Quando estudar agrotóxicos vira caso de perseguição

Cientistas brasileiros sofrem ameaças e assédio após revelarem os impactos ambientais, sociais e de saúde provocados pelos agrotóxicos

Por Schirlei Alves, especial para O Joio e O Trigo e De Olho nos Ruralistas

Pesquisar agrotóxicos, especialmente o impacto que a exposição a eles pode provocar à saúde e ao meio ambiente, tornou-se uma atividade arriscada no Brasil. A violência contra os cientistas ocorre, na sua maioria, de forma silenciosa, sufocando o desenvolvimento do trabalho e abalando emocionalmente os profissionais. Os métodos de intimidação percorrem caminhos distintos entre os seis casos ouvidos pelo Joio, mas carregam um aspecto em comum: as vítimas até percebem os sinais de censura, mas só se dão conta da gravidade da situação depois que o rumo de suas vidas é alterado. 

As perseguições ocorrem tanto dentro das instituições, por meio das chefias, quanto por pressão de pessoas ou instituições externas, geralmente ligadas ao agronegócio. Os constrangimentos ocorrem há vários anos, mesmo ao longo dos governos Lula e Dilma, mas se intensificaram a partir de 2016, no governo Temer e em 2018, com o início do governo Bolsonaro, quando o agro ficou ainda mais fortalecido.  

Publicação de pesquisa barrada, perda de cargo de coordenação, troca de setor, afastamento, abertura de procedimento administrativo, assédio moral e judicial, demissão e ameaças são algumas das intimidações sofridas pelos pesquisadores entrevistados pela reportagem. O campo da produção científica, especialmente o de pesquisa voltada para o meio ambiente, saúde coletiva e agroecologia, tem se tornado tão hostil que levou um grupo de pesquisadores a criar a Rede Irerê de Proteção à Ciência, cujo nome faz referência a uma ave que alerta a presença de predadores através do seu canto. 

Lançada em outubro de 2020, com apoio da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a Rede Irerê se propõe a defender a produção de conhecimento científico e proteger os profissionais oferecendo suporte jurídico, social, psicológico e econômico. O grupo também contribuiu para a construção do relatório sobre Direito ao Progresso Científico como Direito Humano do Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU, ao compartilhar denúncias sobre perseguições.

Demitido duas vezes

O engenheiro agrônomo Vicente Almeida, um dos fundadores da Rede Irerê, foi demitido por justa causa da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em 2018, após denunciar assédio moral, censura e perseguição à sua produção científica. Ele entrou na estatal em 2005, por meio de concurso público, com a missão de fazer monitoramento ambiental das atividades, produtos e processos agrícolas. O estudo dos impactos ambientais na agricultura e seus efeitos na saúde e no ambiente ainda estava em construção no Brasil quando iniciou sua carreira na Embrapa. Almeida fez parte do grupo de pesquisadores que se dedicou a produzir conhecimento associando a temática da saúde ambiental e o uso de agrotóxicos. 

Na época, conta  o pesquisador, havia esforços, inclusive da Anvisa, para aprimorar a análise do consumo e contaminação dos agroquímicos, mirando o desenvolvimento de políticas públicas que pudessem reduzir o  contato das populações mais expostas, que trabalham nas lavouras, e também das que consomem os alimentos. Na primeira fase dos estudos, Almeida e seus colegas já se depararam com tentativas de desqualificação tanto pessoal quanto das produções científicas. As ações, à época, ocorriam de forma pontual. 

“Alguém era, por exemplo, admoestado [orientado] judicialmente por uma empresa da vida [multinacionais que fabricam os agrotóxicos] a deixar de falar ‘agrotóxico’ para usar ‘defensivo agrícola’”. Eles diziam que havia agrotóxico que não fazia mal. E a gente agia muito reativamente. Mas, não tínhamos bem claro como essa violência se dava, se ela existia ou não em nível nacional, se era uma violência espontânea que surgia do coração do dono da empresa ou se era uma coisa que já existia um manual”, relembra Almeida.

