Nesta entrevista a Teoria e Debate, o sociólogo brasileiro Michael Löwy fala sobre a proposta ecossocialista, a catástrofe ambiental que ameaça a humanidade. Para Löwy o Brasil terá a oportunidade com a eleição presidencial de fechar esses parênteses trágico na história de um governo neofascista, ecocida. Propõe que o país siga um modelo de desenvolvimento com prioridades que levem em consideração a maioria da população brasileira.
Löwy formou-se em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP) e desde 1969 vive em Paris, onde trabalha como diretor emérito de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS). É organizador de O Marxismo na América Latina: uma antologia de 1909 aos dias atuais. (Expressão Popular e Fundação Perseu Abramo, 5ª edição, 2016), autor de O Que é o Ecossocialismo, entre outros livros.
Para essa conversa convidamos Arlindo Rodrigues, Tica Moreno, Rogério Chaves e Carlos Henrique Árabe.
Arlindo Rodrigues é graduado em Licenciatura Plena em Ciências, mestre em Administração e doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP. Sua pesquisa doutoral foi sobre os segmentos ideológicos socioambientais com ênfase no ecossocialismo. Em 2019, concluiu pós-doutorado em Administração com o tema Gestão Hídrica: Governança dos Bens Comuns. É professor e pesquisador nas áreas de ecologia política e economia ecológica. Tica Moreno é socióloga, integra a equipe da Sempreviva Organização Feminina (SOF) e é militante da Marcha Mundial das Mulheres. Rogerio Chaves é coordenador editorial na Fundação Perseu Abramo. Carlos Henrique Árabe é diretor da Fundação Perseu Abramo e Rose Spina, editora de Teoria e Debate.
A entrevista é publicada por Teoria e Debate, 25-07-2022.
Eis a entrevista.
Rose Spina: O que é o ecossocialismo?
Michael Löwy: O ecossocialismo é uma tentativa, como o nome indica, de articular dialeticamente as principais ideias do socialismo revolucionário, em particular marxista, e os avanços práticos e teóricos da ecologia. Dizer isso já implica uma dimensão crítica. Uma crítica do socialismo não ecológico que foi dominante no século 20, tanto na versão soviética, quanto na versão socialdemocrata, e de outro lado boa parte da ecologia, os partidos verdes, por exemplo, não eram socialistas. No melhor dos casos eram socialdemocratas. Tinham a visão de que a ecologia era compatível com a chamada economia de mercado.
Então, desenvolver o projeto do ecossocialismo implica uma crítica tanto do socialismo não ecológico quanto da ecologia não socialista ou pró-capitalista. Essa é a dimensão polêmica, mas também tem uma dimensão de diálogo. Queremos dialogar com o conjunto da esquerda socialista, que ainda não é ecológica, que ainda não leva a ecologia à sério, ou que considera a ecologia um tema entre tantos outros, não essencial, e queremos dialogar com os companheiros de vários movimentos ecológicos, partidos verdes etc. para convencê-los de que para levar a ecologia a sério é preciso enfrentar o capitalismo.
O ecossocialismo é uma teoria que tem uma história que começa na Europa, com precursores como André Gorz, na França, Frieder Otto Wolf, na Alemanha, Manuel Sacristán, Espanha, e nos Estados Unidos com Joel Kovel, e aos poucos vai se constituindo num corpo teórico, uma rede de socialistas vai se formando, manifestos são publicados. Um deles lançado no Fórum Social Mundial em Belém (PA), em 2009, teve impacto. Então, é uma formulação teórico-política, mas também é um movimento prático de ação. É um projeto de luta socialista e ecológica contra o capitalismo.
Por que não basta falar só em socialismo? Hoje em dia a questão ecológica é central do ponto de vista político e será mais ainda nos próximos anos porque estamos avançando de forma crescente para uma catástrofe sem precedentes, mudança climática, aquecimento global e, de maneira geral, a crise ecológica. Há uma ameaça para todas as formas de vida no planeta e o responsável é o sistema capitalista. Essa é outra premissa fundamental do ecossocialista. O responsável pela catástrofe ecológica que nos ameaça e que já começou de fato é o sistema capitalista global. É só ver os jornais, incêndios de florestas, enchentes, furações, temperaturas atingindo marcas recordes, 50°C, pelo mundo afora.
Não podemos falar do capitalismo, discutir socialismo, sem falar da ecologia. O capitalismo sempre foi um sistema brutal, de exploração, de dominação, de guerra. Além disso, hoje ele é uma ameaça para a própria existência da humanidade. Há uma nova compreensão de que o capitalismo é o monstro que nos ameaça diretamente. Precisamos destruí-lo antes que seja tarde demais. Naomi Klein lançou um belo livro, Isso Muda Tudo. A questão ecológica, a mudança climática muda tudo para nós.
