O pior assassino é o que veste toga

Newsletter da Ponte, por Fausto Salvadori

Duvido que os historiadores do futuro venham a ter lá muito simpatia pelo jornalismo hegemônico do século 21 quando analisarem como conseguiu transformar em herói uma figura tão ridícula como a de Sérgio Moro. Sabe o cara que os jornalistas vendiam como uma figura imponente, um campeão da moralidade pública sem ambições políticas, mas com conhecimentos de um jurista e a visão estratégica de um enxadrista? Pois não passava de um caipira com voz de pato, que não viu impedimento ético em remover o principal candidato de uma eleição presidencial e entrar em seguida para o governo do vencedor da mesma disputa, um simplório com cultura de almanaque que fez tantas cagadas na carreira política que, de presidenciável da terceira via, despencou tanto que por pouco não se viu sem outra opção que não a disputar a vaga de síndico de algum condomínio com fachada neoclássica em Maringá.

Claro que é bem da nossa tradição colocar em pedestais pessoas que não têm outros méritos além de serem brancas e poderosas. E poucos encarnam tão bem essa tradição de privilégio e de respeito imerecido do que os membros do Judiciário do Ministério Público — talvez só os militares. Pesquisas de opinião já apontaram que os procuradores, promotores e magistrados só perdem para os milicos no quesito credibilidade e que costumam ficar à frente dos partidos, do Congresso, da imprensa.

A opacidade com que esse povo atua é um grande aliado: juízes e desembargadores não se expõem tanto como os políticos. E a maneira como se apresentam também contribui para parecem mais respeitáveis. As togas sobre os ombros e o latim incompreensível nos lábios ajudam a dar a esse povo um ar respeitável até quando cometem as maiores atrocidades. Como nesta semana, quando a gente viu, na reportagem de Catarinas e Intercept, a juíza Joana Ribeiro Zimmer coagir uma criança de 11 anos grávida em decorrência de um estupro a desistir de um aborto legal ou, na reportagem da Ponte assinada por Jeniffer Mendonça, acompanhar o desembargador Paulo Rangel debochar das lutas antirracista e feminista escrevendo numa decisão judicial que “brincadeiras” racistas não são injúria racial e que “o mundo está chato” por tratar “paquera elegante” como assédio.

E o pior é constatar como essas classes são privilegiadas — de um jeito que, de novo, só pode ser comparável aos oficiais das Forças Armadas. Podem não receber próteses penianas, mas ganham auxílio-moradia, o que, você vai concordar, é muito mais negócio. Dados da plataforma Justa, que a Ponte divulgou na série Justiça e Guerra às Drogas, em parceria com a Plataforma Brasileira de Política de Drogas e Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, revelam que magistrados, promotores e procuradores brasileiros estão entre as 0,08% pessoas mais ricas do país e recebem mais do que o dobro em relação a seus pares na Alemanha, por exemplo. Quando cometem crimes, raramente recebem punições: de 111 processos disciplinares julgados pelo Conselho Nacional de Justiça entre 2007 e 2020, 57 foram “punidos” com aposentadoria compulsória, com salários acima de R$ 30 mil, como conta Jeniffer Mendonça.

Quanto mais poderosos os magistrados, mais homens e brancos eles vão ser. Entre os juízes (magistrados que atuam na primeira instância) há 7 homens brancos para cada mulher negra. Na segunda instância, a desigualdade racial e de gênero é ainda maior: há 33 desembargadores brancos para cada desembargadora negra. Não é à toa que o Judiciário se mostrou historicamente tão conivente com o processo de encarceramento em massa da população negra, que fez a população prisional brasileira aumentar 980% em dez anos.

Assim como os policiais, os magistrados, promotores e procuradores integram a linha de frente do projeto racista do Estado brasileiro, que consistem em preservar os privilégios da branquitude garantindo o controle racial e social da população nesta que é uma das sociedades mais desiguais do mundo. A diferença é que, ao contrário do povo da farda, o povo da gravata e da toga ganha bem e não precisa arriscar a vida.

Juízes, desembargadores, procuradores, promotores: esse pessoal está cada vez mais presente nas denúncias da Ponte. Quando começamos, quase todas as nossas reportagens focavam na violência cometida por policiais — o lado mais visível da violência praticada pelo Estado. Conforme fomos avançando em nossas investigações jornalísticas, passamos a perceber que a violência da pistola ponto-quarenta só acontece porque com o apoio da caneta e do martelo.

Assim, nas reportagens sobre jovens negros vítimas de prisões sem provas, que passamos a produzir cada vez mais, fazemos questão de destacar o papel dos promotores que aceitam as versões dos policiais como se fossem verdade e dos juízes que aceitam denúncias oferecidas sem qualquer base que não a do racismo de Estado. E vamos seguir fazendo isso cada vez mais.

Estamos mexendo com gente poderosa. Sabemos disso. Ainda bem que não estamos sós. Porque temos você ao nosso lado.

Charge de Junião para a Ponte.

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