Um elefante incomoda muita gente. Bertolt Brecht incomoda muito mais.
[Isso me foi contado]
Não tem conversa. Quando o assunto é Brecht, no lado oposto sempre está Adorno. Esses dois autores constituem os dois polos (um negativo e outro positivo?) do debate sobre estética e política no século XX. De um lado, práxis, luta de classes e tentativa de refuncionalizar a arte; de outro, crítica ao fetichismo da mercadoria e defesa do poder da teoria e da autonomia da arte diante do establishment. Ao menos é isso que reza o evangelho. Adornianos ortodoxos adoram repetir que Adorno é “aquele que diz não” (M. Schwarz, 2019), expressão que normalmente faz referência à conhecida e polêmica peça pedagógica de Brecht Aquele que diz sim, aquele que diz não. O “Neinsager”, contudo, é um tipo na Alemanha, país cuja fama de mal-humorado tem lá o seu momento de verdade. Kracauer cansou-se tanto dessa história que certa vez indagou se a querela chegaria até “aquele que diz talvez”. Até hoje, quase ninguém disse.
Os polos se mantêm mais ou menos inalterados. Não há nada pior na e para a teoria crítica do que isso: leituras enrijecidas dos seus autores clássicos. Formam-se cultos e o debate é transferido para o ringue, no qual a ideia é nocautear o adversário o mais rápido possível. Nem é preciso dizer que a metáfora pugilista, do gosto de Brecht, é proposital e visa ressaltar o masculinismo que frequentemente está presente nessas formações (que em suas configurações originais também relegaram às mulheres os postos de musas e colaboradoras). A regra é falar alto, repetir a leitura canônica de forma exaustiva, e, de preferência, não recorrer a comentadores ousados. É claro que, como em toda regra, há importantes exceções, mas fato é que poucos foram os intérpretes que, tanto no centro, quanto na periferia do capitalismo, compreenderam que a teoria crítica exige que confrontemos e combinemos autores antagônicos – não num exercício de ecletismo, mas de dialética – para “testar” a atualidade de sua arte e/ou teorias diante da realidade que, como marxistas, temos a obrigação de apreender e criticar. Sem dúvida, um dos maiores exemplos desse esforço entre nós é Roberto Schwarz. Seu ensaio “Altos e baixos da atualidade de Brecht” é a grande inspiração desse texto. Mas ele não será objeto de comentário direto aqui. A ideia é revisitar algumas das críticas de Adorno a Brecht e, se possível – se for capaz de convencer alguém disso –, contestá-las para repensar a atualidade de Brecht hoje, em 2022, no Brasil que ainda é de Bolsonaro. Mais do que defender o lado marxista da obra brechtiana, gostaria de, pensando com e contra Adorno, salientar um aspecto menos investigado da estética brechtiana: o seu aspecto antifascista.
Apesar de tentar mostrar, aqui nessa coluna e em outros espaços, a lucidez e importância política de vários dos posicionamentos de Adorno para o marxismo, a coisa com Brecht me parece, quanto mais estudo esse assunto, mais mal resolvida, especialmente no que se refere ao texto “Engajamento”, que inicialmente foi uma palestra proferida na Rádio Bremen sob o título “Engajamento ou autonomia artística”. Nele, Adorno analisa o teatro de Brecht, mas seus argumentos são marcados por uma oscilação que não costuma aparecer em outros textos. A presença de Beckett como contraponto do ensaio, ao invés de reforçar o argumento de Adorno, parece dissimular algumas inconsistências. Numa carta a Peter Szondi, Adorno referia-se a seu texto sobre Brecht como “Dialética do engajamento”. No ensaio publicado há algumas indicações do que seria essa dialética. Adorno diz que a “política” é a força e a fraqueza da estética brechtiana, mas, quando lemos o texto, parece haver muito mais fraqueza que força no teatro de Brecht. Por isso, o ensaio “Engajamento”, sem dialética, tornou-se uma espécie de modelo de negação (muitas vezes a priori) de toda a arte politicamente orientada.
