Essas três causas são agravadas pela participação humana ativa, que piora esses fenômenos e contribui para a degradação do bioma
Por: João Vitor Santos, em IHU
Quando se anda pelo Pampa e se vê aqueles largos campos, tem-se a ideia de vazio. Para o biólogo e professor Demétrio Luis Guadagnin, essa perspectiva é justamente o que precisa ser mudado, porque coloca a visão humana como centro de um espaço em que a vida já pulsa por si só. E, como senhora do Pampa, a mão humana tem sido dura em alterar esse bioma sul-americano, visto como “só pasto”. Na entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU por e-mail, o professor explica que são três os principais fatores de ameaça: desmatamento, crise climática e introdução de espécies exóticas, ou invasoras. Não por caso, todos fatores têm o ser humano como agente dessa nociva transformação. “Popularmente, os ecossistemas abertos, como campos, dunas e banhados, são menos valorizados que florestas. Temos o Dia da Árvore, mas não o dia das gramíneas, por exemplo”, observa.
Guadagnin ainda explica que cada árvore derrubada ou campo alterado significa outras perdas em cadeia. “Tecnicamente usamos a expressão ‘perda e fragmentação de habitats’. A palavra desmatamento tende a sugerir a perda de habitats florestais, mas pode ser aplicada a qualquer tipo de habitat”, detalha. Além disso, os campos nativos do Pampa “são mantidos graças a um regime de flutuações climáticas e interações entre flora e fauna que estão se alterando rapidamente”. Ou seja, precisa-se dessa sazonalidade de tempos de secas e chuvas intensas. “O regime natural de secas, cheias, incêndios, geadas etc. está se alterando rapidamente pela mudança climática. A capacidade de resiliência dos habitats remanescentes está reduzida, tanto pela alteração da paisagem provocada pela perda e fragmentação, quanto pelas alterações da condição destes remanescentes”, adverte.
O terceiro fator de ameaça ao Pampa é a introdução de espécies não nativas, as exóticas, também chamadas de espécies invasoras. Mais uma vez, a mão humana está presente. “A invasão é um processo de colonização com sucesso. Chamamos de invasão, em vez de colonização, para ressaltar que, neste caso, este processo de colonização não teria como ocorrer sem o auxílio humano. O processo de invasão obedece aos mesmos mecanismos de todas as colonizações, com peculiaridades devidas a este auxílio humano”, explica o professor.
Guadagnin, especialmente sobre as espécies invasoras, aponta que “como sempre, prevenir é melhor que remediar”. E acrescenta: “precisamos de políticas públicas que evitem a introdução de espécies e alertem a população sobre os riscos envolvidos”. E, no caso das mudanças climáticas e desmatamento, aponta que ações globais fazem a diferença, mas também é preciso agir localmente. “Uma ação indireta muito importante, fundamental mesmo, é valorizar as espécies nativas, reduzindo a necessidade, o desejo e o estímulo para introduzir exóticas. Esta valorização envolve desenvolver tecnologias, raças, variedades e usos a partir da nossa flora e fauna nativa e, também, aceitar que biodiversidade nativa pode e deve ser usada, desde que de forma sustentável”, pontua.
Por fim, o professor responde a uma provocação: se déssemos voz a uma animal nativo do Pampa, qual seria e o que ele nos diria? “Não vou sugerir uma espécie animal. Prefiro provocar em outra direção. Quem sabe os pastos possam falar, ou os cactos (muitos deles endêmicos e ameaçados), ou os peixes anuais, os caramujos, as minhocas, o capim-santa-fé. Quem sabe uma assembleia.”
Demétrio Luis Guadagnin é bacharel e licenciado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestre em Manejo de Vida Silvestre pela Universidad Nacional de Córdoba, Argentina e doutor em Ciências Biológicas pela Universidade Federal da Paraíba. Atua como professor do Departamento de Ecologia da UFRGS. Desenvolve pesquisas na área de Conservação e Manejo de Vida Silvestre, com ênfase no manejo de invasões biológicas, exploração de recursos biológicos, planejamento e manejo de áreas protegidas e ecologia e conservação de áreas úmidas e aves aquáticas. Também é coordenador do Laboratório de Biologia da Conservação do Centro de Ecologia da UFRGS.
Confira a entrevista.