Após um ano e meio se debruçando sobre um estudo com outros pesquisadores, Vicente Almeida publicou, em outubro de 2017, uma pesquisa demonstrando que o consumo de sementes transgênicas no Brasil resultou no aumento do consumo de agrotóxicos. O resultado foi exatamente o oposto do que os ruralistas diziam à época – que a produção de transgênico diminuiria o consumo dos venenos. 

A Monsanto, que hoje pertence à Bayer, por exemplo, comercializa tanto a semente de soja transgênica quanto um dos herbicidas mais usados nessa cultura – o Roundup, à base de glifosato. O pesquisador explica que a semente transgênica é mais tolerante ao agrotóxico, o que permite a ampliação de seu uso. A Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (IARC) já mostrou que o glifosato é provavelmente cancerígeno. Lá fora, a batalha tem se dado nos tribunais, e a empresa já foi condenada a pagar indenização em alguns casos, e fez acordos em outros.

“Seis meses depois de publicar esse artigo, eu fui demitido da Embrapa. Além de pesquisador de impactos ambientais, eu também publicava artigos que tratavam de modelos mais diferenciados, como a agroecologia. Eu estava lá pesquisando coisas que o edital do concurso público para o qual eu concorri dizia que era a minha atribuição”, aponta Almeida.

Ele também era ligado ao Sindicato Nacional dos Trabalhadores de Pesquisa e Desenvolvimento Agropecuário (Sinfap-CUT), através do qual já havia denunciado situações de assédio moral, suposto esquema de corrupção e outras irregularidades dentro da empresa. Em 16 de abril de 2018, foi demitido por “justa causa” sob alegação de “desídia, insubordinação, indisciplina e mau procedimento”. 

O “mau procedimento” alegado pela Embrapa seria em decorrência de improdutividade e das denúncias feitas por ele. Segundo o pesquisador, suas atividades de pesquisa estavam sendo impedidas de serem registradas no sistema interno de monitoramento e avaliação de desempenho da empresa. 

Um ano e cinco meses depois, Almeida retornou ao trabalho por força judicial com efeito cautelar por acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª região, que afastou a “justa causa” e determinou sua reintegração à empresa. A ação foi movida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) em setembro de 2019. A decisão determinou que o pesquisador fosse remanejado para outra unidade e condenou a Embrapa a pagar os salários correspondentes ao período de afastamento. 

O MPT atuou no caso amparado por uma ação civil pública na qual a Embrapa já havia sido condenada anteriormente por assédio moral. A denúncia também havia sido feita pelo pesquisador e outros oito colegas. Os assédios teriam sido praticados pela supervisora do setor de patrimônio e material da Embrapa Hortaliças à época. Segundo a procuradora que atuou na ação, a empresa foi “inerte diante dos fatos” preferindo “afastar os assediados a tomar uma providência”. 

“Quando eu retornei, me proibiram de pesquisar os impactos dos transgênicos. Eu voltei para outra unidade, na qual eu havia sido acolhido inicialmente, porque a unidade [onde ocorreu a demissão] cometeu vários abusos e perseguições contra mim. Eu entrei com processo judicial e comprovei que  estava sendo assediado moralmente lá, que eu estava sendo tratado como um zumbi, para que as minhas publicações e os meus projetos não fossem reconhecidos”, conta.

Em abril de 2021, quase sete meses após retornar para a Embrapa, o cientista foi demitido novamente, desta vez  sem justa causa – e, segundo ele, sem qualquer justificativa. Uma nova decisão judicial no processo que o reintegrou ao quadro de funcionários e afastou a justa causa, autorizou a demissão sem motivo legal. Embora fosse concursado, o seu contrato era regido pela CLT, o que facilitou a dispensa. Hoje, Almeida recorre pela anulação da demissão sem justa causa e atua na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) como pesquisador e colaborador de projetos que envolvem tanto a questão dos agrotóxicos como a organização das redes de proteção aos cientistas.

Procurada pelo Joio, a Embrapa informou que o caso já foi tratado no âmbito do Judiciário, e os autos estão disponíveis para consulta pública. “A empresa tem como conduta não comentar questões trabalhistas ou funcionais julgadas ou em andamento para não expor publicamente seus trabalhadores”, diz a nota.