Não vou retomar todos os pontos da crítica de Adorno aqui. Eles são muito densos e exigem mais do que um comentário como esse para uma avaliação detida e consistente. Por isso, escolho um aspecto específico, relacionado à polêmica interpretação de Santa Joana dos Matadouros. Em resumo, o grande problema da peça, segundo Adorno, é que Brecht concentra-se mais na concorrência dos trabalhadores entre si (grevistas e fura-greves) e dos capitais entre eles (Bocarra e sua tentativa constante de passar os outros capitalistas para trás) do que na exploração da mais-valia e no nexo que liga a parte de cima com a de baixo. Isso faria com que a lógica do capitalismo – que Brecht busca desvendar – acabasse por ser ininteligível. Numa outra carta importante a um pesquisador que o acusa de apagar o marxismo na obra de Benjamin, Adorno responde que o problema de Benjamin, assim como o de Brecht, “é que eles teriam engolido o marxismo como uma pílula e que Brecht não compreendia sequer o conceito de ‘mais-valia’”.
Como sabemos, Marx trabalha em sua obra com dois níveis diferentes de análise – que, se não tomados de forma complementar, podem gerar erros graves de compreensão. De um lado, trata-se de um processo social que se autonomiza em relação àqueles que o produzem. Nele, os sujeitos tornam-se portadores, objetos daquilo que eles mesmos criaram. Essa inversão é estudada por Marx ao longo de todo o Capital e leva o nome de “fetichismo”. Sem ele, não entendemos o conceito de mais-valia. De outro lado, a dominação se apresenta também como exploração direta e, assim, assume contornos mais delineados. Refiro-me aqui à teoria das classes sociais. Grosso modo, a divisão da sociedade entre burguesia e proletariado determina quem se beneficia e quem se lasca no desdobramento desse processo contraditório que inverte sujeito e objeto na sociedade. Para Adorno, Brecht cobre apenas o segundo momento do processo, ou seja, sua leitura do capitalismo é parcial. Compreende que a luta começa com a revolta contra um chefe ou uma empresa, com uma oposição contra os agentes imediatos da exploração/opressão, mas despreza o processo mais geral e abstrato que ao próprio Marx impôs grandes desafios de apresentação (a respeito disto, cf. Grespan, 2019).
Santa Joana, segundo Adorno, fica no meio do caminho entre o registro histórico-econômico e a fábula do velho oeste de Ascensão e queda da cidade de Mahagonny. Não chega a seu destino. Aliás, esse seria um dos problemas de várias peças de Brecht desde Mahagonny e a Ópera dos três vinténs: Brecht identificaria capitalismo e capitalistas e representaria tanto a burguesia quanto os fascistas como gângsteres – elemento este que faria a peça perder força e a estética e teoria marxista entrarem em conflito. Mas isso não é tudo. As consequências políticas para Adorno são as mais perversas. Adorno sugere que esse tipo de situação nas peças de Brecht impediria a passagem de uma negação imediata da exploração para uma negação do sistema capitalista como um todo.
Em diversos momentos nesse ensaio, Adorno mobiliza alguns conceitos das pesquisas sobre a personalidade autoritária e propaganda antidemocrática. Um deles é justamente o de “personalização”. Em A personalidade autoritária, Adorno reúne o conceito de “fetichismo”, de Marx, ao conceito de “projeção”, de Sigmund Freud, para pensar a “personalização” – que nada mais é do que uma tendência político-subjetiva – resultante de processos objetivos – de “se mover” diante da opacidade que o sistema capitalista produz, atribuindo a pessoas e instituições “mais próximas das pessoas” a culpa pelos problemas sociais que se enfrenta. A realidade tal como se apresenta é tão opaca que a capacidade de referir a nossa vida aos processos sociais que a determinam diminui quanto mais o capitalismo se desenvolve. Os agitadores fascistas aproveitam-se da dificuldade (que é, segundo Marx, objetivamente produzida) que todo mundo tem de enxergar o processo social em seu movimento para dirigir a insatisfação social a grupos específicos, que servem de “bode expiatório”: judeus, estrangeiros, ciganos, homossexuais, mulheres, comunistas etc. Segundo Adorno, essa é uma tendência predominante nas peças de Brecht, que faz isso “à esquerda”, por assim dizer – especialmente nesses momentos nos quais os capitalistas e fascistas são representados como gângsteres. O risco teórico dessa leitura é transformar o marxismo numa ciência da burguesia. O risco político, não entender que o capitalismo é uma espécie de Hidra. Não basta cortar cabeças, que surgem muitas outras no lugar – é preciso combater a forma que o processo social assume.