IHU – Hoje, qual é a maior ameaça ao bioma Pampa?
Demetrio Luis Guadagnin – A maior ameaça ao Pampa e todos os biomas do planeta, no curto prazo, é o desmatamento. Tecnicamente usamos a expressão “perda e fragmentação de habitats“. A palavra desmatamento tende a sugerir a perda de habitats florestais, mas pode ser aplicada a qualquer tipo de habitat.
Globalmente, a expansão da agropecuária e da mineração são as principais causas da perda e fragmentação de habitats. No Pampa, este processo se deve principalmente pela expansão da soja e silvicultura e em segundo lugar pela expansão das pastagens cultivadas e da mineração. Todas estas atividades têm como finalidade a produção de commodities para exportação.
Quando ocupamos áreas nativas com atividades humanas, ao mesmo tempo reduzimos a área nativa remanescente (perda) e separamos estas áreas umas das outras por grandes distâncias (fragmentação). A paisagem antes contínua se transforma em um arquipélago – pequenas ilhas nativas separadas entre si por um imenso oceano de atividades humanas. Nessa condição, as populações nativas são menores, a diversidade genética é menor e a dispersão fica mais difícil.
Mudanças climáticas
A maior ameaça ao Pampa e todos os biomas do planeta, no longo prazo, é a mudança climática. Este é um fenômeno já bastante discutido quanto às suas origens. Os campos nativos do sul da América do Sul, em particular, são mantidos graças a um regime de flutuações climáticas e interações entre flora e fauna que estão se alterando rapidamente. Ao contrário da maioria dos biomas florestais, os biomas campestres são favorecidos e dependem, entre outros fatores, de um regime de flutuações ambientais que tem um componente sazonal e outro aleatório, imprevisível, ambos importantes.
O regime natural de secas, cheias, incêndios, geadas etc. está se alterando rapidamente pela mudança climática. A capacidade de resiliência dos habitats remanescentes está reduzida, tanto pela alteração da paisagem provocada pela perda e fragmentação quanto pelas alterações da condição destes remanescentes, por muitos fatores – por exemplo, a fauna nativa de pastejadores, herbívoros, foi substituída pelo gado introduzido e mesmo áreas sem uso estão sujeitas a plumas de contaminantes originadas das áreas agropecuárias etc.
Espécies exóticas e outras ameaças
A introdução de espécies exóticas é o terceiro fator em importância. Estas introduções tendem a reduzir ainda mais a capacidade dos habitats nativos de resistirem às mudanças ambientais.
Além destes três fatores, a exploração excessiva de espécies nativas (caça, extrativismo etc.) e a contaminação (química, genética, sonora, luminosa etc.) são as outras duas ameaças que explicam a perda da biodiversidade planetária. No caso do Pampa, isso inclui a captura de animais e plantas para tráfico, a intensificação do uso de agroquímicos, o uso de espécies geneticamente modificadas, a expansão da infraestrutura urbana, industrial e agropecuária.
IHU – Qual é o peso das chamadas espécies invasoras na degradação do Pampa? Como elas agem sobre o bioma?
Demetrio Luis Guadagnin – A introdução de espécies exóticas envolve vários riscos. Em primeiro lugar é uma ameaça a espécies nativas, preocupante no caso das espécies já ameaçadas de extinção, por competição, predação ou parasitismo. Por exemplo, o estorninho europeu recentemente introduzido compete com espécies nativas por ocos em árvores para nidificação, um recurso já raro pelo desmatamento.
Abelhas introduzidas, como a Bombus, competem com abelhas nativas.
Em segundo lugar, tende a reduzir a capacidade de resistência dos habitats nativos remanescentes por reduzir a diversidade biológica. Quanto maior a diversidade biológica, tanto de espécies quanto genética, maiores as chances de encontrar indivíduos e espécies capazes de fazer frente às alterações.
Em terceiro lugar, muitas destas espécies invasoras se tornam problemas econômicos ou de saúde. No caso do Pampa, temos, por exemplo, os problemas bem conhecidos do javali, do capim-anoni, da braquiária, do mosquito da dengue, entre diversos outros. Mas a maioria dos efeitos ecológicos, sociais e econômicos e das espécies causadoras passam desapercebidos por falta de estudos e porque se confundem com os efeitos causados pelos outros fatores.
