentar o bolsonarismo nas redes sem fazer o “jogo sujo” da desinformação?

É aí que a esquerda ou o campo democrático precisam se reinventar, dentro do seu marketing digital, das suas abordagens digitais, para competir com quem não segue as regras. Existem várias formas de engajar. O Lula tem ido muito bem, por exemplo, em engajar com influencers, youtubers ou até instagramers que são muito conhecidos e aclamados pelas classes mais populares. Recentemente, tivemos o engajamento dele com a Dra. Deolane, advogada, e o post deles foi o com maior engajamento no Instagram. A Anitta não fala especificamente do Lula, mas ela fala de causas que se alinham ao campo progressista, e também ao Lula. Isso traz muito engajamento e atenção para quem se alinha com essas ideias que a Anitta posta e que remetem à campanha do Lula.

Essa forma de se engajar, não pela ideologia política, mas por causas, é muito eficiente para atingir os jovens, as pessoas que não querem falar de política, mas estão preocupadas com a questão ambiental, com a questão de raça, a questão de classe. Apesar de eu achar que tudo isso é político, as pessoas não querem lidar com essa politicagem das redes sociais, um estresse social que lida com muita fake news. Elas estão mais preocupados com a causa. Portanto, ter esses políticos do campo democrático ligando diretamente com essas causas, com quem já comunica com o público sobre essas causas, é uma forma de vencer, de passar a frente de quem só sabe engajar com raiva e mentira.

O crescimento do Telegram foi a grande novidade no meio das plataformas digitais desde 2018, com grande adesão entre os bolsonaristas. Como a popularização desse aplicativo pode impactar a eleição?

Embora o Telegram seja uma grande novidade, isso não quer dizer que os aplicativos como WhatsApp e Facebook estão descartados. Pelo contrário: o Telegram é a novidade, mas não quer dizer que é a plataforma mais importante. O Facebook ainda continua, por exemplo, como a segunda maior rede social do Brasil, e líder na faixa etária de 40 a 65 anos. O WhatsApp, por sua vez, continua dominando o mercado de mensageria e das redes sociais – 96% dos celulares que estão conectados à internet usam o WhatsApp como o meio de comunicação principal. Isso mostra o poder do aplicativo.

O Telegram vem crescendo: na última pesquisa, 60% dos celulares com internet tinham o Telegram, mas esse uso não é exclusivo, ou seja, as pessoas não saem do WhatsApp para ir para o Telegram. Quando entram no Telegram, mantêm as suas contas. Então, o WhatsApp continuou como a rede social mais utilizada, de suma importância. A capilaridade do WhatsApp no Brasil inteiro é surreal, não tem outro aplicativo ou outra tecnologia que seja tão inserida no Brasil profundo, país afora.

O Telegram tem novas funcionalidades, que trazem novas capacidades. Dentre elas, os famosos canais, que não têm limite de número de usuários. O Bolsonaro é o político com o maior canal do mundo. Esses canais mudam um pouco a intenção desses aplicativos de mensageria. Por quê? O aplicativo de mensageria geralmente é visto como um aplicativo de comunicação privada. Os canais saem dessa comunicação privada e vão para a comunicação broadcasting. Ou seja, comunicação em massa, que é de um para muitos. Remete muito aos meios de comunicação tradicionais, como a televisão, já que você não tem esse feedback dos usuários como há nos grupos de WhatsApp e de Telegram. Ali, dentro desses canais que falam de um para milhares, consegue-se controlar qual tipo de mídia a sua audiência vai consumir.

As instituições brasileiras têm se movimentado para demonstrar empenho no combate à desinformação. Além do PL das Fake News, no Legislativo, uma série de medidas foi apresentada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para enfrentar o problema. Como você avalia a efetividade dessa resposta?

O esforço do TSE é muito bem-vindo, e é o que resta ao TSE fazer, já que é responsável pelas eleições nacionais e tem o compromisso de garantir a integridade do processo. Cabe ao TSE também agir proativamente para tentar conter e mitigar os danos da desinformação. Esse acordo que o TSE propôs às redes sociais é de excelente intenção. O problema é que as soluções propostas pelas próprias plataformas no combate à desinformação ficam muito aquém de uma resposta efetiva. Por exemplo, o YouTube se comprometeu a identificar e remover todo vídeo que falar que as eleições de 2018 foram fraudadas. Ok, mas a gente já não quer saber de 2018, que já passou, a gente quer saber de 2022, porque o que está em risco agora são as eleições de 2022. De repente, vai ser bem-vindo retirar essa mentira, já que não houve fraude, mas a preocupação principal tem que ser com 2022. Isso não há.