Adorno ressalta também como, em nome do engajamento, Brecht sacrifica o realismo político. Não só quando, em Santa Joana, mostra o movimento operário organizado entregando uma mensagem importante – da qual depende o futuro da greve – para alguém de fora do movimento, passagem que também orienta a interpretação de Roberto Schwarz, como quando ridiculariza o líder fascista em Arturo UI. Para Adorno, apresentar o lado cômico do líder fascista sem apresentar seu lado terrível é sacrificar a verdade política em nome do humor. Esse apego ao engajamento – que Adorno traduz como uma espécie de realismo – consistiria num outro elemento da personalidade autoritária: o convencionalismo, a tendência a aderir aos valores tradicionais de classe média e a dificuldade de enfrentar mudanças e transformações (implicadas na estética modernista).
A análise de Adorno parece-me demasiadamente conteudista. Adorno não ressalta a diferença entre a peça escrita e sua encenação – essencial na estética brechtiana, conforme chamou a atenção Luciano Gatti (2014); não atina para o modo como Brecht – leitor da tradição clássica alemã – faz seus burgueses soarem como Goethe, Schiller e Hölderlin para mostrar como a burguesia lida com os valores supremos – que são, na verdade, bastante particulares – conforme notou Roberto Schwarz (1999); não percebe, como mostrou Iná Camargo Costa (2019), que a representação pueril dos capitalistas é proposital e visa a ressaltar sua função de meros portadores do processo social; não vê na construção de Bocarra a representação de “um impulso que excede a reprodução do capital e que é potencialmente prejudicial a ele”, conforme ressaltou Nicholas Brown (2020); e, por fim, mas não menos importante – não discute a prática do “locaute” que orienta a construção da peça, conforme lembrou muito bem Virginia Fontes – algo que alguém que debateu durante décadas o capitalismo monopolista e seus “rackets” deveria ao menos levar em consideração.
Contudo, mais que isso, Adorno escorrega ao passar por cima do efeito de distanciamento e de outros elementos fundamentais da estética de Brecht, como a recusa da figura do herói e a crítica da “identificação” entre palco e público, ator/atriz e personagem. Se olhamos para a “estética” de Brecht, ou melhor, para o seu “método”, conforme ressalta Jameson, esses elementos não só anulam a crítica de Adorno, mas andam lado a lado com sua própria crítica ao fascismo. Ou seja, se nos atermos à crítica que Adorno faz de Brecht, talvez esta não seja tão interessante para compreender a obra do dramaturgo, mas se colocarmos suas teorias (sobre indústria cultural, propaganda de extrema-direita e “personalidade autoritária”), em diálogo com o “método” e as obras de Brecht, o resultado pode ser diferente.