IHU – Como se dá o ingresso das espécies invasoras? Quais as maiores ameaças de invasores na fauna e na flora pampeanas?
Demetrio Luis Guadagnin – A invasão é um processo de colonização com sucesso. Chamamos de invasão, em vez de colonização, para ressaltar que, neste caso, este processo de colonização não teria como ocorrer sem o auxílio humano. O processo de invasão obedece aos mesmos mecanismos de todas as colonizações, com peculiaridades devidas a este auxílio humano.
Primeiro, a espécie precisa ultrapassar uma barreira geográfica, que é uma barreira de distância ou física. Humanos e seus artefatos hoje se movem globalmente, com grande frequência e volume, ampliando muito as oportunidades de transporte de espécies. Esse transporte pode ser intencional ou não. O transporte intencional envolve espécies introduzidas com alguma finalidade – ornamental, econômica ou simplesmente por curiosidade. O transporte não intencional acontece de muitas formas – junto com água de lastro de navios; preso na superfície de embarcações e veículos; junto com o solo de mudas de plantas ou o barro preso em para-lamas, caixas; transposições de bacias hidrográficas; em meio a cargas de todos os tipos. Muitas espécies parasitas são transportadas junto com a introdução dos seus hospedeiros, incluindo animais ou plantas. Estima-se que cada forma de transporte – intencional e não intencional – responda por cerca da metade das introduções.
Depois, a espécie precisa ultrapassar uma barreira ambiental. Como cada região do planeta é única e as espécies evoluem adaptando-se a estas condições únicas, é pouco provável que uma espécie tenha sucesso em um ambiente novo. Precisará competir com uma comunidade nativa mais bem adaptada ao seu próprio ambiente. Mas as alterações ambientais humanas modificam o jogo de forças – nenhuma espécie evolui nos ambientes urbanos, agrícolas ou mesmo nos ambientes silvestres com influência humana, pois são alterações muito recentes, numa perspectiva de tempo evolutivo. Nessas condições, quais atributos serão favorecidos? É uma questão de sorte, de chance, que iguala espécies nativas e exóticas. No caso das espécies introduzidas intencionalmente, elas ainda contam com o cuidado humano para aumentar suas chances de sucesso – irrigação, adubação, alimentação etc.
A seguir, a espécie precisa ultrapassar uma barreira biológica – as chances de sucesso são maiores se a população inicial for grande, porque a mortalidade dos migrantes é muito elevada, especialmente no início do processo. A migração e a natalidade precisam compensar a mortalidade elevada. Quanto maior o número de migrantes, maior a diversidade genética introduzida e isto aumenta a chance de genes competitivos no novo ambiente serem introduzidos ou surgirem e serem selecionados. O grande volume de cargas e pessoas sendo transportadas atualmente aumenta o número de migrantes transportados e então o tamanho das populações introduzidas e das chances de sucesso. Aquelas espécies que introduzimos em maior número são as que terão a maior chance de se tornarem invasoras.
Última barreira
Finalmente, a última barreira a ser transposta é a da capacidade de se dispersar com sucesso das áreas alteradas, onde foram inicialmente introduzidas, para as áreas conservadas. Estas áreas apresentam naturalmente uma forte capacidade de resiliência, pela sua grande biodiversidade. Isso significa um grande número de potenciais predadores, parasitas e competidores eficientes. Mas algumas espécies introduzidas têm sorte. Novamente, o auxílio humano através de ajudas no transporte, no cuidado, na alteração dos ambientes e na insistência com introduções intencionais ou não aumentam as chances de sucesso.
Estima-se que cerca de uma em cada mil espécies que são introduzidas conseguem concluir todas estas etapas do processo de invasão e se tornam as espécies mais famosas pelos problemas ambientais, sociais ou econômicos que provocam. A maioria das outras passam desapercebidas, ou estão nos nossos jardins, pastos e lavouras esperando sua chance. Essas poucas que tem grande sucesso são as que vão gerar os enormes custos que justificam a prevenção com toda e qualquer introdução, pois a ocasião faz o ladrão e é muito difícil antecipar qual espécie se tornará um problema.
IHU – Que perdas de biodiversidade já acumulamos em decorrência da ação de espécies invasores de animais e plantas?