O Google se comprometeu a criar um doodle que celebraria o dia das eleições. O doodle é aquela animação que aparece na página principal do Google, geralmente em datas comemorativas. Ok, mas o que isso de fato vai ajudar na contenção da desinformação? Nada, não acontece nada. O próprio Telegram teve essa novela com o STF e o TSE, sem conversar, e finalmente respondeu depois de ter sido banido, falando que vai monitorar os grupos.

Esta é a questão: essas plataformas prometem muita coisa e tendem a passar uma mensagem de que são democráticas e prezam pelo bem-estar social. Eles falam muito que não são os árbitros da verdade, e que prezam pela liberdade de expressão dentro do entendimento da lei. Só que, diversas vezes, a lei é quebrada dentro dessas plataformas. Os termos de serviço das próprias plataformas são quebrados o tempo todo. A gente não vê as plataformas agindo energicamente, principalmente em um tema tão delicado e que é a coluna da nossa democracia, que são as nossas eleições. Eu acho que esse esforço é muito bem-vindo e bem-intencionado, mas vejo os esforços das redes sociais muito aquém do que tem que ser feito.

Você costuma criticar o conflito entre a lógica do lucro e o compromisso das plataformas digitais contra a desinformação. Por quê?

Porque os conteúdos que mais geram engajamento são aqueles que engatilham uma comoção negativa, seja ela de medo, ou de raiva. Isso é da natureza humana. Sabendo que é isso que irá fazer as pessoas engajarem um conteúdo e passar mais tempo nas plataformas, os algoritmos estão priorizando esse tipo de conteúdo. Foi isso que a Frances Haugen falou no testemunho dela no Congresso dos EUA, que o algoritmo do Facebook priorizava conteúdo que gerava medo e raiva, porque é o tipo de conteúdo que as pessoas mais vão compartilhar.

Como isso significa monetização ou lucro para as plataformas? Elas vendem o tempo de atenção que as pessoas prestam nas plataformas, ou seja: o usuário passa x horas na minha plataforma, então consigo vender isso falando “olha, nossos usuários estão passando x horas por dia, então eu acho que você deve anunciar aqui, porque é o máximo que você consegue de atenção, comparado a outras plataformas, comparado à televisão”.

É claro que as redes sociais querem otimizar esse número de x horas e a melhor forma de deixar a pessoa pregada ali na sua rede social é priorizando conteúdo que vai forçar essa atenção dos usuários. O algoritmo já entendeu que o conteúdo que vai gerar isso é o que gera raiva, medo. Não surpreende que as fake news mais virais, que mais tomam a atenção das pessoas, são as que geram medo e raiva. Então, não é de se surpreender que as plataformas tenham virado esse antro tóxico e não saudável, que compromete a saúde mental das pessoas justamente porque é um modelo que gera mais lucro para as empresas.

Após o anúncio da aquisição do Twitter pelo empresário Elon Musk, temos observado um boom de perfis bolsonaristas. Esse fenômeno aumenta o risco de que a plataforma seja utilizada para a desinformação?

Que vai ser usada, isso com certeza, porque já está sendo usada para a desinformação. É claro que, dependendo do momento e do contexto, a desinformação vai se adequar a isso. Mais perto das eleições, é claro que vai ter muita desinformação relacionada a isso. Isso vai aumentar quando começar o período oficial das campanhas. A gente vai ver esse boom de desinformação relacionada às eleições, já que em 2018 foi a mesma coisa, então não se trata de novidade. Até hoje, o  Twitter não explicou direito por que houve esse boom de contas, principalmente direcionadas a personagens da extrema-direita ou conservadores, que se utilizam da desinformação para se promover ou emitir opiniões polêmicas. O Twitter não conseguiu explicar, falou que foi um crescimento orgânico, mas não foi.

Eu consegui analisar uma amostra de 25 contas, que não é nada, já que foram milhões de contas que foram criadas. Essa pequena amostra era de contas que não tinham fotos, com login alfanumérico – ou seja, aquele nome que não faz muito sentido, sem nenhum seguidor, só seguindo exatamente as mesmas coisas. Isso é característico de um movimento não orgânico, e o Twitter insiste em falar que não é. O Twitter precisa falar que é orgânico, porque tem que prestar contas aos investidores. Recentemente, eles foram pegos mentindo sobre o número de usuários, contaram a mais já que um usuário pode ter duas contas. Eles falavam que, na verdade, cada conta é um usuário.

Então, não dá para confiar nas relações públicas dessas plataformas, porque elas vão utilizar a narrativa para se beneficiarem, já que devem prestar conta aos investidores. A gente nunca vai saber do Twitter, oficialmente, por que essas contas aconteceram. É aí que a gente precisa do trabalho dos pesquisadores, da imprensa, para questionar, pressionar, porque isso não virá deliberadamente das plataformas, como não tem vindo.

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