A luta da mulher negra e a resistência da agricultura camponesa contra a fome

Lutemos, com a força guerreira de Tereza de Benguela e dos povos do campo, por terra e reforma agrária

Por Kelli Mafort, em Brasil de Fato

A atualização dos dados da fome em 2022, organizada pela Rede Penssan – Rede Brasileira de Pesquisa Nacional em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, no II Inquérito Nacional de Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia, tem sido uma fonte importante para entendermos o tamanho do buraco da fome e suas consequências desastrosas na vida das pessoas e também na economia do país.

Atualmente, 33,1 milhões de pessoas passam fome, 3 em cada 10 famílias estão em insegurança alimentar, com os casos mais graves no Norte e Nordeste, e 12% da população brasileira não tem acesso regular a água para consumo. 

Não podemos admitir um agronegócio que vai bem à custa do aumento da fome do seu povo. Sim, o agronegócio gera a fome! Não se trata somente da indiferença de empresários e corporações ricas que acumulam ganhos e não se importam com a desigualdade social, é muito mais grave que isso.

Agronegócio é fome, entenda o porquê

Motivo 1: O agronegócio não é tech, sua produtividade se dá mais por ampliação de área plantada do que por investimento em ciência e tecnologia. Sua produção de commodities avança sobre áreas de produção de alimentos de assentamentos e da agricultura familiar, mas também sobre áreas desmatadas, e em geral, griladas, pois essa tem sido uma forma de demarcação territorial das empresas. Avançam sobre territórios indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, causando violência contra os povos, destruição ambiental e saque de bens naturais. 

Motivo 2: Em matéria de produção de alimentos, o agronegócio é nada. O Censo Agropecuário do IBGE de 2017 já provou que 70% da produção de alimentos vem da agricultura familiar e camponesa. O agronegócio não produz comida! Produz commoditie para exportação. Mas, mesmo sem produzir comida, ele especula com a comida que não produz, pois controla o comércio de alimentos. Quando o dólar está alto, pega a comida que sai do chão brasileiro e manda para fora, para faturar em dólares, deixando um rastro galopante de inflação de alimentos. Aí o governo golpista de Bolsonaro dá uma força, desmantelando os estoques públicos e a Conab, que poderiam ajudar a regular o mercado. 

Motivo 3: O agronegócio nos envenena, causa doenças que podem nos matar. Somos um dos principais países de desova de venenos, verdadeiro recordista no consumo de agrotóxicos. As empresas produtoras de venenos, como Bayer e Syngenta, vendem aqui o que é proibido ou banido nos seus países sede há décadas. No Senado tem Pacote do Veneno para ser aprovado. A contaminação e a matança do agro vão piorar. Tem veneno na água, na comida, no solo e no ar. Além disso, o agro padroniza o que comemos, nos empurrando cada vez mais produtos industrializados, ultraprocessados, cheios de sódio, açúcares e muitos agentes causadores de doenças. A maior parte dos venenos é consumida nas lavouras das commodities, mas por meio da integração e do arrendamento, cada vez mais as empresas do agro exercem pressão sobre a agricultura familiar, o que é prontamente seguido pela política de crédito dos bancos. 

O peso da desigualdade sobre os ombros das mulheres negras

As mulheres comandam 45% dos lares brasileiros segundo o IBGE, e na esmagadora maioria, são mães solos, as únicas responsáveis por suprir as necessidades de famílias inteiras. Quando falta comida, os conflitos tendem a aumentar, e é sobre as mulheres que recaem as pressões por mediar os conflitos da panela vazia. 

A fome tem gênero e raça. O II Inquérito da Rede Penssan mostrou que 6 a cada 10 lares comandados por mulheres convivem com a insegurança alimentar e que 65% dos lares comandados por pessoas pretas e pardas estão na mesma situação. A mulher negra está na base da exploração dessa sociedade extremamente desigual e a fome é uma das manifestações do encontro explosivo entre machismo e racismo. 

Por isso a importância de marcar com denúncia e luta o 25 de julho, que é o Dia da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha. A data rememora 30 anos do 1º Encontro de Mulheres Afro-latino-americana e caribenha, ocorrido em 1992 em Santo Domingo, na República Dominicana. No Brasil, também é Dia de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, instituído pela Lei nº 12.987/14. Tereza de Benguela liderou o quilombo de Quariterê por duas décadas no século 18, onde hoje é o estado do Mato Grosso. 

Enfrentar a fome é frear o modelo do agronegócio e fortalecer a agricultura familiar e camponesa

Dia 25 de julho é também Dia Internacional da Agricultura Familiar, data assumida e oficializada pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) em 2014.

A agricultura familiar e camponesa é a única capaz de acabar com a fome e a insegurança alimentar no país e para isso precisa de políticas públicas que fortaleçam a produção de comida de verdade, sem venenos e ultraprocessados.

O Brasil é referência mundial no combate à fome e desnutrição, mas hoje convivemos com a fome até mesmo no campo, onde ela se apresenta de forma ainda mais severa que nas cidades. Ainda segundo a Rede Penssam, 21,8% dos domicílios no campo estão em insegurança alimentar grave, enquanto no meio urbano essa situação atinge 15% dos lares. 

Por isso 25 de julho é dia de luta histórica em tempo real, esse tempo do buraco da fome em meio ao privilégio de classe do agronegócio. Lutemos, com a força guerreira de Tereza de Benguela e dos povos do campo e sua luta rebelde por terra e reforma agrária popular. Que a agricultura de verdade alimente o mundo, através da ciência da abundância e fertilidade que vem da cooperação, da agroecologia e da agrofloresta.

*Kelli Mafort é assentada da Reforma Agrária e dirigente nacional do MST em São Paulo.
**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

A mulher negra está na base da exploração dessa sociedade extremamente desigual e a fome é uma das manifestações do encontro explosivo entre machismo e racismo – Daniela Moura / Mídia Ninja

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