A partir do cenário atual, economista olha para a experiência do período mais agudo da pandemia e aponta caminhos para a superação de crises econômicas, sociais e ambientais
Por: João Vitor Santos, em IHU
Há quem acredite que a pandemia já passou. Não, está errado, não passou. Também há quem acredite que estamos em recuperação econômica. Nesse caso, pode não haver erro, mas a pergunta que fica é: em recuperação para quem? “Todos os indicadores mostram uma recuperação em relação ao primeiro ano da pandemia, mas ainda abaixo do período anterior a ela, que foi de baixa atividade econômica”, alerta o economista Fabiano Dalto, em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Para ele, quando se fala em emprego, o quadro é ainda pior. “Como resultado direto da reforma trabalhista, o que se vê é uma extrema precarização desses novos postos de trabalho. Dessa forma, ainda que o número de empregados tenha crescido quase 11% em um ano, cresceu o emprego informal mais do que o formal”, analisa.
Fato é que a experiência da pandemia – e as crises que ganharam peso a partir dela – não deixa ninguém passar ileso. No aspecto econômico e social, Dalto observa uma lição central. “O ensinamento de longo prazo que eu gostaria que fosse tirado desses últimos três anos é de que o governo federal não tem restrições financeiras para gastar”, aponta. Assim, o desafio que fica é “reconfigurar o Estado para ser o promotor da prosperidade compartilhada. Isso significa usar todos os instrumentos que o Estado tem a sua disposição para solucionar os grandes problemas nacionais”.
Como problema nacionais, o economista aponta situações bem concreta que se materializam em fome, desemprego, perda de poder de compra etc. Por isso, considera que não se pode perder de vista que, mesmo diante de medidas que possam ser eleitoreiras, há gente que precisa comer. “O efeito prático para os beneficiários dos programas de transferência de renda do governo será, em muitos casos, tirá-los da fome. Para essas pessoas, o efeito de longo prazo é a própria existência”, observa. Ainda assim, reconhece que é preciso ter no horizonte os efeitos desses programas no longo prazo. O que, em hipótese alguma, pode ser confundido com ideias como controle de gastos e responsabilidade fiscal. E por isso é taxativo ao apontar: “o próximo governo deveria simplesmente ignorar assessores neoliberais e colocar em prática um plano ousado de prosperidade compartilhada, na qual os trabalhadores tenham emprego garantido e serviços públicos universais de qualidade”.
Isso significa, segundo Dalto, que talvez essa PEC que concede auxílio não seja assim um suicídio como se tem dito, mas, quem sabe, um horizonte ainda a ser desvelado. “É preciso responder imediatamente às demandas sociais mais objetivas de emprego, renda, comida, educação, saúde e moradia”, dispara. E completa: “devemos reimaginar nosso modelo de produção econômica buscando transformar nossa estrutura produtiva numa de baixo carbono e ambientalmente sustentável. Finalmente, é preciso reorganizar o Estado no sentido de torná-lo mais permeável às demandas sociais e mais protegido dos interesses dos capitalistas incumbentes”.
Fabiano Dalto possui graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Espírito Santo, mestrado em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Federal do Paraná e doutorado pela Universidade de Hertfordshire, na Inglaterra. Atualmente, é professor da Universidade Federal do Paraná. Entre os seus livros publicados estão Juros e dívida pública no Brasil: mitos e verdades (Rio de Janeiro: FISENGE, 2019) e, juntamente com outros autores, Teoria Monetária Moderna: a chave para uma economia a serviço das pessoas (Fortaleza: Nova Civilização, 2020).
Confira a entrevista.
IHU – Como chegamos ao atual cenário econômico nacional, tendo em perspectiva especialmente o empobrecimento da população?
Fabiano Dalto – Primeiro, precisamos relembrar as causas da redução de pobreza e da desigualdade num período não tão distante, entre 2003 e 2014. Nesse período, a pobreza caiu de mais de 60 milhões de brasileiros (cerca de 35% da população) em 2003 para menos de 26 milhões de pessoas (cerca de 13% da população) em 2014. Os principais fatores explicativos dessa significativa redução foram o aumento do emprego, dos salários reais, as transferências de renda (benefícios previdenciários e bolsa família, principalmente) e crescimento dos investimentos públicos em bens públicos como educação e saúde, que implicam também ganhos de renda dos mais pobres.
