Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial: lutas e conquistas

No Informe Ensp

O Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial, comemorado em 3 de julho, se refere à aprovação da primeira lei brasileira contra o preconceito. Num país que conviveu com o trabalho escravo negro durante três séculos, vem registrando aumento de negros nas universidades, mas onde também pesquisas mostram que a maioria de assassinados é de pretos ou pardos, há muito pelo que se lutar. A pesquisadora e docente da ENSP, Marly Cruz, considera ainda muito pouco frente ao que precisa ser feito em termos de garantia de acesso a direitos humanos para a promoção da equidade, mas diz termos “sim motivos para esperançar e acreditar em novas mudanças sociais que levem à equidade, à justiça social, à garantia de direitos, porque existem muitas conquistas como expressões de resistência, luta e vitória e precisamos continuar lutando por tantas outras mais”. Ela integra a coordenação do Grupo de Trabalho Diversidade e Equidade da ENSP, que apoia a direção no desenvolvimento de políticas e ações de ampliação de debate sobre desigualdades e diversidades étnico-raciais, de gênero, funcional, geracional e suas expressões, a atuação institucional em prol da equidade, a valorização das diferenças. Confira a entrevista dela ao Informe ENSP!

Num país que conviveu com o trabalho escravo negro durante três séculos, mas, entre 2010 e 2019, segundo dados do IBGE, viu o número de alunos negros no ensino superior crescer quase 400% com a política de cotas, mesmo sendo esse percentual ainda abaixo de sua representatividade no conjunto da população – 56%, o que esperar para o futuro?  
 
Para um país que conviveu com o trabalho escravo, durante tanto tempo, é muito difícil se desfazer totalmente da memória de desigualdade racial, violências, práticas de opressão e posturas radicais de diferenciação. Estas são heranças coloniais que se expressam até os dias de hoje nas relações sociais por meio de discriminações raciais sutis e veladas àquelas mais diretas e violentas. E foi com as lutas dos diferentes movimentos sociais, a vocalização do racismo crescente nas instituições e a necessidade de reparo da enorme dívida social, que se constrói a política de ações afirmativas no Brasil, para muitos conhecida como política de cotas. Apesar de estar este ano completando seus dez anos de existência, podemos dizer que esta é uma política por demais controversa para a nossa sociedade que ainda tem o racismo tão entranhado e espraiado por todo tecido social. Mesmo assim, falamos de muitos avanços, como o próprio dado apresentado pelo IBGE, com a inserção dos negros no ensino superior, mas há que se chamar atenção para os muitos desafios a serem enfrentados quando tratamos das condições existentes para a permanência dos jovens negros na universidade, a falta de apoio institucional para essa permanência, o não levantamento dos problemas que dificultam ou mesmo impedem essa permanência, ou seja, a constatação nítida e escancarada do porquê o racismo é estrutural. E precisamos lembrar também que a falta de acesso a bens, serviços, conhecimento e dignidade ainda leva milhares de jovens negros a não ingressarem numa universidade e a morrerem cada vez mais jovens por atos genocidas. Isso nos faz refletir sobre a baixa representatividade da política que, em alguns contextos, tem causado mais incômodo do que propriamente mobilização para o enfrentamento dos problemas a serem cuidados como o assédio moral, a discriminação racial, o apagamento cultural, a intolerância. Com certeza temos muito a pensar e a fazer para a construção de uma sociedade mais justa e digna para um futuro melhor. Portanto, não basta só comemorar pelas conquistas de uma política, pois há muito o que se lutar para garantir e fazer valer direitos tão essenciais para a população negra em nossa sociedade e nós como cidadãos, trabalhadores e agentes sociais temos compromissos e responsabilidades vinculadas a essa questão. Afinal, são nossos parentes, amigos, vizinhos, alunos, colegas de trabalho ou mesmo nós que estamos sofrendo a barbárie do racismo em nosso cotidiano.
 
Apesar do aumento de negros nas universidades, eles ainda são minoria em cargos de liderança em empresas no Brasil. Como reverter esse panorama?
 