Exílio na Bélgica

Em 2006, após concluir o doutorado em Geografia Humana na Universidade de São Paulo (USP), a pesquisadora Larissa Bombardi prestou concurso público e continuou na instituição como docente. A professora acredita que o estudo precisa ultrapassar as paredes da sala de aula, por isso costuma levar seus alunos para o trabalho de campo. “A minha perspectiva na geografia é que a gente não entende o mundo só pelos livros”, comenta. 

Na época, ela atuava com o tema da reforma agrária e fazia um trabalho de extensão com os alunos no assentamento Milton Santos, em Americana (SP). Quem despertou a sua curiosidade para os agrotóxicos foram os próprios alunos. Eles observaram que o assentamento, que se propunha a fazer uma produção agroecológica, era contíguo a uma área de produção intensiva de cana-de-açúcar, na qual havia pulverização aérea de agrotóxicos. A partir da observação da realidade, as perguntas começaram a surgir: como produzir alimento orgânico sem contaminá-lo com o agrotóxico do vizinho? Quais são os desafios para produzir sem fazer uso de agrotóxico? E como fica a degradação do solo?

Após se aprofundar no tema, Bombardi publicou, em 2011, o primeiro texto sobre a organização das empresas oligopolísticas que produzem e vendem os agroquímicos e o primeiro mapa sobre pessoas intoxicadas por agrotóxicos no Brasil. Ela passou a buscar outros dados públicos sobre essa realidade e se deparou com estudos que associam a exposição aos agrotóxicos aos mais variados problemas de saúde, como câncer infanto-juvenil, aborto espontâneo e malformações congênitas. 

“O primeiro choque foi [ao saber que] cerca de 20% da população intoxicada são crianças e adolescentes. [Eu também quis] ver o que era a área de soja no Brasil? Fui fazendo os primeiros mapas infográficos e eu mesma fui me indignando e me chocando. A gente tem um Portugal em cana-de-açúcar e uma Alemanha em soja. Foi um alvoroço interno lidar com isso. Aí pensei em mapear em faixas etárias cada vez menores até chegar nos bebês, eu era mãe recente. Foi um negócio que mexeu muito internamente [comigo]”, confidencia.

A exploração do tema a levou a cursar um pós-doutorado na Escócia que resultou, em 2019, na publicação em inglês do atlas “Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia”. O atlas apresenta, por meio de mapas, infográficos e gráficos, as áreas ocupadas por cultivo, o uso de agrotóxico por região, o número de intoxicações por uso de agrotóxicos, a venda de agrotóxicos por região, entre outras informações. O levantamento foi feito a partir de dados públicos. 

Uma das repercussões imediatas, segundo a pesquisadora, foi a reação do dono de uma das maiores redes de produtos orgânicos da Escandinávia, que resolveu boicotar os produtos de origem brasileira. O trabalho de Larissa Bombardi passou a ser observado em nível internacional, mas o reconhecimento profissional veio acompanhado de perseguições. “Durante muito tempo, eu estava bastante ingênua trabalhando com isso. [Ingênua] no sentido de não ter noção de que eu realmente estava em risco”, reflete.

Ao retornar para o Brasil, Bombardi percebeu em que tipo de solo estava pisando. Diferente de Vicente Almeida, da Embrapa, as intimidações não partiram de colegas ou da instituição à qual pertencia, mas de pessoas ligadas ao agronegócio. As primeiras intimidações ocorreram por meio de indiretas do tipo: “é perigoso, você está falando demais”. Pouco tempo depois, recebeu um e-mail em tom de ameaça de alguém que se identificou como piloto de aviação agrícola. A mensagem dizia o seguinte: “se a professora diz que pulverização aérea não é uma coisa segura, então convido a professora a dar uma voltinha no avião pra ver como tem segurança”. 