Está claro que todos os fatores que vinham reduzindo a pobreza e a desigualdade no país na década entre 2003 e 2014 foram desmontados a partir de 2015. Todas as reformas sob orientação da ideologia neoliberal, que ganham força a partir de 2015, tinham como objetivo justamente reverter o processo de redução das desigualdades e, por consequência, da pobreza pelo qual o país passava. Assim, a implantação do teto de gastos, seguido das reformas trabalhista e da previdência, atingiu o coração dos instrumentos de redução da desigualdade e da pobreza.
Os baixos níveis de gasto público que observamos desde 2015 (com exceção do período da pandemia) juntamente com o aumento do desemprego e da redução dos salários reais formaram a tempestade perfeita que nos fez retroagir a patamares selvagens de miséria e desigualdade. Não é por outra razão que voltamos a ter mais de 60 milhões de pessoas com insegurança alimentar no país.
IHU – Qual sua leitura sobre os índices que indicam aumento de atividade econômica e até geração de empregos? Estamos realmente numa recuperação econômica?
Fabiano Dalto – É preciso qualificar a “recuperação econômica” capturada pelas estatísticas. Todos os indicadores mostram uma recuperação em relação ao primeiro ano da pandemia, mas ainda abaixo do período anterior a ela, que foi de baixa atividade econômica. Por exemplo, ainda que tenha se recuperado em relação a 2020, a formação bruta de capital fixo está em nível ainda inferior a 2008. O mesmo vale para a taxa de investimento e para o nível do produto que está ao nível de 10 anos atrás. A realidade, portanto, é que estamos estagnados há uma década.
A preocupante situação do emprego
Já a questão do emprego, mais especificamente, é a mais preocupante. Aqui também é verdade que a reabertura do comércio fez retomar os empregos do setor de serviços, que de fato é grande empregador. Por outro lado, como resultado direto da reforma trabalhista, o que se vê é uma extrema precarização desses novos postos de trabalho. Dessa forma, ainda que o número de empregados tenha crescido quase 11% em um ano, cresceu o emprego informal mais do que o formal.
Ademais, ainda temos mais de 25 milhões de trabalhadores subutilizados (desocupados, trabalhando menos horas do que gostariam ou desalentados). O resultado é que o rendimento real do trabalho caiu 7% no primeiro trimestre de 2022 em relação ao primeiro trimestre de 2021, mesmo no período considerado de recuperação do emprego.
Tudo considerado, parece-me evidente que a assim chamada “recuperação econômica” é marcada, na verdade, por uma insuportável precarização das condições de vida da maior parte da população.
IHU – Qual o real peso do cenário global na crise econômica brasileira, aquela que diminui o poder de compra dos mais pobres e compromete a segurança alimentar?
Fabiano Dalto – Não há dúvidas de que o cenário conturbado internacional, seja por conta da pandemia, da guerra na Europa e da hostilidade contra a China, e o quadro de lenta recuperação econômica global implicam em um ambiente desfavorável para o Brasil e todos os demais países. Nesse contexto, temos a infeliz circunstância de ter um governo completamente alijado e isolado das negociações internacionais.
Para além desse contexto geopolítico internacional e político nacional, a crise econômica brasileira corrente é uma construção primordialmente nacional. Como assinalado anteriormente, nossa crise econômica dos anos anteriores à pandemia, especialmente no que concerne à piora das condições de renda e emprego dos trabalhadores, esteve diretamente relacionada com as reformas neoliberais postas em ação especialmente a partir de 2015.
Energia e alimentação sufocam o poder de compra
Na atualidade, além dos efeitos inevitáveis da pandemia e do cenário internacional altamente conturbado, a queda do poder de compra dos mais pobres e a retomada da insegurança alimentar em níveis assustadores também decorrem de políticas domésticas. Além dos graves problemas de desemprego e de queda da renda dos trabalhadores, resultantes das reformas neoliberais, os dois setores mais importantes que têm afetado o poder de compra dos trabalhadores são a energia e a alimentação.
No caso da energia, em 2016, a Petrobras passou a adotar a Política de Paridade de Importação – PPI, que simplesmente transfere todos os choques de preços do petróleo internacional para o mercado interno. O aumento dos combustíveis tem efeitos generalizados no sistema de preços domésticos. A simples suspensão da PPI pelo governo protegeria o mercado doméstico dos choques de preços internacionais nessa área e o poder de compra dos trabalhadores.