Brecht começou a elaborar sua “estética” na década de 1930. Os textos que tratam de seu “método” foram reunidos em seus Ensaios (tentativas e experimentos) que Brecht começou a reunir em 1930 e terminou apenas após a Segunda Guerra. É principalmente neles que Benjamin baseia-se para escrever seus Ensaios sobre Brecht, no qual a ideia de uma estética marxista ganha preponderância. Em linhas gerais, Brecht elabora ali, a partir das peças que encenou, a teoria do teatro épico ou narrativo (que se contrapõe ao teatro aristotélico), da peça pedagógica, do efeito de distanciamento etc. Para uma compreensão mais aprofundada desse debate, os livros de Jameson (2013), Szondi (2011), Camargo Costa (1998) e Pasta (2009) indicados nessa bibliografia são passagens obrigatórias. Mas vale repassar duas ou três experiências históricas do período que (de forma proposital ou não) estão presentes nessas reflexões que Brecht desenvolveu em seu trabalho.
Após a Primeira Guerra Mundial, o heroísmo entrou em crise na Europa. Os soldados alemães, como diz a já batida, mas verdadeira frase de Benjamin (2000), voltaram mudos das trincheiras. A ideia futurista de “homem-máquina”, a exaltação do soldado como “arma-automática” e a glorificação do herói militar presentes no grande romance de Ernst Jünger Tempestades de aço, muito lido na época, contavam apenas parte da história. Os combatentes, humilhados e mutilados, encontraram, na Alemanha para a qual retornavam derrotados, mais desemprego e miséria do que glória. A ideia de um “comportamento” irrefletido, automático começa a entrar no radar da arte do período. Encontramos em George Grosz, artista ligado ao Dada, à Nova Objetividade e membro da Liga Espartaquista, uma das melhores figurações dessa crítica:
A figura do “autômato”, aquele que é expropriado de sua subjetividade e capacidade de refletir por si mesmo, que o quadro mostra muito bem, torna-se um “tipo” até após a Segunda Guerra Mundial com a figura paradigmática de Adolf Eichmann.
Conforme disse Adorno em seu Aspectos do novo radicalismo de direita (2019), algumas ideias, quando perdem seu solo histórico-social, tornam-se ainda mais perigosas. Uma das consequências da crise do heroísmo foi o surgimento do desejo de reabilitação do orgulho militar e alemão que sabemos onde foi dar. E isso não predominava apenas nas fileiras militares, mas no âmbito da esquerda. Leo Löwenthal, membro do Instituto de Pesquisa Social, concedeu uma entrevista em 1979 a respeito das pesquisas sobre o autoritarismo que a Escola de Frankfurt realizou no início da década de 1930. Nela, afirma:
Em 1930, começamos a conduzir surveys sobre o comportamento psicológico e ideológico e os modos de pensar dos trabalhadores progressistas de colarinho branco e azul na Renânia e na Westfália. […] fizemos perguntas completamente abertas: por exemplo, o que as pessoas pensavam, como elas votavam. Mas quando perguntávamos questões relacionadas à projeção psicológica – quem são as grandes figuras da história? Quem deve comandar o lar? – [encontramos] tudo o que mais tarde foi identificado com traços da personalidade autoritária… Quando recebemos os resultados – isso ocorreu provavelmente em 1931 – nossos corações vieram na boca. Pois, na superfície ideológica, esses bons social-democratas e eleitores de centro-esquerda eram todos muito liberais e republicanos. Mas no nível mais profundo, psicológico, a maioria era completamente autoritária, admiravam Bismarck, a educação rígida das crianças e [defendiam] que “o lugar da mulher era o lar”. […] Nós pensamos, meu deus, o que vai acontecer na Alemanha? Porque, se é esse o perfil psicológico dos círculos mais progressistas da sociedade alemã, nos quais, no final das contas, deveria estar centrada a resistência contra o avanço aparentemente imparável do Nacional Socialismo, então, não será possível contê-lo. (Löwenthal, 1989, p.246)