Bombardi também recebeu críticas de sites ligados ao setor. “Em uma plataforma chamada Agrosaber, tinha uma chamada de capa [dizendo] ‘professora da USP mente’. Depois, o Xico Graziano [agrônomo e político] publicou em um portal que a ‘professora da USP foi fazer estardalhaço na Europa’. Ele [tentou] desmerecer o meu trabalho de uma forma nada científica e bastante rude. Um ataque, uma desqualificação barata, do ponto de vista do argumento, e grosseira”, contou em outra entrevista ao Joio. A professora também recebeu cartas ameaçadoras dizendo que ela “não poderia fazer as afirmações que estava fazendo”.

Em agosto de 2020, três assaltantes invadiram sua casa e vasculharam os seus pertences levando apenas um computador antigo e uma televisão. A pesquisadora e sua mãe sofreram tortura psicológica durante o tempo em que os criminosos permaneceram dentro da casa. Embora não exista confirmação de que o crime tenha relação com a perseguição que vinha sofrendo, Larissa Bombardi decidiu que era hora de sair do Brasil. 

Em abril de 2021, após ter sido aprovada em um pós-doutorado na Universidade Livre de Bruxelas, pegou uma licença não remunerada na USP e partiu. Hoje, ela é pesquisadora da universidade belga e faz parte do grupo Research Group Crime & Society. O foco da sua pesquisa tem sido a contradição envolvendo as grandes empresas de agrotóxicos que estão sediadas na União Europeia e são responsáveis pelo aumento do consumo de veneno em outros países. Segundo a pesquisadora, cinco dos agrotóxicos mais vendidos no Brasil são proibidos na Europa. Entre os artigos mais recentes publicados por ela estão o atlas “Geografia da Assimetria – o círculo vicioso dos agrotóxicos e o colonialismo da relação comercial entre o Mercosul” e a “União Europeia e Comércio Tóxico – a ofensiva lobby dos agrotóxicos da União Europeia no Brasil”.

“Não estamos vivendo em um momento democrático, é só observar a quantidade de indígenas encarcerados e de pesquisadores que estão sendo perseguidos, às vezes, dentro da própria instituição em que atuam. [É só ver] o descrédito da ciência, tanto no discurso quanto em termos de verba. Nunca se viu tanto corte de verba destinada à pesquisa científica, a ponto de a gente ter uma rede de proteção (Rede Irerê), isso ilustra o risco que a gente está correndo ao desenvolver a pesquisa que a gente desenvolve”, conclui.

Assédio judicial

Antes de chegar à unidade regional da Fiocruz no Ceará, onde é pesquisador em saúde e ambiente de trabalho, Fernando Carneiro percorreu um longo caminho pelo serviço público. Começou a carreira na Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais, onde coordenou o setor de epidemiologia ambiental. Foi para Brasília como consultor dos ministérios do Meio Ambiente e da Saúde, foi servidor especialista em regulação e vigilância sanitária na Anvisa, coordenou a área de vigilância ambiental no Ministério da Saúde e foi professor e coordenador do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade de Brasília (UnB). Carneiro participou ainda da produção de dois dossiês sobre agrotóxicos: Impactos dos Agrotóxicos na Saúde e o Dossiê Contra o Pacote do Veneno e em Defesa da Vida.  

Quando estava em Brasília, especialmente no período em que trabalhou na Anvisa, em 2005, ainda no governo Lula, Carneiro já sentia a pressão dos ruralistas. As investidas ocorriam por meio do Congresso Nacional e tinham o intuito de acelerar a fila de aprovação dos agrotóxicos. 

Habituado a trabalhar com os dados do Ministério da Saúde, quando já estava na unidade da Fiocruz no Ceará, o pesquisador divulgou um dado público que causou alvoroço no setor do agronegócio cearense: a classificação da comercialização de agrotóxicos entre os estados brasileiros. De acordo com a classificação, que leva em conta indicadores de comercialização e que, até então, considerava o critério de produção industrial, o Ceará ocupou a terceira colocação entre os estados que mais consumiram agrotóxicos, ficando atrás apenas de São Paulo e Rio de Janeiro. O consumo significa a comercialização de agrotóxicos no estado. 

