Coordenadora do OVIR, recém-criado na Unifesp, explica: projeto visa coletar dados e fornecer subsídios a políticas antirracistas. Criação é um dos resultados da presença negra nas universidades – e de suas inquietações e ativismos
Diana Mendes Machado da Silva em entrevista a Tatiana Carlotti, em Outras Palavras
Referência em Direitos Humanos, o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) da Unifesp, onde se deram as pesquisas de identificação das ossadas de Perus, acaba de lançar o Observatório da Violência Racial, o OVIR, abrindo uma frente, com a devida prioridade à questão racial e às implicações do racismo, nos estudos sobre as violações cometidas pelo Estado contra a sociedade civil. Leia o primeiro boletim do Observatório aqui.
Com foco no estado de São Paulo, o OVIR irá se debruçar sobre o genocídio secular e em curso no Brasil, como atestam os números do 16º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Em 2020, informa o documento, a população negra foi alvo de 84,1% das mortes cometidas por policiais, de 77,9% das mortes violentas intencionais e de 62% dos feminicídios.
“E o que é isso se não um genocídio?”, questionava Abdias do Nascimento, “o primeiro a falar em genocídio negro” e “em plena ditadura militar”, destaca a historiadora Diana Mendes Machado da Silva, coordenadora do OVIR. Em entrevista, ela conta sobre as expectativas do Observatório que acontece em meio a confluência de dois movimentos importantes na universidade pública: a demanda das próprias pesquisadoras e pesquisadores negros, que impactam a universidade com suas pautas e vivências; e a postura da própria Unifesp, que responde a essas demandas, oferecendo à sociedade instrumentos de luta junto ao poder público.
Durante o lançamento do OVIR, você mencionou que ele é uma demanda dos próprios pesquisadores para que o CAAF abrisse uma frente de abordagem específica para a questão racial na pesquisa em Direitos Humanos. Nessa perspectiva, podemos pensar o OVIR como um dos impactos da democratização ao acesso ao ensino superior durante os governos petistas?
Sim. A face visível da democratização do acesso ao ensino superior é termos, hoje, uma geração de meninas e meninos negros, de 18, 20, 25 anos, entrando na universidade em uma proporção muito maior do que até então. Sua entrada e suas demandas impactam a universidade quando, por exemplo, os estudantes não se reconhecem no que está sendo dito, ou quando rechaçam uma perspectiva europeia, abstrata, e distante de uma perspectiva brasileira para explicar nossa realidade. São estudantes que querem ler os cientistas negros, as teóricas políticas negras.
É um movimento sem volta e em rede porque eles se conectam, vão atrás dos movimentos sociais, descobrem temas, autores, abordagens sobre os quais ativistas vêm falando há décadas. Basta ver a questão do genocídio. O Abdias do Nascimento foi o primeiro a tocar no tema, ele publicou O Genocídio do Negro Brasileiro em 1978, coincidindo com a organização do Movimento Negro Unificado, e tudo isso durante a ditadura. Foi preciso quase duas gerações para que essas ideias impactassem a universidade como vem acontecendo.
O ingresso dessa geração de estudantes e pesquisadores (as) negros (as) impacta também o cotidiano na universidade que precisa se transformar para recebê-los. Afinal, é preciso acolhê-los sem racismo, o que significa não olhar esse estudante de “cima” para “baixo”, não perguntar se ele não dormiu de noite, caso ele piscar no meio da aula, porque trabalhou o dia todo. Esse tipo de humilhação comum em sala de aula.
A universidade se transforma porque o público agora deixa de ser apenas a classe média de Alto de Pinheiros. Hoje há mais alunos que tomam dois, três ônibus para chegar à faculdade. Alunos que vem dos bairros extremos da Zona Leste ou da Zona Sul, como Cidade Tiradentes ou Jardim Ângela. E a pergunta é que vidas são essas?
Pelo embate, e pelo encontro, a universidade vem sendo obrigada a compreender que precisa sim garantir e ampliar moradia estudantil, ofertar alimentação e bolsas de estudos, porque a estudante negra e o estudante negro querem estudar, mas também precisam se manter. Nesse sentido, as três dimensões da universidade, isto é, o ensino, a pesquisa e a extensão precisam se adequar a essa população para mantê-la na universidade.
O OVIR é, portanto, um exemplo de reconhecimento dessa demanda, hoje completamente difundida na universidade e, também, fora dela. Algumas instituições, como a Unifesp, acolheram essa demanda, outras ainda não. E o OVIR nasce em meio a uma política muito interessante de observatórios da universidade, e em diferentes áreas. A Unifesp tem observatório sobre as Forças Armadas e Defesa no Brasil, sobre Educação, sobre Remição Penal.
Nós, por exemplo, estamos alocados no CAAF, onde também está o Observatório de Proteção dos Direitos Humanos. Além disso, o CAAF realiza pesquisas sobre a ação policial nos Crimes de Maio e no Baile da DZ7, em Paraisópolis (1 Dez 2019). Aliás, vale contar que o Centro foi criado para desenvolver os trabalhos de identificação das ossadas da Vala Clandestina de Perus. Durante o governo da Erundina (1989-1992) foram descobertas 1.049 ossadas numa vala comum no Cemitério Dom Bosco, com fortes indícios dali estarem os restos mortais de desaparecidos políticos durante a ditadura militar.
Essas ossadas passaram pela USP, UNICAMP, mas foi na Unifesp que a pesquisa avançou e, em 2018, foram identificados os restos mortais de mais dois desaparecidos políticos, Dimas Casemiro e Aluísio Palhano. Com esse trabalho, o Centro se consolidou como referência em Direitos Humanos. Há inclusive um podcast chamado 1.049 que traz uma radiografia da violência do Estado brasileiro, vocês podem acessar pelo Spotify (ouça aqui) ou pelo Canal do YouTube do CAAF.
