Ela e ele: foi por medo de avião. Por José Ribamar Bessa Freire

No TaquiPraTi

– Fumante ou não fumante?

– Não fumante.

A funcionária do check-in marcou o assento:

– O embarque é dentro de 40 minutos. A entrada é pelo portão B. Uma boa viagem!

As restrições de fumar em público eram poucas, em 1993, quando as companhias aéreas começaram a separar os viciados dentro dos aviões.  

Ele passou pelo controle da Polícia, já com um cigarro aceso. No salão de embarque do voo Rio-Manaus, com escala em Brasília, fumou uns dez cigarros. Hollywood. Afinal, comerciais dessa marca mostravam homens cercados de mulheres bonitas e cheirosas.

Por que um fumante inveterado como ele – uma chaminé ambulante – escolhia assento de não fumante? É que tal escolha o impediria de fumar durante o voo, o que era bom para a saúde, e, além disso, aumentava a possibilidade de viajar sentado ao lado de uma mulher. 

Não. Não era mulherengo. Tampouco santo. Para ele, galinhagem nas alturas era tão incompatível como a paz na terra aos homens de má vontade. Acontece que mulheres eram menos tabagistas. Preferia sentar ao lado delas, se sentia superprotegido, talvez por ter convivido em sua infância com uma mãe dominadora e uma legião de irmãs. Já os homens debochavam de seu pavor diante das turbulências e das “tesouras de vento”.  Por isso, sentado na janela, ficou contente quando o comissário de bordo apontou a poltrona do corredor e disse a ela:

– É aqui.

Conversa com mulher

– Oba, uma mulher! – ele pensou. A estratégia dera resultado. Ela pediu licença e sentou.  O voo não estava lotado. Com o rabo do olho, ele a observava. Vestia, esportivamente, um conjunto cinza claro e um tênis branco de marca. Depositou uma valise de mão azul na poltrona do meio desocupada, jogou para trás os cabelos castanhos, lisos e compridos e ficou segurando um pequeno baú branco. Teve dificuldades em colocar o cinto de segurança. Ele ajudou-a como um pai faria com sua filha.

Mulheres, geralmente, sabem conversar melhor que homens. Após a decolagem, ela quebrou o gelo e puxou papo, tecendo comentários sobre instruções de segurança, colete salva-vidas, máscara de oxigênio e as oito saídas de emergência do DC-10.

– Tudo isso é inútil. Este avião é muito seguro.

Discretamente, ele sondou até onde ia a sensibilidade social e política dela e começou a se exibir, mostrando estar bem informado sobre acontecimentos recentes no campo da política internacional. Se atualizássemos os fatos de 1993 para hoje, diríamos que ele se posicionou diante da guerra da Ucrânia, criticou Putin e Biden, comentou as esperanças com as próximas eleições na Colômbia e os avanços e recuos na Constituinte do Chile e espinafrou as mentiras sobre a Amazônia do bilionário estado-unidense Elon Musk em parceria com o Coiso puxa-saco.

Quando haviam terminado o lanche oferecido pela Companhia Aérea, ele começou a falar sobre a Amazônia. Quieta, ela ouvia atenta, acompanhando tudo com os olhos vivos e inteligentes e um sorriso inocente, embora ele achasse que não fora plenamente entendido. Mudou o tema para política nacional. Comentou fatos que, no tempo presente, equivalem aos resultados das pesquisas de opinião sobre a eleição com Lula na cabeça. Ironizou a terceira via, condenou a inflação, o preço da gasolina, a invasão das terras indígenas pelo garimpo, o desmatamento, o negacionismo, a campanha contra a vacina, o terraplanismo, a homofobia, a barbárie.

A bela e a fera

Foi aí que ela abriu o baú repleto desses trens que servem para alimentar a vaidade feminina e derrubou no chão um frasco de Mucovital ou coisa que o valha. Ele ajuntou e o devolveu. Com voz quase infantil, ela explicou:

 – Remédio para mucosidade.

Em seguida, tirou uma escova e passou nos cabelos. Com muita habilidade, sugeriu que a conversa sobre política não a interessava. Preferiu o delicado terreno pessoal, tomando certo cuidado, zelosa de sua privacidade. Declinou seu nome. Chamava-se Lenina. Linhares por parte de mãe e Gomes pelo lado paterno. O pai morou em São Luiz e não gostou. Muito quente, praias perigosas. Agora, ela residia em Brasília, onde não havia praia. 

– E o seu nome? – perguntou desinibida.

Ao saber que ele era amazonense, ela informou que tinha um tio que vivia em Manaus.

– Linhares? Seu tio é tocador de charamela?

– O quê?

– Charamela, um instrumento de sopro antigo. Tenho um amigo que escreveu o conto “O tocador de charamela”. Belíssimo.

Como ela demonstrava certa perplexidade, ele checou os dados pessoais:

– Erasmo é o nome dele, filho da dona Mimi, casado com dona Diná. Mora ao lado da taberna do Jaime Mão-de-faca, lá no bairro de Aparecida, onde nasci.

O tempo passou velozmente. O trem de pouso baixou no momento em que Lenina mencionava suas duas tias, ambas de nome Maria José e a irmã Maria da Penha, de 15 anos. Efetuado “o completo estacionamento da aeronave”, eis que a aeromoça se aproximou, pendurou um enorme carta de identificação no pescoço de Lenina e disse:

– Vamos, que a tua mãe deve estar te esperando.

Lenina, com seus dez aninhos, deu adeus e desembarcou em Brasília. No seguinte trecho da viagem até Manaus, sua poltrona foi ocupada por um obsceno deputado federal do PFL (vixe, vixe!), com pinta de corrupto. A Bela cedeu lugar à Fera. Para evitar qualquer papo com o flatulento depufede, colocou o head-fone e sintonizou o aparelho no roteiro musical.  Por irônica coincidência – ele queria ver sua mãe mortinha no inferno se estivesse inventando – o cearense Belchior cantava as estratégias para combater o medo:

– Foi por medo de avião, que eu segurei pela primeira vez a tua mão.

Infelizmente, mão de depufede não dá para segurar, Belchior. 

P.S. – Crônica publicada originalmente em 5 de outubro de 1993 e republicada aqui com algumas modificações. 

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