O dado, divulgado em outubro de 2015 em uma audiência pública do Ministério Público, tinha como referência o ano de 2013. É importante deixar claro que a classificação não leva em conta o número absoluto de agrotóxicos comercializados, mas o quilograma por hectare, ou seja, a relação entre comercialização dos agrotóxicos e área plantada. 

A informação virou manchete dos jornais locais e a cobrança caiu em cima de Fernando Carneiro que apenas repassou a informação, uma vez que ela já estava disponível no Relatório Nacional de Vigilância em Saúde de Populações Expostas a Agrotóxicos, do Ministério da Saúde. Um dos jornais locais também teria esquecido de divulgar que a classificação se refere ao “quilograma por hectare” e não corresponde ao número absoluto, o que pode ter inflado ainda mais os ânimos do setor no estado.

Segundo Carneiro, o que projetou o Ceará para a terceira posição no ranking de comercialização naquele ano foi o indicador de produção industrial.Quando fala em produção industrial, o pesquisador se refere à Nufarm, uma fábrica de agrotóxicos localizada em Maracanaú, região metropolitana de Fortaleza, que em 2020 foi vendida para a japonesa Sumitomo Chemical. A Nufarm já respondeu a nove autos de infração ambiental pelo Ibama entre 2012 e 2016. A Sumitomo também respondeu a pelo menos três autos de infração entre 2009 e 2012.  

Em setembro de 2016,  ele recebeu uma interpelação judicial em nome da Federação da Agricultura e Pecuária do Ceará (FAEC). A federação sentiu-se ofendida com a informação divulgada pelo pesquisador e contestou a veracidade do levantamento que projetou o Ceará para a terceira posição no ranking. Na interpelação, a FAEC solicitou que o pesquisador elucidasse a motivação de “tecer comentários públicos” sobre o assunto e requereu que Carneiro fosse proibido de divulgar dados oficiais “sem embasamento” e de usar a denominação “veneno” para se referir aos “defensivos agrícolas”. Para a federação, a denominação é “pejorativa” e “desqualificadora”. 

A presidente da Fiocruz Nísia Trindade Lima, respondeu aos questionamentos da federação. Na defesa, a fundação declarou que as afirmações feitas pela FAEC sobre o pesquisador eram “infundadas” e defendeu o uso da palavra “veneno” para se referir aos agrotóxicos. “Foi muito importante, mostrou que a instituição estava defendendo seus pesquisadores no exercício da função. Na verdade, eu nem cheguei a divulgar uma pesquisa, eu estava divulgando um dado de um relatório oficial do Ministério da Saúde”, ressaltaou. A interpelação se encerrou após a resposta da Fiocruz e não evoluiu para uma ação judicial. 

Segundo Fernando Carneiro, a federação chegou a pedir a sua demissão de um cargo de coordenação que exercia na época e acionou a presidente da Fiocruz para uma reunião presencial no Ceará. A pressão da FAEC respingou até no Ministério da Saúde, que teria alterado o indicador na forma do cálculo e retirado a produção industrial, o que fez com que o Ceará caísse para a última posição no ranking de consumo de agrotóxico por hectare no ano seguinte.  

“Eles vieram com perseguições e a gente veio com moções de toda ordem, da Fiocruz, do Ministério Público e do Conselho Nacional de Saúde. Eles viram que a gente não estava só nesta luta. Pra mim foi muito bom porque eu me senti amparado tanto institucionalmente quanto em termos sociopolíticos”, conta.

O Joio procurou a FAEC para comentar sobre a interpelação judicial feita ao pesquisador, mas não recebeu retorno. Já o Ministério da Saúde foi questionado sobre a suposta alteração feita no cálculo da taxa de consumo de agrotóxico, mas também não respondeu até o fechamento da reportagem. 

Hostilidade e ameaça

Marcia Montanari, pesquisadora do Núcleo de Estudos Ambientais e Saúde do Trabalhador e do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Mato Grosso (Neast/IST/UFMT), e seus colegas que pesquisam os impactos dos agrotóxicos na saúde, estão continuamente expostos aos riscos do trabalho de campo. Além de entrevistar os agricultores, que atuam na linha de frente aplicando os agrotóxicos, precisam fazer a coleta das culturas e dos materiais para análise. Atuando no autoproclamado “celeiro do país” em razão da produção das commodities, o ambiente de trabalho no Mato Grosso é ainda mais hostil.  