Este fenômeno, por exemplo, mostra claramente o quanto não basta ter uma política como a das cotas sem a criação de oportunidades para os negros em diferentes ramos da sociedade. Se retomarmos o período escravista, vamos rememorar que o trabalho remunerado e reconhecido como tal não era para os negros. Claro que, mesmo diante de tantas práticas de apagamento e silenciamento, impediram-nos de acessar o talento, a sabedoria, a capacidade de muitos negros que se destacaram e muito na história da humanidade como ato de resistência e bravura. Só que eram sempre minoria, ou melhor dizendo, ainda são. E não estamos falando de maneira nenhuma só de cor da pele, porque tem as questões étnicas, os aspectos socioculturais, a condição socioeconômica que marca a vida da negritude. Ou seja, há muito que se romper no que se refere aos estigmas decorrentes do que foi sempre tratado como características da inferioridade, dos não pertencentes. E quando falamos de oportunidade, queremos colocá-la aqui no seu sentido mais amplo, e não apenas aquela bolsa de estudo para o menino pobre da favela, a vaga na creche para uma mãe negra, a vaga no pré-natal para uma jovem negra grávida, a bolsa num curso de inglês para uma aluna negra de periferia… Ainda vivemos rodeados(as) de contradições e sabemos que estamos longe de termos oportunidades equitativas por identificarmos o quão é reduzida a presença de negros em cargos de liderança, novamente essa é uma minoria e por isso, muito a fazer e muito a mudar para que negros e negras possam ocupar os lugares estando onde queiram estar e ajudando na construção de um mundo mais digno. O desafio está em se pensar em oportunidades efetivas que proporciona aos negros assumir o seu lugar como protagonistas de sua própria história, pois queremos um país que não está no retrato. Daí a necessidade de oportunidades criadas por não negros ou por negros que conseguiram ascender e ocupar espaços não antes ocupados, pela exigência de um olhar diferenciado por um outro modo de pensar e agir decolonial. E aí, não tem jeito mesmo, esse panorama só será revertido quando oportunidades forem criadas, inventadas, materializadas de forma inclusiva e, para tal, a educação formal é fundamental para a ocupação de espaços com avidez, propriedade e firmeza.
 
A Tese 11, aprovada no último Congresso Interno da Fundação afirma: “A Fiocruz reforça seu compromisso institucional com a defesa da inclusão dos grupos mais vulneráveis socialmente, a redução das desigualdades, o respeito à diversidade e contra a violência”.  O que a instituição e a ENSP vêm desenvolvendo nesse sentido para atender a esse enunciado?
 
Então, é de fundamental importância que a Fiocruz, como instituição de ensino, pesquisa e serviço, que tem uma projeção e o reconhecimento nacional e internacional, marque e afirme na tese 11, do último congresso interno da instituição, o seu compromisso social com a defesa da inclusão de grupos sociais mais vulnerabilizados, da redução das desigualdades, o respeito à diversidade e contra a violência. Ter essa como uma das diretrizes para todas as ações institucionais é algo de grande relevância para avançarmos enquanto instituição pública, em defesa de direitos para o coletivo, acompanharmos as conquistas e desafios existentes nesse campo e inspirarmos tantas outras instituições ou mesmo a sociedade como um todo. Mas, é importante dizer que as iniciativas da instituição nessa direção vêm de longa data e tem como marco a criação do Comitê Pró Equidade de Gênero e Raça da Fiocruz, instituído para consolidar a agenda institucional pelo fortalecimento dos temas étnico-raciais e de gênero da instituição colaborando para uma constante atualização e reorientação de suas políticas. Este comitê vem tendo grande protagonismo no sentido da promoção da equidade de gênero, diversidade sexual e relações étnico-raciais na Fundação, o que não quer dizer que todos os problemas estão resolvidos, até porque muitas são as questões a serem enfrentadas interna e externamente. No entanto, o seu posicionamento e atuação em defesa dos direitos humanos de trabalhadores ou não abre um leque de possibilidades de ações institucionais a serem implementadas e coloca na mesa a necessidade de maior envolvimento das unidades técnico-científicas na participação e no debate. E foi no bojo dos debates que ocorreram para a nova candidatura à direção da ENSP e dos encontros preparatórios para o IX congresso interno que surge o Grupo de Trabalho Equidade e Diversidade da ENSP, devidamente alinhado à tese 11 e ao compromisso 11 da nova gestão. Esse GT tem como propósito apoiar a direção da Escola no desenvolvimento de políticas e ações orientadas por diretrizes de ampliação de debate sobre desigualdades e diversidades étnico-raciais, de gênero, funcional, geracional e suas expressões, a atuação institucional em prol da equidade, a valorização das diferenças, engajamento nas pautas de lutas antirracistas, anticapacitista, antissexista, antiheteronormativa, eliminação das barreiras de acessibilidade e fortalecimento da prevenção de violências étnico-raciais, de gênero, corponormativas e geracional na ENSP. Importante enfatizar o caráter participativo deste GT com a presença de servidores, docentes, discentes, terceirizados, direção na construção de políticas e ações pautadas na diversidade e equidade para a Escola. De certo que outras unidades também vêm tendo outras iniciativas, entretanto é fundamental marcar esse avanço para a consolidação de uma instituição mais democrática e equânime para a construção de uma sociedade mais justa e um sistema único de saúde mais equânime.

Dados do Atlas da Violência 2018 mostram que 71,5% dos brasileiros assassinados em 2016 eram pretos ou pardos. Pesquisas também apontam que o acesso deles aos serviços de saúde é menor, tendo em vista a situação social em que vive a maioria dos negros. Qual a influência do racismo no processo saúde-adoecimento da população brasileira?