Demetrio Luis Guadagnin – A ameaça e a extinção são sempre causadas por múltiplos fatores, que interagem. Então, é uma pergunta difícil de responder. Conhecemos pouco da biodiversidade nativa, especialmente considerando que espécies já foram extintas antes mesmo de tomarmos conhecimento da sua existência. Os efeitos das diversas ameaças humanas (desmatamento, mudança climática, contaminação, exploração excessiva e invasões biológicas) interagem e se confundem.
Precisaríamos de muito mais estudos para compreender melhor o quadro. Na lista de espécies ameaçadas de extinção no Brasil, as invasões biológicas aparecem com um potencial fator importante em cerca de 20% dos casos.
IHU – Quais são as soluções possíveis para lidar com as espécies invasoras?
Demetrio Luis Guadagnin – Prevenção, mitigação e valorização da biodiversidade nativa. Como sempre, prevenir é melhor que remediar. Precisamos de políticas públicas que evitem a introdução de espécies e alertem a população sobre os riscos envolvidos. Entre as medidas diretas interessantes estão as políticas de quarentena, as listas sujas (listas de espécies perigosas, para banimento da introdução intencional), as listas limpas (listas de espécies sem histórico de invasão), medidas sanitárias em portos, aeroportos e fronteiras, comunicação social sobre os riscos da introdução de espécies. Como medidas indiretas estão as ações para enfrentar os outros problemas ambientais – mudança climática, exploração, contaminação, desmatamento, pois eles interagem, são sinérgicos.
Remediar é muito caro e difícil. Uma vez que uma espécie se estabeleceu como invasora, é, na maioria dos casos, impossível erradicar. Existem alguns sucessos pontuais em ilhas e no caso de algumas introduções atacadas ainda na fase inicial, quando as populações são localizadas e pequenas. Em geral, a única coisa possível é uma estratégia de convivência, de redução de danos, um compromisso entre danos e custos de controle. A remediação pode ser possível e sempre se justifica de forma localizada, em áreas de grande valor ambiental, como nas unidades de conservação, por exemplo.
Valorização de espécies nativas
Uma ação indireta muito importante, fundamental mesmo, é valorizar as espécies nativas, reduzindo a necessidade, o desejo e o estímulo para introduzir exóticas. Esta valorização envolve desenvolver tecnologias, raças, variedades e usos a partir da nossa flora e fauna nativa e, também, aceitar que biodiversidade nativa pode e deve ser usada, desde que de forma sustentável.
Então, temos estas duas barreiras. No primeiro caso, é uma luta ingrata. Por exemplo, o Brasil apresenta a maior riqueza de árvores do planeta, mais de 10 mil espécies. Certamente temos muitas espécies com características melhores do que as atualmente usadas pela silvicultura para as mesmas finalidades e muitas outras. Por exemplo, a qualidade das madeiras é amplamente conhecida e sustenta um mercado extrativista global insustentável e muitas vezes ilegal, mas poderia ser diferente.
A fibra da araucária, por exemplo, tem qualidades superiores às do pinus e eucaliptos. Sem falar no potencial das frutas nativas. Mas então, por que seguimos usando sempre o mesmo portfólio de espécies, em geral exóticas? Porque toda a cadeia produtiva está focada nelas, desde a pesquisa agropecuária, passando pelo maquinário, pelo marketing, pelos requisitos de padronização global dos produtos, pela cadeia de produção, beneficiamento e logística, passando pelo desconhecimento das alternativas, políticas públicas de incentivo e finalmente pelas barreiras culturais. Para muitos, a fauna e flora nativas são sagradas e devem ser intocadas. É uma forma simplória e contraditória de ver o mundo e a nossa relação com a natureza, um assunto com muitas facetas.
IHU – Vivemos uma crise climática de ordem global. Como o Pampa vem sendo impactado por essa crise?
Demetrio Luis Guadagnin – Como já comentei acima, o Pampa, assim como todos os biomas campestres do planeta, está adaptado a um regime de variações climáticas que tem um componente sazonal e outro aleatório, ambos importantes. Este regime está se alterando, com uma tendência de aumento da temperatura média e de aumento da frequência e amplitude de eventos aleatórios extremos.