“Toda vez que a gente entra em campo para coletar qualquer coisa, sofre algum tipo de ameaça. As pessoas falam: cuidado, não conversa com fulano, não fica dando sopa por aí, o pessoal já está sabendo que vocês estão aqui. Não é uma coisa muito fácil”, conta.

O Neast é um dos mais importantes núcleos de pesquisa sobre o tema no país. Os pesquisadores já identificaram resíduos dos agrotóxicos nos rios, no solo, na água potável e da chuva, no ar, nos peixes e em vários tipos de alimentos cultivados no Mato Grosso. Os estudos também revelaram a contaminação do leite materno, do sangue e da urina de trabalhadores e população de vilas rurais e do entorno das cidades onde o agronegócio é pujante, além da incidência de câncer infantojuvenil, malformações fetais, abortos expontâneos, desregulação hormonal e efeitos sobre o sistema imunológico. 

Até 2018, a equipe tinha a prática de apresentar os resultados dos estudos em audiências públicas organizadas pelos órgãos fiscalizadores nas comunidades locais. Mas a hostilidade se intensificou no governo Bolsonaro e os fez recuar. Montanari conta que era comum os pesquisadores serem convocados pelo Ministério Público do Trabalho a participarem dessas reuniões. O objetivo era colaborar com as ações de proteção aos trabalhadores e à comunidade exposta aos agrotóxicos. 

“A gente levava o ponto de vista científico, apresentava as nossas pesquisas, os dados nacionais e internacionais.Mas eles começaram a vir com a força do dinheiro e da violência e em um número muito maior de pessoas. A gente conseguia ir em três ou quatro pessoas e eles chegavam lá em 30 ou 40”, conta.

Montanari foi recebida com violência em uma audiência pública que ocorreu em Cuiabá, em 2019. As agressões verbais teriam partido de um grupo de pessoas ligado a uma associação de produtores de soja e milho. “Gritaram comigo, bateram na mesa, foram extremamente agressivos e violentos”. Em outra ocasião, um colega precisou ser escoltado do local da audiência até o hotel da cidade para garantir sua segurança. “Não participamos mais de audiências públicas. Fazemos a apresentação dos dados em espaços acadêmicos, onde nos sentimos mais seguros”, destaca. 

A presença de promotores, magistrados, procuradores e defensores públicos nas reuniões não inibia fazendeiros e pessoas ligadas ao comércio de agrotóxicos de atuarem com hostilidade. Além disso, a participação social, dos moradores e trabalhadores, era praticamente inexistente.

“Em cidade do agronegócio não tem contraponto, é difícil você encontrar um sindicato ou movimento social organizado que não tenha relação com o agronegócio. As pessoas têm medo de ir [às audiências] e perder o emprego. Quem não trabalha diretamente com o agro tem algum vínculo familiar ou afetivo com alguém que trabalha, estão sempre coagidos”, pontua a pesquisadora. 

Há cerca de dois meses, Marcia Montanari foi a uma cidade no interior do Mato Grosso para coletar algodão e fazer análise dos resíduos de agrotóxicos. Os funcionários a trataram bem e levaram-na até a algodoeira para fazer a coleta. Antes de sair, como de costume, deixou seu contato de telefone. Meia hora depois, recebeu uma ligação desesperada de um dos trabalhadores. “Ele me pediu: pelo amor de Deus, não analise esse algodão, meu chefe me ligou de São Paulo e falou para não deixar [a pesquisadora analisar], senão eu vou ser mandado embora”. 

Um dos episódios mais marcantes ocorreu em novembro do ano passado, quando Montanari acompanhou uma equipe de jornalistas franceses que pretendia produzir um documentário sobre as conexões do agronegócio entre o Brasil e a Europa. A equipe pediu autorização ao gerente de uma propriedade em um município no interior do Mato Grosso,  para acompanhar o trabalho de pulverização aérea. Porém, os jornalistas acabaram flagrando vazamento de produto químico próximo a uma fonte de água, vasilhames de agrotóxicos jogados no chão e trabalhadores sem equipamentos de proteção. Sem contar o cheiro forte dos produtos químicos.