No caso dos alimentos, o descontrole de preços foi engendrado pela política deliberada de redução dos estoques reguladores. Da mesma forma que no caso dos combustíveis, o preço dos alimentos passou a ser determinado exclusivamente pelos retornos relativos entre o mercado interno e externo. Além do aumento de custos de produção determinados por insumos importados, os preços de alimentos flutuam fortemente relacionados também à taxa de câmbio e preços internacionais. Sem a política de estoques reguladores e de incentivos de produção de alimentos para o mercado doméstico, especialmente os produzidos pela agricultura familiar, o poder de compra dos trabalhadores tem sido fortemente deteriorado pelo aumento de preços dos alimentos, que passaram a ser exclusivamente determinados pelos oligopólios do setor.
IHU – Auxílio Brasil, subsídios de combustíveis, a “PEC das benesses” (ou PEC Kamikaze). Qual o efeito prático dessas medidas na vida das pessoas e quais as consequências dessas ações no longo prazo?
Fabiano Dalto – O efeito prático para os beneficiários dos programas de transferência de renda do governo será, em muitos casos, tirá-los da fome. Para essas pessoas, o efeito de longo prazo é a própria existência. Entretanto, é evidente que, dado o tamanho da crise pela qual passamos, esses benefícios são insuficientes. Deveriam ser maiores. Mas é inegável que são benefícios necessários no ambiente de calamidade que a política econômica neoliberal seguida pela pandemia nos colocou.
Já o ensinamento de longo prazo que eu gostaria que fosse tirado desses últimos três anos é de que o governo federal não tem restrições financeiras para gastar. Tanto os atuais benefícios como os que foram concedidos durante a pandemia representaram transferências extraordinárias do governo federal para trabalhadores, empresas e governos subnacionais sem qualquer reforma tributária – aliás, no ano da pandemia a arrecadação tributária despencou – nem recusa de financiamento pelos carregadores de dívida pública. Nem a reforma tributária foi necessária para financiar os gastos do governo, nem o mercado financeiro recusou financiá-lo, porque o governo simplesmente não depende de tributos nem de ser financiado pelo sistema financeiro para gastar. O governo simplesmente gasta desde que autorizado pelo Congresso Nacional a fazê-lo. Isso significa, também, que não existe qualquer “incerteza fiscal” relacionada com as transferências aprovadas pelo Congresso na última semana.
Essa, a meu ver, deveria ser a lição de longo prazo a ser tirada dos episódios recentes. A partir dessa lição, o próximo governo deveria simplesmente ignorar assessores neoliberais e colocar em prática um plano ousado de prosperidade compartilhada, na qual os trabalhadores tenham emprego garantido e serviços públicos universais de qualidade. Espero que a PEC dos benefícios abra um novo horizonte de políticas públicas para o país.
IHU – Nos últimos tempos, dada a emergência econômica gerada desde a pandemia, temos visto um protagonismo da Caixa nos programas de transferência de renda. O que está por trás dessa ação do governo? Sucumbimos a lógicas da financeirização das políticas públicas?
Fabiano Dalto – A Caixa sempre esteve à frente dos programas de transferência de renda do governo. Ela é um braço do governo justamente para agilizar as transferências. Isso não tem nada que ver com “financeirização”. Financeirização é um processo muito amplo em que as empresas obtêm rendas com práticas financeiras variadas – especulação com títulos de propriedade e ativos financeiros variados – ao invés de obtê-las com investimentos, produção e venda desses produtos.
IHU – Quais os desafios para concebermos políticas públicas sem cair nas armadilhas da financeirização? Aliás, isso é possível e pode ser visto em nosso horizonte?
Fabiano Dalto – O grande desafio é reconfigurar o Estado para ser o promotor da prosperidade compartilhada. Isso significa usar todos os instrumentos que o Estado tem a sua disposição para solucionar os grandes problemas nacionais – desemprego, desigualdade, fome, degradação ambiental, serviços públicos e infraestrutura social. Ao redirecionarmos o Estado para enfrentar os obstáculos reais que nos impedem de ser uma sociedade mais justa, igualitária, menos violenta etc., já estaremos dando o passo decisivo para superar as armadilhas da financeirização.
A maior e mais eficaz dessas armadilhas é a ideia, hoje completamente desmoralizada, de que o Estado depende do sistema financeiro para realizar seus gastos. Uma vez livres dessa armadilha, os Estados poderão reimaginar e reconfigurar o funcionamento da economia segundo os princípios da prosperidade compartilhada.
IHU – Nessa mesma linha da financeirização, anda a passos largos a tramitação do PL 4188 de 2021, que prevê a criação de Instituições Gestoras de Garantia. No que consiste esse projeto e quais os riscos se for aprovado?