Nós falamos sobre as transformações na universidade a partir da entrada dessa nova geração de pesquisadoras e pesquisadores negros. Isso se reflete fora da universidade? Você enxerga alguma mudança na compreensão da sociedade civil, em particular sobre a questão do genocídio promovido pelo Estado?
Algumas pessoas defendem o impacto simbólico do assassinato do George Floyd, em Minneapolis (25 Maio 2020), pelo policial branco Derek Chauvin que ajoelhou no seu pescoço. Lembrem-se que meses depois, em novembro daquele mesmo ano, João Alberto Silveira Freitas, também negro, foi espancado até a morte por dois seguranças brancos do Carrefour em Porto Alegre, com um interesse e espaço de mídia infinitamente menor que o de George Flyod.
De qualquer forma, por conta do assassinato nos Estados Unidos, houve um aumento da comoção pública diante da letalidade da ação policial contra a população negra. E ao observar os números, em documentos como o Atlas da Violência ou o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, nota-se que o Estado brasileiro se estruturou e organizou suas forças policiais para eliminar o elemento perigoso, ou seja, o negro, entendido como uma ameaça.
Durante muito tempo veiculou-se que a violência policial no Brasil estava sobretudo associada à defesa da propriedade. Agora, porém, temos mais elementos para afirmar que a violência policial se volta à eliminação de um específico grupo da população. Grosso modo, genocídio é exterminar não apenas os corpos, mas toda a dinâmica social relacionada a esses corpos, sua cultura, seu modo de vida.
É o que os movimentos negros alertam há décadas. Estamos falando de uma corporação que atua contra um determinado grupo da população brasileira que representa, aliás, a maioria da população, 56% se autodeclaram negros, segundo o IBGE. E estamos diante de uma violência que começa com a criminalização da população negra para, em seguida, justificar seu extermínio.
Veja o caso da Chacina na Penha (em 22 de maio deste ano) que deixou 25 pessoas mortas e seis feridas na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro. Agentes do Batalhão de Operações Especiais (BOPE) e da Polícia Rodoviária Federal (PRF) entraram na comunidade sem mandado de prisão, de maneira violenta e simplesmente mataram as pessoas.
Esses 25 suspeitos não foram para a delegacia. Não passaram por nenhuma das fases de apuração, julgamento ou condenação que caracterizam o Estado de Direito – onde ninguém pode ser condenado sem que se prove a sua responsabilidade. Não tiveram nenhuma chance porque, ao buscar três pessoas acusadas de serem traficantes, o BOPE e a PFR mataram todos.
E não existe pena de morte no Brasil…
Profa. Diana, o racismo opera também uma violência econômica. Como racismo e neoliberalismo se relacionam?
Pesquisas apontam como o capitalismo se desenvolve, e desde o início, a partir da exploração da população negra. Não podemos esquecer que o trabalho compulsório gera valor sem salário. Há também vertentes teóricas, alinhadas com os estudos pós-colonialistas, que pensam a Europa sob a ótica da agressão imperialista.
Nesse contexto, cria-se essa noção de raça. E a partir de categorias raciais, criadas pelos brancos, você hierarquia, classifica e organiza o trabalho, decidindo quem irá acessar determinadas oportunidades ou não, quem fica no topo da pirâmide ou na base sustentando os demais. Na prática, desvalorizar as pessoas com o argumento da cor é garantir cotas para brancos. Cotas para brancos nas universidades, cotas para brancos nos melhores empregos.
Essa dinâmica, que também vem sendo discutida, revela como o racismo é funcional, de um ponto de vista econômico, para garantir o acesso às atividades mais valorizadas da cadeia produtiva para uma minoria branca. Ou seja, a política de extermínio da população negra se conecta com interesses econômicos e políticos. O OVIR pretende atuar contra isso.
Quais os próximos passos do OVIR? E como podemos acompanhá-lo daqui para frente?
Nós vamos coletar dados e oferecê-los, com elaboração analítica, à sociedade civil para que ela possa se organizar em torno de pautas como o fim do genocídio negro; e também para alimentar e inspirar políticas públicas.
O que nós, como um observatório, pretendemos, é oferecer conhecimento para que a sociedade interfira na realidade. E estamos precisando de muito apoio e financiamento para as nossas atividades, afinal, são tempos duros. Mas, nós somos uma equipe perseverante e composta principalmente por mulheres negras (sete no total) e dois homens, todas e todos em diferentes momentos da vida acadêmica, da graduação ao pós-doutorado.
Nossa perspectiva é trabalhar descortinando o genocídio mas também a resistência negra, cientes de que na diáspora negra há uma potência muito grande e transformadora, que pode ser entrevista em diversas formas. Para tanto, vamos dar início, já em agosto, a um grupo de estudos, com frequência quinzenal. A ideia é acolher desde pessoas apenas interessadas na temática até especialistas (para informações, entre em contato: [email protected])
Além disso, nós vamos oferecer pesquisas sobre a violência perpetrada pelo Estado e, ao mesmo tempo, combater a desumanização da população negra, trabalhando as histórias de vida dos que foram vítimas da violência do Estado, gente com nome e sobrenome, que morava na rua tal, que ia com os filhos ao futebol, que gostava de ler, que possuía sonhos. Nosso desejo é o de afirmar a humanidade e a dignidade das pessoas que têm sido tratadas apenas como números e estatísticas anônimas. E o faremos com força na universidade pública.