Em primeiro lugar, cabe dizer que esses dados sobre assassinatos retratam claramente o que vem ocorrendo com o segmento de pretos e pardos, em sua maioria jovens, em nossa sociedade. Esse percentual é um escândalo e revela o genocídio praticado todos os dias pela operação de extermínio ou pela omissão dos que mais acumulam os efeitos do não acesso à educação, à saúde, à cultura, ao lazer e aos bens materiais. O aumento crescente de mortes maternas de mulheres negras já aponta uma relação muito desigual e diferenciada de direito a nascer dignamente. As dificuldades de acesso das mulheres negras ao pré-natal de qualidade muitas vezes vão deixá-las junto com seus bebês sem a oportunidade de prevenção a diferentes agravos e ao cuidado integrado. As causas externas de morbidade e mortalidade, em particular, os acidentes ou as mortes por armas de fogo têm sido uma constante nos estudos realizados ou nas capas dos noticiários. Como clara expressão de desigualdade, temos presente em pesquisas o menor acesso da população negra aos serviços de saúde, o que acaba sendo decisivo para uma pior qualidade de vida. E, quando conseguem acessar acabam sofrendo com os problemas da discriminação racial e social, principalmente no caso daquelas pessoas em situação de rua, e nem sempre vão acessar os serviços de mais alta complexidade. Afinal, como se sentir pertencente a um sistema de saúde tão pouco inclusivo! Cada vez mais surgem relatos de pessoas transgêneras negras e pobres desrespeitadas e agredidas em seus atendimentos no setor saúde por parte de muitos profissionais que, antes de atender às suas necessidades julgam e discriminam criando assim barreiras de acesso. Nesse sentido, o racismo influencia na determinação social do processo saúde e doença da população brasileira, porque a nossa formação é calcada no pensamento hegemonicamente colonialista, sexistas e eurocentrado. E todo esse aprendizado atravessa os nossos saberes, práticas e decisões no campo da saúde, o que tem nos levado a reflexões profundas sobre a identificação dos epistemicídios e necessidade de rupturas e construção de um novo pensamento social decolonial, tomando por base as epistemologias do sul global.
 
Em janeiro de 1989, foi sancionada a Lei nº 7716, que tipifica como crime qualquer manifestação, direta ou indireta, de segregação, exclusão e preconceito com motivação racial. Quais os motivos que nos levam a ter esperança em novas mudanças sociais que levem à equidade?


Não temos dúvida sobre a importância do sancionamento da lei no. 7716, no entanto, pelo que viemos apontando nas questões anteriores, precisamos de uma atuação mais firme e contundente diante de tantas expressões racistas em nossa sociedade, seja nos espaços de sala de aula, nos serviços de saúde, no trabalho, nas instituições públicas e privadas de um modo geral. A lei é, sem dúvida, a garantia numa arena política fundamental e necessária, só que esta não pode cair num vazio como tantas outras. Esta como tantas outras leis precisam ser divulgadas, difundidas, usadas em prol da sociedade no exercício da cidadania. Por mais uma vez enfatizar que a garantia de direitos não se restringe a existência da lei, é que reconhecemos que a postura e atitude antirracista precisa fazer parte de nosso cotidiano para vermos mudanças se darem efetivamente no campo dos direitos humanos, considerando não ser esta exclusivo aos negros, mas sim de todos nós. Não podemos negligenciar ou omitir as intolerâncias étnico-raciais, religiosas e de classe social, ou mesmo não ressaltar o fundamental papel das redes sociais de apoio que vêm se constituindo e se fortalecendo no sentido de pautar e lutar por agendas tão rechaçadas. Os dados acima mostram que não basta reconhecer o racismo, os assédios e crimes relacionados a ele, são necessárias manifestações sociais orientadas e bem articuladas por diferentes atores sociais no enfrentamento desse problema social que vem matando e levando a tantos a sofrimentos psíquicos extremos. E quem pensa que não, está enganado… Temos sim motivos para esperançar e acreditar em novas mudanças sociais que levem à equidade, à justiça social, à garantia de direitos, porque existem muitas conquistas como expressões de resistência, luta e vitória e precisamos continuar lutando por tantas outras mais. Só que ainda é muito pouco frente ao que precisa ser feito em termos de garantia de acesso a direitos humanos para a promoção da equidade, visto ainda serem muitos negros e negras fora da escola, nas prisões, sem trabalho, vivendo nas ruas, vendendo sexo, nas cenas de uso de drogas, nos hospitais psiquiátricos, nas emergências, nos cemitérios. Até quando tantas expressões do racismo?!


Marly Cruz é doutora em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz, pós-doutora em Ciências da Saúde pelo Instituto de Higiene e Medicina Tropical/Universidade Nova de Lisboa, pesquisadora titular em saúde pública do Departamento de Endemias Samuel Pessoa (DENSP/ENSP), docente do Programa de Pós Graduação Acadêmico e Mestrado Profissional em Saúde Pública ENSP/Fiocruz. principal investigadora de um Acordo de Cooperação entre a ENSP/Fiocruz, o Ministério da Saúde e os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC), líder do grupo de pesquisa de Avaliação de Políticas e Programas de Controle de Processos Endêmicos certificado pelo CNPq, além de integrar o grupo de pesquisa Epidemiologia clínica e avaliação de serviços e programas de saúde do CNPq e o grupo Population Health, Policies and Services do Global Health and Tropical Medicine do IHMT/UNL.

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