Arlindo Rodrigues: Os segmentos socioecológicos brasileiros estão construindo a rede brasileira de ecossocialistas. Há partidos como PT, PSol, Rede, PSB, e movimentos sociais. Como essa rede pode contribuir para a construção de uma outra lógica de sociedade brasileira?
Michael Löwy: Em primeiro lugar quero lembrar que já houve uma tentativa de formar uma rede brasileira ecossocialista no início dos anos 2000, que fez algumas coisas interessantes, mas acabou se dissolvendo. É muito importante essa reorganização. Existe a Rede Ecossocialista Global. Mas o Brasil é o único país do mundo que tem uma rede de ecossocialistas.
Essa rede pode ter papel muito importante. Em primeiro lugar, dar conhecimento às ideias do ecossocialismo no Brasil. É importante divulgar mais amplamente, por meio de manifesto, organização de eventos e várias formas de dar popularidade ao ecossocialismo. Uma das maneiras de fazer isso num país como o Brasil, que é profundamente religioso, é utilizar a encíclica Laudato Si’, do Papa Francisco.
Obviamente o Papa não fala em ecossocialismo, mas é possível mostrar aos companheiros cristãos que a lógica do que diz o Papa vai na direção do que nós dissemos. Ele diz que o responsável pela crise ecológica, pela injustiça social, é o atual sistema econômico baseado na propriedade privada e na maximização do lucro.
Além disso, é importante os integrantes da rede ecossocialista que estão em diferentes partidos políticos convencerem seus companheiros de partido da causa ecossocialista, pois nem todos estão convencidos disso. E tão ou mais importante ainda é levar a mensagem ecossocialista para os movimentos sociais. Por exemplo, o Movimento dos Sem Terra (MST), já começa a discutir ecossocialismo. Assim como levar a nossa proposta ao movimento ecológico, de juventude, de maneira pedagógica, não agressiva. A rede não vai fazer a revolução ecossocialista, mas tem o papel importante de levar essa mensagem aos militantes dos partidos, aos movimentos sociais e à população brasileira.
Tica Moreno: No campo do feminismo marxista há uma longa trajetória de elaboração a partir da reprodução social, olhando para o trabalho e a experiência das mulheres com a natureza e o cuidado da vida, humana e não humana. A partir daí há muitas conexões com a economia feminista e com o ecofeminismo, particularmente, o ecofeminismo materialista. Quais são as principais convergências e divergências entre o ecofeminismo materialista e o ecossocialismo?
Michael Löwy: Não vejo nenhuma divergência. Não é possível ser ecossocialista se não assumir a luta contra todas as formas de opressão, a começar pela opressão à maioria da humanidade, às mulheres. Então, o ecossocialismo tem de assumir necessariamente o feminismo. Existe um movimento ecofeminista muito importante e muitas das mulheres dessa corrente são também ecossocialistas.
Do ponto de vista do ecossocialismo, é evidente que as mulheres são as primeiras vítimas da crise ecológica, da catástrofe climática. São elas que assumem as tarefas da alimentação, da reprodução social e, portanto, sofrem com o envenenamento das águas, da comida, com a poluição. Não por acaso, as mulheres estão na primeira fila da resistência contra a destruição capitalista da natureza, Mãe Terra, no mundo inteiro. Esse grande movimento de juventude sobre a questão climática, Fridays For Future, Global Climate Strike, não por acaso foi iniciado por uma jovem mulher, Greta Thunberg.
Na América Latina, se notarmos as lutas ecológicas, particularmente de camponeses e indígenas, veremos as mulheres na primeira linha. A condição das mulheres, que assumem a reprodução social, faz com que elas sejam as primeiras vítimas desse bulldozer destruidor do capitalismo. Elas estão na primeira fila da resistência, que é perigosa. Muitas vezes elas são vítimas dos interesses de multinacionais, de negócios que querem destruir os movimentos de resistência. Lembremos de Berta Cáceres, uma inspiração para os ecossocialistas. Era socialista, ecológica, feminista, indígena e acabou assassinada por paramilitares.
Vejo grande convergência entre o ecossocialismo e o ecofeminismo não apenas em relação a teoria e reflexão teórica, mas em particular em relação à prática.
Carlos Henrique Árabe: Parece-me que o ecossocialismo está no centro da luta democrática. Como o Brasil no atual momento pode contribuir com esse movimento, que é internacionalista?