Além da crise do heroísmo, resultante da experiência da guerra, a ascensão do fascismo também trouxe o tema do encantamento das massas. As marchas organizadas por Hitler e seus apoiadores traziam consigo um elemento político novo: o caráter conservador e reacionário das massas, que até então – especialmente após a Revolução Russa –, eram consideradas apenas de maneira “positiva”, por assim dizer, no âmbito da esquerda. Isso também não passou despercebido pela arte do período. O filme “O gabinete do Dr. Caligari” (1920), de Robert Wiene, um dos marcos do expressionismo alemão, é talvez o maior exemplo disso. Dr. Caligari, um médico insano, hipnotiza um homem e o faz, sob sua influência, cometer assassinatos. Além de dialogar fortemente com as teorias psiquiátricas e psicanalistas – Charcot ficou conhecido por seus tratamentos com a hipnose no final do século XIX e Freud teorizava o “inconsciente” –, o filme serve igualmente para pensar a política; seja da guerra passada, na qual homens comuns eram obrigados a se tornar assassinos, seja da guerra futura, cujos horrores foram justificados por muitos como uma espécie de transe coletivo nacionalista. O “encantamento” também está presente em Mário e o Mágico (1930), de Thomas Mann, que aborda o fascismo italiano e a figura de Mussolini. É também na década de 1920 que Freud escreve “Psicologia das massas e análise do eu”, texto que se tornaria referência para a análise do fascismo feita pela Escola de Frankfurt. Uma das contribuições mais fundamentais desse ensaio é a demonstração de que o vínculo que une os indivíduos da massa entre si e com o líder é de natureza afetiva e tem a ver com processos que ocorrem no interior do eu; razão pela qual é tão difícil convencer, com argumentos racionais, o adepto de um líder fascista. Vale lembrar, que isso não é uma redução do fascismo à psicologia, mas uma investigação do modo como a psicologia serve de instrumento ao fascismo que, de resto, é produzido pela materialidade das relações políticas e econômicas.
Brecht não refere suas escolhas a esse ambiente de forma direta, nem a esses artistas e autores. A crítica do heroísmo em sua obra constrói-se a partir das referências aristotélica e hegeliana. O dramaturgo recusa de forma explícita o “indivíduo histórico mundial”, o grande protagonista do drama segundo Hegel (e Lukács), cujo modelo é Napoleão. Conforme destaca Ulrich Bröckling, na tradição alemã, a relação entre heroísmo e violência é central. Na Filosofia do Direito de Hegel, os indivíduos históricos mundiais aparecem como indivíduos heroicos excepcionais. Para Hegel, são esses os heróis que fundam a lei, por isso sua violência é, de certo modo, justificada. Uma vez fundadas as leis e o Estado, o heroísmo prescreve, mas apenas para retornar sob outra forma. Os heróis, na Filosofia da História de Hegel, estão ligados à questão da guerra. A coragem, em sociedades civilizadas, tem a ver, portanto, com a disposição de sacrifício em nome do Estado. Esse tipo de heroísmo está ligado ao serviço militar obrigatório – introduzido por Napoleão (Bröckling, 2020). A coragem, sob essas condições, aparece, então, como elemento impessoal. Heroísmo aqui passa a estar relacionado ao exercício do dever e à obediência. É esse tipo de heroísmo que aparecerá na obra de Jünger supracitada e que Brecht combaterá com toda força em seu teatro.
Brecht segue Marx na substituição do heroísmo individual pelo heroísmo coletivo e pela crítica ao culto à personalidade presente no heroísmo burguês. Em A vida de Galileu (1991), vamos encontrar a conhecida e polêmica frase: “pobre do povo que precisa de heróis”. A proposta de Brecht é não só incluir personagens do povo no palco, mas uma outra classe, o proletariado. De qualquer forma, para fazer isso, Brecht repensa o heroísmo. Embora Brecht tenha herdado do expressionismo um certo antipsicologismo (muito presente em suas histórias do Sr. Keuner), vale lembrar a máxima de Roberto Schwarz: “por mais que a nossa crítica literária diga o contrário, os procedimentos artísticos têm pressupostos que não são artísticos eles próprios” (1999, p.125) e o contexto socioeconômico e político acaba, sim, entrando de forma mais ou menos furtiva nas obras de arte. Brecht, escrevendo no período de ascensão e posterior vitória do fascismo, inclui como elemento interno de seu método ou estética um elemento antifascista: o culto do herói. Não se trata, pois, de inverter apenas quem é herói, burguesia ou proletariado. O retrato do povo, dos marginais e miseráveis, como podemos notar em Mahagonny e posteriormente em Mãe Coragem não é idealizado, como não é romantizada a figura do intelectual em Galileu e dos militantes grevistas em Santa Joana.