No primeiro caso, a tendência do Pampa é de se aproximar ao clima do cerrado, uma savana de características mais tropicais, com ameaça especialmente para os elementos da flora e fauna típicos de clima temperado. A tendência é de perda das espécies com nichos mais estreitos, aquelas que precisam de condições ambientais mais específicas, em favor das espécies mais generalistas. Dito de outra forma, é a tendência de perder as espécies raras e endêmicas, permanecendo apenas as ruderais e dominantes.
No caso dos campos nativos, por exemplo, muitas espécies de grande valor forrageiro são invernais, cada uma naturalmente rara, mas no conjunto respondendo por grande parte do valor nutritivo do pasto para o gado. São plantas com origem em climas temperados.
IHU – De outro lado, como enfrentar os problemas climáticos assegurando a preservação do ecossistema do Pampa?
Demetrio Luis Guadagnin – A mudança climática é um problema global, que exige ações globais, já amplamente discutidas no campo das políticas internacionais, de energia, de transportes e outras. Localmente, podemos preservar a capacidade de resiliência e de adaptação dos ambientes nativos. Isso se faz preservando a biodiversidade nativa – quanto maior a diversidade de espécies e a diversidade genética, maior a chance de adaptação. Isso se faz atacando as outras ameaças, que são locais – reduzindo o desmatamento, a contaminação, a exploração insustentável e a introdução de espécies exóticas.
O fato destes fatores interagirem significa que eles se nutrem, para o bem e para o mal, mutuamente. Também são possíveis ações mais intervencionistas, intervenções na infraestrutura humana, no regime de perturbações locais, nas interações biológicas etc. São ações muito caras, para serem usadas nas áreas e situações prioritárias.
IHU – A geografia do Pampa esteve sempre associada ao trabalho humano de quem vive ao sul da América do Sul, quase que como espaço destinado à produção e geração de subsistência ao homem deste bioma. Essa visão antropocêntrica do Pampa tem contribuído para sua degradação?
Demetrio Luis Guadagnin – Popularmente, os ecossistemas abertos, como campos, dunas e banhados, são menos valorizados que florestas. Temos o Dia da Árvore, mas não o dia das gramíneas, por exemplo. Estes ecossistemas abertos tendem a ser vistos, mais que as florestas, como meros espaços devolutos, disponíveis para ocupar com alguma coisa, como se não houvesse nada ali, como se a biodiversidade desses locais não fosse importante. Além disso, é mais fácil ocupar campos que florestas, o esforço necessário para lavrar a terra e cultivar é menor.
Finalmente, a maior parte das plantas cultivadas mais importantes economicamente era originalmente de plantas campestres. As civilizações que nos precederam e deram origem à nossa evoluíram nos campos. Essa visão favorece a ocupação do campo mais do que as florestas. Essa visão é tão forte que é difícil argumentar até mesmo que a legislação ambiental precisa ser respeitada também nas áreas de campo.
No caso do Pampa, o gado foi a primeira forma de ocupação, gradativamente incluindo outros usos com os quais a pecuária agora compete. Em todos eles predomina a visão de que o campo pode e deve ser ocupado, de que forma for, sem restrições.
IHU – O senhor já ouviu falar em zooliteratura? É quando, na literatura, a perspectiva humana é abandonada e pela ótica dos animais se constitui uma outra visão sobre o mundo. No caso do Pampa, para compreender toda sua teia de vida, que animal poderia melhor “nos contar” sobre esse bioma?
Demetrio Luis Guadagnin – Usar o valor intrínseco que a sociedade reconhece em alguns animais é interessante. Do mesmo modo que na relação entre ecossistemas abertos e florestais, tendemos a aceitar que algumas espécies têm valor intrínseco, mas só uma pequeníssima parte da biodiversidade. Normalmente, excluímos deste valor moral os invertebrados, as plantas, os microrganismos, que são quase que a totalidade da biodiversidade.
Não conheço a abordagem da zooliteratura, mas me sugere que possa reforçar este privilégio aos animais grandes na hierarquia de valores, com a boa intenção de aproveitar esta visão em mensagens ambientalistas. Não vou sugerir uma espécie animal. Prefiro provocar em outra direção. Quem sabe poderíamos ir além da zooliteratura. Quem sabe os pastos possam falar, ou os cactos (muitos deles endêmicos e ameaçados), ou os peixes anuais, os caramujos, as minhocas, o capim-santa-fé. Quem sabe uma assembleia.
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