Michael Löwy: Eu acompanho com muito interesse a possibilidade histórica que se dará nos próximos meses com a eleição presidencial no Brasil de fechar esses parênteses trágico na história brasileira de um governo neofascista, ecocida, profundamente antidemocrático. É muito importante que com a eleição de Lula se consiga virar essa página e iniciar um novo capítulo. Não é por acaso, o conjunto das forças de esquerda brasileira está a seu lado. Mesmo os que têm legítimas críticas (que aliás comparto), ao que foi o PT no governo, estão todos nessa frente democrática popular para acabar com esse sinistro capítulo do bolsonarismo, que significou um enorme retrocesso. O artigo de Frei Betto, Retrocesso Brasil, mostra que foram quatro anos de retrocesso em todos os níveis, ecológico, social, democrático, o retorno da fome… tudo.
Com essa nova perspectiva, a Amazônia é fundamental. Em primeiro lugar para a população que vive lá, camponeses, sem terra, quilombolas, indígenas, que vê de maneira assustadora a destruição deliberada da floresta pelo agronegócio, madeireiras, mineradoras, garimpo… Dados mostram recorde de área desmatada nesse governo.
A tarefa número um é acabar com essa destruição sistemática da Amazônia, que é dramática para sua população, mas não só. É de lá que vêm os rios de chuva que chegam no sul do país, que quando acabarem ocasionarão seca. Já há problemas desse tipo, represas secas em São Paulo. O que está acontecendo na Amazônia tem implicações para todo o povo brasileiro e como sabemos para o mundo inteiro, toda a humanidade. A floresta amazônica é um dos últimos grandes poços de carbono, que absorve parte do CO2 que está na atmosfera. A destruição da Amazônia está em curso e sua transformação em savana seria o ponto final do processo de mudança climática, seria incontrolável.
A luta pela Amazônia é fundamental, uma luta dos povos amazônicos, do povo brasileiro e da humanidade, mas é uma luta que enfrenta adversários poderosos e impiedosos. Vimos o assassinato do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips porque fizeram algumas denúncias.
Um futuro governo Lula terá de ter uma política drástica, de pôr limites, acabar com o processo de destruição da Amazônia e restabelecer as instâncias de controle da floresta, de proteção dos povos indígenas. Essa tarefa implica energia, não pode fazer concessões às empresas do agronegócio, da soja, do gado, das madeireiras, que são forças muito poderosas, bem representadas no parlamento. A única maneira de salvar a floresta Amazônica é acabar com essa impunidade. Será uma batalha social e ecológica fundamental. Os movimentos sociais terão aqui um papel decisivo.
Rogerio Chaves: Como esses assassinatos e as ações do governo Bolsonaro impactam na Europa em particular no meio dos ecossocialistas?
Michael Löwy: Os ecossocialistas do mundo inteiro têm acompanhado o que se passa na Amazônia. Com esses assassinatos, virou um escândalo internacional. Mas já no último período era muito claro que a Amazônia é questão central para o ecossocialismo em escala mundial; a solidariedade com os defensores da floresta amazônica é uma tarefa do ecossocialismo internacional; além da luta para que a Europa e os Estados Unidos não façam acordos comerciais com o governo brasileiro que implicam a circulação de mercadorias que sejam produtos da destruição da floresta amazônica.
Esses são temas discutidos pelos ecossocialistas na Europa, nos Estados Unidos, obviamente porque é uma questão planetária, que concerne os povos do mundo inteiro. Portanto, os ecossocialistas estão muito atentos, procurando meios para ajudar, alertar a opinião pública, fazer campanhas de solidariedade, receber pessoas que venham do Brasil e ajudá-las a promover a discussão sobre o tema e denúncias. Tudo isso tem sido feito.
Do ponto de vista político, ético e ecológico, a Amazônia é de interesse planetário, de toda a humanidade. Não é problema de soberania. No mundo inteiro os ecossocialistas acompanham o processo eleitoral na esperança de que se possa fechar esse capítulo ecocida da história do Brasil.
Arlindo Rodrigues: Quero perguntar sobre o que eu chamo pedagogia da luta. A partir de sua vivência como militante partidário e do movimento ecossocial, o que você pensa sobre como construir a relação do movimento social apoiando e fornecendo pautas e reivindicações à estrutura oficial de Estado e, ao mesmo tempo, manter a sua independência?
Michael Löwy: Isto vale para o Brasil e países da América Latina: quando existem governos progressistas, é muito importante que as forças de esquerda, em geral, e os movimentos sociais, em particular, mantenham sua autonomia. A lógica dos governos, da gestão administrativa, dos acordos político-parlamentares, é uma, e a lógica da luta da esquerda e dos movimentos sociais é diferente. É muito importante manter essa autonomia e que os governos progressistas sejam submetidos a uma pressão que venha de baixo. Aliás, os governantes mais justos incentivam a mobilização.