Fabiano Dalto – Esse é um projeto terrivelmente perigoso engendrado pelos interesses financeiros mais predatórios. O PL 4188, de forma resumida, cria incentivos para a concessão irresponsável de créditos por parte dos bancos. Pelo PL 4188, as pessoas poderão tomar crédito dando como garantia suas casas, mesmo que seja a única casa da família – o que era protegido pela impenhorabilidade de bem de família, e os bancos poderão tomar a casa e vendê-la em caso de inadimplência, mesmo de uma parte da dívida tomada.
Além de poder perder a única casa em caso de inadimplência, o devedor ainda ficará responsável pelo saldo da dívida, se houver algum, mesmo após a entrega da casa. O PL 4188 cria incentivos ao empréstimo irresponsável pelos bancos porque eles se sentirão mais protegidos em conceder qualquer empréstimo, seja qual for a capacidade corrente de pagamento do mutuário, uma vez que terão como garantia um bem que valerá muitas vezes o crédito concedido.
Experiência de 2008
O Brasil passou sem grandes traumas pela crise de 2008, que começou no mercado imobiliário e se espalhou para todo o sistema financeiro justamente por causa de concessões predatórias de crédito. Nossas instituições financeiras públicas foram usadas para dar suporte ao crescimento econômico e o sistema privado foi regulado com suficiente rigor para impedir de reproduzir domesticamente, pelo menos de forma generalizada, o movimento especulativo que ocorria nos mercados financeiros globais. O PL 4188 anda no sentido contrário do que havia nos protegido naquele momento e institucionaliza práticas financeiras predatórias contra o interesse de uma economia da população.
IHU – Que lições a pandemia de Covid-19 nos deixa acerca do gasto público? E nós, no Brasil, assimilamos essa lição?
Fabiano Dalto – Como eu disse anteriormente, a grande lição deixada pela pandemia, realmente portadora do futuro, é reconhecer que o gasto público não possui restrição financeira em economias como a brasileira. Uma segunda lição deixada pela pandemia é que precisamos nos preparar melhor para as próximas catástrofes sanitárias e econômicas que devem ocorrer no futuro. Precisamos utilizar nossa ilimitada capacidade financeira de gasto público para criar uma estrutura de saúde apropriada para lidar com uma catástrofe sanitária como a da pandemia; devemos criar um sistema de emprego público que não deixe pessoas desempregadas, desalentadas e desconectadas dos fluxos de produção social; precisamos criar infraestruturas de transportes públicos, de comunicações, de educação públicas para prover a população com elevado grau de conectividade e capacidade de resolução de novos problemas. Devemos prover casas para todas as pessoas sem teto e retirar todas elas das ruas e provê-las com emprego e as amenidades de uma sociedade civilizada. Finalmente, devemos transformar nossa economia para se tornar ambientalmente sustentável.
Tudo isso se tornou possível na medida em que aprendemos que o governo não tem limites financeiros para realizar os investimentos necessários para prover todos esses bens civilizatórios para suas populações. A pandemia mostrou que enfrentar os problemas reais que ameaçam a vida na Terra deixou de ser um problema financeiro e revelou ser um problema de conhecimento e de disponibilidade de infraestrutura material para solucioná-los. Precisamos, portanto, construir nossa infraestrutura física e social para estarmos mais preparados para a próxima crise.
IHU – O desenvolvimento econômico e social no Brasil, a partir de 2023, passa essencialmente pelo quê?
Fabiano Dalto – Passa, primeiro e primordialmente, por abandonar o credo neoliberal de que o governo brasileiro possui restrição financeira. Todas as reformas recentes foram feitas em nome de uma suposta falta de recursos do Estado para prover bens públicos à população: desde a criação do teto de gastos, passando pela reforma previdenciária e as privatizações generalizadas; em todas elas está a desculpa, infundada, de falta de dinheiro do Estado.
Em segundo lugar, é preciso responder imediatamente às demandas sociais mais objetivas de emprego, renda, comida, educação, saúde e moradia. Em terceiro lugar, devemos reimaginar nosso modelo de produção econômica buscando transformar nossa estrutura produtiva numa de baixo carbono e ambientalmente sustentável. Finalmente, é preciso reorganizar o Estado no sentido de torná-lo mais permeável às demandas sociais e mais protegido dos interesses dos capitalistas incumbentes.
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Foto: Pixabay