“Eles entrevistaram o gerente, que falou da pulverização aérea. Ele contou que a pulverização chegava muito longe, mas que era o método mais eficaz, pois as lavouras são muito grandes, era o único jeito de aplicar agrotóxico, se não eles não teriam como lucrar. Ele também contou que já havia se sentido mal aplicando agrotóxicos”, relembra. 

No caminho de volta, a pesquisadora e a equipe de reportagem foram parados por um carro no meio da estrada. Eles haviam acabado de receber uma ameaça por telefone. A voz no outro lado da linha dizia que eles deveriam apagar as imagens. Na sequência, foram interpelados por dois homens em outro veículo. “O cara desceu do carro e tentou pegar a câmera. Ele disse: apaga, apaga, apaga”. Marcia orientou o cinegrafista a apagar as imagens e ele acatou. “Disseram que se a gente não apagasse, nos levariam para a delegacia e que lá a conversa seria diferente. Eles estão empoderados agora”, conclui.

Pressões de todos os lados

A imunologista e pesquisadora científica do Instituto Butantan Mônica Lopes Ferreira foi pressionada de diversas formas após divulgar um experimento que não agradou a sua chefia e, muito menos, o agronegócio. Ela caiu de paraquedas em uma pesquisa de outro colega e acabou vítima de uma tentativa de silenciamento. Como já contamos nesta reportagem e vamos resumir aqui, Ferreira foi convidada a colaborar em uma pesquisa da Fiocruz por conta da sua expertise em trabalhar com zebrafish – uma espécie de peixe que tem material genético similar ao do ser humano. A cooperação com a pesquisa do colega da outra instituição consistia em submeter embriões dos peixes à exposição de 10 tipos de agrotóxicos. O episódio ocorreu em 2019, durante o governo Bolsonaro. 

Ferreira constatou que a dose até então considerada “segura” para consumo causou mortalidade dos peixes. Ela testou diluir a dose até mil vezes em água, o que não provocou a morte dos peixes, mas os deixou com anomalias. O resultado incomodou os setores ligados à comercialização dos agrotóxicos, pois apontou que não existe “dose segura”. A dor de cabeça começou com o próprio colega que solicitou o experimento: de acordo com Ferreira, ele a impediu de publicar os resultados.

Poucos dias depois, a pesquisadora recebeu do Butantan um comunicado de suspensão de suas atividades pelo período de seis meses até que sua conduta fosse avaliada pelo Comitê de Ética Animal da instituição. A justificativa foi a de que ela não teria submetido o seu experimento ao comitê, o que seria proibido, uma vez que estaria trabalhando com animais. Segundo Ferreira, porém, não havia necessidade de submissão porque o seu trabalho não havia sido feito com animais e sim com embriões até 96 horas após a fertilização.

A suspensão foi revertida em uma decisão liminar na Justiça. Mas a pesquisadora relata outras retaliações, como o cancelamento de convites para eventos, perda do cargo de diretora e abertura de procedimento administrativo no Butantan para investigá-la. 

“Então, eu pensei: como vou fazer pra trabalhar com agrotóxico aqui dentro?”. Como o foco das pesquisas da instituição é a saúde, Ferreira precisava comprovar que o consumo de agrotóxicos impacta na saúde humana. E ela encontrou um jeito de fazer isso. “Se eu não posso publicar o que eu fiz na bancada, eu usei de todo o critério científico que demonstrou que aquele dado é real e por isso irritou tanta gente, vou fazer outra coisa”.

Mônica decidiu enfrentar a represália com ciência. Ela publicou um artigo em parceria com a pesquisadora Sonia Hess fazendo uma crítica à regulação desenfreada dos agrotóxicos no país. Na sequência, publicou uma revisão de 51 estudos brasileiros que comprovam os impactos dos agrotóxicos na saúde. O trabalho feito em parceria com oito colegas do Butantan foi publicado em março deste ano.