Governos progressistas estão sob enorme pressão de várias toneladas do capitalismo mundial, do mercado, do agronegócio, dos bancos, do capital financeiro… Então, tem de haver uma contrapressão de baixo. E essa autonomia é de luta. O MST, por exemplo, não vai ficar de braços cruzados esperando que as coisas caiam do céu, vai se mobilizar, vai ocupar terra e promover experiências de agricultura biológica etc.
É como você diz, pedagogia da luta… para Marx, a filosofia da práxis. É na prática que se mudam as circunstâncias, as condições e a consciência daqueles que estão em luta. No processo de luta, a juventude, as mulheres, os trabalhadores etc. vão forjando a sua consciência crítica, anticapitalista, revolucionária, eventualmente, ecossocialista.
Nós, ecossocialistas, temos um papel pedagógico, através das nossas conferências, dos livros, panfletos, artigos – tudo isso é importante –, mas o aprendizado das grandes massas se dá pela experiência de luta, de auto-organização.
E agora eu quero fazer uma pergunta que vocês ainda não fizeram: O Brasil como outros países do Sul precisa se desenvolver, como ficam ecologistas, ecossocialistas, que criticam o desenvolvimentismo, que dizem é preciso reduzir produção e consumo…?
O país precisa de desenvolvimento, não há dúvida, mas não o modelo dos países capitalistas, como os Estados Unidos. Primeiro porque é impossível. Nenhum país do Sul será EUA porque não há condições ecológicas para tal. Isso é uma mistificação e não interessa ao povo brasileiro. Há dois modelos de desenvolvimento: um que prioriza a produção para o mercado mundial, soja, carne, assim como para a elite e a classe média, automóveis, aviões. O outro é um modelo alternativo, com prioridades muito diferentes.
A primeira é a soberania alimentar. Como diz o MST, “precisamos produzir para nutrir o povo brasileiro”, que não come soja, come arroz e feijão, frutas, verduras… e carne, que é um problema por razões ecológicas e de saúde. Outra prioridade é saneamento básico. A maior parte da população vive na periferia sem saneamento básico. Esse é um investimento fundamental, assim como saúde, hospitais, educação, mais escolas, universidades. Essas são as prioridades, não o modelo capitalista dominante, ecologicamente desastroso e socialmente injusto.
Tica Moreno: O que vem sendo chamado de transição “verde” e “digital” no Norte se apoia no Sul. Por um lado, a transição verde e digital do Norte se apoia na necessidade de minerais como lítio, cobre, terras raras e também na lógica financeirizada do mercado de carbono, da compensação para alcançar esse consenso do capital de emissões líquidas zero sem alterar o modelo. Como essa crítica que temos à economia verde a partir dos territórios do Sul ecoa nas elaborações e nas ações políticas ecossocialistas sobre a transição que realmente precisamos?
Michael Löwy: Primeiramente, a chamada transição da economia verde de mercado é mais uma mistificação. A ideia básica é que em vez de reduzir efetivamente as suas emissões de carbono, as empresas capitalistas vão supostamente tomar sob sua proteção a floresta ou plantar mais árvore em algum lugar do Sul e com isso continuar emitindo… “O carbono que eu estou emitindo é compensado pela floresta que eu plantei…” Temos de recusar isso e propor outra política.
O que seria uma transição ecossocialista num país do Sul como o Brasil é outro modelo de desenvolvimento. Soberania alimentar em si não é uma revolução ecossocialista, mas é uma medida que enfrenta os interesses dos grandes capitalistas do Brasil, vai no sentido da transição a uma sociedade de outra natureza. E como essa muitas outras são possíveis não só no plano agrário, como também nas cidades.
Para citar uma, a situação do transporte público nas grandes cidades do Brasil é catastrófica. Totalmente privatizado, nas mãos de máfias, deficiente, preço alto para a população pobre. Já houve um movimento muito importante da juventude em São Paulo com uma palavra de ordem muito acertada: “Passe livre”. Todos têm o direito de usar transporte gratuitamente. Isso é fundamental para o processo de transição, começar a sair do modelo de cidade construída exclusivamente para o automóvel, destinado à minoria da população.
Precisamos pensar num outro modo de organização urbana baseado em uma grande rede de transporte público gratuito, que implica investimentos, desapropriar as empresas. Não é uma medida socialista, mas a gratuidade do serviço tem um espírito socialista. Essa é uma medida de transição de interesse ecológico e social.
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Foto de José Eduardo Bernardes