Ante um governo tão corrupto quanto fascista e violento, não há malabarismo que faça milagres. A defesa dessa política econômica concentradora, destruidora e desumana vale a cumplicidade com o golpismo?
Por Paulo Donizetti de Souza, RBA
A imprensa comercial habituou-se a naturalizar o comportamento violento de Jair Bolsonaro desde seus tempos de parlamentar até seu mandato de presidente. Parte da mídia trata os episódios de violência política como se houvesse dois polos de violência, quando na realidade, um lado – o campo progressista – pratica a disputa política, enquanto o outro, a direita raivosa, pratica a guerra.
Ainda na semana passada, depois de ataques recentes, uma chamada da Folha de S.Paulo dizia “Episódios de violência e tensão se acumulam na pré-campanha eleitoral no Brasil”. A reportagem abordava episódios recentes, como o drone que despejou dejetos em ato de Lula em Uberlândia (MG). Ou a bomba caseira que feriu pessoas na Cinelândia, no Rio de Janeiro – também atiradas por um bolsonarista contra o público que participava de ato com Lula e Freixo. O título na internet permanece, mesmo com a matéria atualizada hoje (11), após o assassinato do guarda municipal de Foz do Iguaçu Marcelo Arruda, dirigente do PT na cidade.
No UOL, também hoje, Josias de Souza, assim intitula sua coluna: “Guerra eleitoral de 2022 tem primeiro morto! Segundo cadáver está a caminho”. Mas quem estimula e promove o armistício, a guerra e a morte? Ainda no domingo, o site Poder 360 assim noticiava o crime de Foz de Iguaçu: “Bolsonarista invade festa de petista e ambos morrem após troca de tiros”, mesmo com fartos relatos e imagens mostrando que Marcelo Arruda só atirou depois de ser alvejado pelo invasor, evitando uma possível chacina. Somente no final da tarde alterou a chamada para “Bolsonarista invade festa e atira em petista no Paraná”.
Ajustar as falas
Por sua vez, o jornalista da GloboNews André Trigueiro, respeitado por seu engajamento nas pautas ambientais, praticou o nivelamento característico desta mídia. Trigueiro – amigo do jornalista Dom Phillips – acabou sofrendo fortes reações no Twitter ao dizer que “os presidenciáveis” deveriam ajustar suas falas. “Ou os presidenciáveis ajustam seus discursos, sem darem pretexto para ações violentas de seus correligionários, ou serão responsabilizados pela inspiração que deram a gestos tresloucados (ou criminosos) que ainda podem ter lugar. A mesma beligerância que rende likes inspira crimes”, postou no Twitter.
Desse modo, o ex-deputado Jean Wyllys foi um dos que reagiu. “Desculpe, André, com todo respeito, você está sendo irresponsável ao traçar esse falsa simetria. E eu lhe desafio a apontar em qual dos discursos públicos e entrevistas de Lula aparece incentivo à violência ou algo parecido com o que faz Bolsonaro. Você não vai achar.
Ecos do bolsonarismo
Minorias em portais de grande alcance controlados pela imprensa comercial, colunistas como Leonardo Sakamato e Milly Lacombe foram vozes dissonantes e contundentes ao colocar os pingos nos is sobre o que está em jogo ao se relativizar a conduta de Bolsonaro e seus seguidores. “Enterrar a falsa simetria para que ela não nos enterre”, escreveu Milly. “Um bolsonarista entra armado em festa de aniversário de petista e, segundo testemunhas, verbalizando o nome de seu heroi (“aqui é Bolsonaro”, teria gritado o invasor), atira para matar o aniversariante que celebrava seus 50 anos cercado de motivos lulísticos: bolo, toalha, cartazes”, observa ela. “O que invadiu a festa fez arminha de verdade com a mão; o que foi alvo fazia o L para fotos.”
Já Sakamoto recupera episódios em que Bolsonaro promove a violência e o extermínio dos adversários. Além disso, em outro post, realiza um minucioso levantamento das postagens do assassino, agente penitenciário bolsonarista Jorge Guaranho. “(As redes sociais de Guaranho) são uma grande caixa de eco dos discursos e declarações de Jair Bolsonaro.”
É antiga a cruzada da imprensa para aparentar “imparcialidade” e tentar classificar as diferenças entre Lula e Bolsonaro como mera “polarização” entre esquerda e direita. Basta lembrar editorial do Estadão às vésperas da eleição de 2018, em que chamava de “difícil escolha” a opção entre Bolsonaro e Fernando Haddad (PT).
Por mais ultraliberal que seja, ao Estadão não se pode atribuir desinformação. De um lado, um ex-militar fracassado, parlamentar de sete mandatos marcados por “rachadinhas” e apologia à tortura , ao machismo e às armas. De outro, um ex-ministro da Educação que comandou a maior era de expansão de vagas no ensino superior público do país. Inclusive de quem se possa discordar ideologicamente. Mas cuja conduta democrática, agregadora e republicana não se pode negar.
Naturalização da indecência
Como define Milly Lacombe, a “falsa simetria” nos trouxe até aqui. “Não era, afinal, uma escolha difícil. Bolsonaro nunca foi candidato legítimo. Legitimá-lo em nome de um antipetismo doentio e covarde custou a vida de muitos – e custará outras. A falsa simetria está nos matando. Passou da hora de assumirmos posição a favor da vida, da democracia, de alguma mínima ideia de decência e de futuro.”
Ou a imprensa chamada “grande” se converte ao republicanismo de fato, e conduz seu jornalismo crítico à defesa da democracia e da paz, ou se tornará mais uma vez cúmplice do golpe pretendido por Bolsnaro. Foi assim em 1964, como foi em 2016, com sua continuidade em 2018.
Desta vez, ante um governo tão corrupto quanto fascista, não há malabarismos diários que façam milagres. Nem mesmo em nome da defesa de política econômica concentradora, destruidora e desumana.
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Foto: Reprodução/Medium