Procurada para comentar, a Fiocruz afirmou que a análise feita por Monica Ferreira era destinada a compor um relatório para o Ministério da Saúde. “Em relação aos resultados gerados pela pesquisadora citada, os mesmos não foram utilizados na medida em que os dados brutos não foram disponibilizados até a presente data”, diz a nota, que informa que o relatório foi concluído a partir de resultados gerados “por outro colaborador”. 

Já o Instituto Butantan afirmou que a análise sobre agrotóxicos foi de inteira responsabilidade de Monica Ferreira e que não avaliza os trabalhos científicos realizados de forma independente por seus pesquisadores. Sobre a investigação, o órgão público comentou que “à época, a diretoria do instituto, sob risco de ser acusada de prevaricação, iniciou uma averiguação preliminar, sem qualquer efeito acusatório, para analisar as circunstâncias da realização do estudo que foi atribuído ao Butantan por um veículo de notícias, sem que os canais da instituição competentes fossem informados oficialmente de sua existência”. A nota afirma ainda que “não houve nenhum tipo de ‘retaliação’ a quem quer que seja”.

Questionado sobre os impeditivos de se pesquisar os impactos dos agrotóxicos na saúde dentro da instituição, o Butantan afirmou que não faz parte das suas atribuições “a realização de pesquisas de agrotóxicos” e que “não existe estrutura que permita a realização das referidas pesquisas na instituição”.

Intimidação e sufocamento

Outra pesquisadora que foi impedida de pesquisar contaminação por agrotóxicos é Débora Calheiros, que até então trabalhava na Embrapa Pantanal. O episódio é antigo, ocorreu em 2007. Calheiros identificou à época agrotóxicos de comercialização proibida no Brasil na água dos canais de irrigação utilizados na produção de arroz. O objetivo do estudo era analisar o efeito da mistura de agrotóxicos no desenvolvimento dos peixes desde a fase larval. O experimento, segundo a pesquisadora, seria na linha do que a Mônica Ferreira fez no Instituto Butantan. Só que, além de identificar os impactos negativos das substâncias no meio ambiente, a área de estudo onde se detectou o DDT era localizada em uma propriedade de uma família influente na política do interior do Mato Grosso do Sul.  

“Quando você faz um projeto, tem que passar pelo conselho técnico [na Embrapa]. Neste caso, eu tive o projeto barrado por estar relacionado aos agrotóxicos. Eles falaram que eu estaria fazendo denúncia, não pesquisa”, conta. 

Anos depois, em 2010, Calheiros e seus colegas fizeram uma publicação com recomendações que advertiram sobre a construção desenfreada de usinas hidrelétricas na bacia que forma o Pantanal, pois havia risco de alteração nos rios que formam o bioma. A partir daí, as intimidações se intensificaram e sufocaram a atuação da pesquisadora até ela pedir sua cessão para outro órgão. Débora Calheiros foi vetada em reuniões oficiais sobre a implementação das usinas, sofreu assédio moral, teve o seu trabalho de pesquisa questionado e foi proibida de concorrer a um pós-doutorado. 

“Eles te tiram de tudo [com o que] você tá envolvido e impedem você de trabalhar, como impediram que eu fosse para o pós-doutorado. Teve um colega que eles tiraram o laboratório que o colega criou e colocaram ele em uma sala sem computador, uma falta de respeito total”, relata.

Tempos depois, com intermediação do sindicato, Calheiros conseguiu um afastamento e foi cedida à Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. “Não era uma coisa que eu queria naquele momento, foi uma necessidade. Se você não sai do ambiente assediador, você acaba ficando doente. Porque os colegas, todos, ficam contra você. Porque se ficarem a favor, também vão sofrer algum tipo de sanção. É uma questão coletiva”, lamenta.

Hoje, a pesquisadora está cedida para o Ministério Público Federal, onde atua com assessora técnica na área ambiental.

Da mesma forma que não comentou o caso de Vicente Almeida, procurada, a Embrapa também não comentou o caso de Débora Calheiros.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Diogo Rocha.

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