O outro traço fundamental do método Brecht é a recusa da “identificação”. Um dos pilares do teatro épico é a recusa daquilo que Aristóteles chamou de “catarse” – purgação das paixões. Para Aristóteles, em linhas gerais, a “identificação” do público com os personagens representados no palco é fundamental, para que o espectador possa ter empatia, sentir como seu o destino desse personagem. A ideia é que o despertar dos sentimentos no público pela identificação produz sentimentos importantes para a saúde. A forma dramática tradicional apela para um público que vai ao teatro para ser seduzido, encantado, impressionado, exaltado, emocionado, distraído e iludido. Ao invés disso, Brecht propõe um teatro racional, narrativo, reflexivo. Nele, nem o público, nem atores e atrizes devem se identificar de forma imediata com as personagens representadas no palco.
É preciso deter-se novamente para uma consideração. Um dos maiores instrumentos do fascismo, conforme Adorno discutiu em inúmeros textos (e transformou numa agenda de pesquisa), foi justamente a indústria cultural. Para seu funcionamento, a “identificação” é um elemento central – ela absorve, transforma e distorce aquilo que Aristóteles tinha em mente, mas de qualquer forma, transforma esse elemento num de seus principais mecanismos. A indústria cultural faz com que as pessoas possam sentir-se engrandecidas por reconhecerem-se nas estrelas de cinema, assim como o indivíduo da massa reconhece-se no “pequeno grande homem do líder”. Conforme ressaltam Adorno e Horkheimer (2006, p.129), a indústria cultural promove, assim, a “heroificação do indivíduo mediano” que antecipa o desenvolvimento do fascismo. Basta ver quantos líderes de extrema-direita saíram do show business ou são produzidos, atualmente, pelas redes sociais, para ver a validade do argumento. Até hoje a indústria cultural é populada por esse tipo de herói: nos quadrinhos, no cinema, nos esportes, nos jogos de videogame, nas redes sociais. Os filmes da Marvel, esses parques de diversão, como afirmou Scorsese, são campeões de bilheteria atualmente. E os heróis fascistas continuam sendo construídos e propagandeados segundo esses modelos.
A apresentação de Bolsonaro e de políticos próximos a ele como super-heróis é extremamente recorrente na propaganda de extrema-direita que circula nas redes, assim como a referência a um heroísmo ligado à esfera militar, seja no âmbito do exército, seja no âmbito da polícia. Há elogio da obediência, mas também uma defesa da “justiça” que se faz com as próprias mãos – como se as milícias, no Brasil, fossem uma versão das Freikorps. Trata-se de algo muito similar àquilo que foi investigado pela Escola de Frankfurt. Adorno dizia que o líder fascista era “uma mistura de barbeiro de subúrbio e King-Kong”. Hoje, Bolsonaro é o tiozão do churrasco que chora, se descabela e come pastel e o Capitão América (a figura evidencia também à sujeição ao imperialismo).
Uma das críticas de Roberto Schwarz a Brecht foi a de que seus procedimentos de estranhamento teriam sido rotinizados e estariam presentes até mesmo nas propagandas de sabão. Em parte, é fato que alguns procedimentos, como a autoironia e o cinismo (Cf. Safatle) tornaram-se dominantes na indústria cultural nas últimas décadas. Sem dúvida, a indústria cultural produz as condições para o que hoje chamamos de pós-verdade. O próprio uso da linguagem (e esta é o próprio meio da reflexão) torna-se desgastado. Frases de novelas e propagandas, memes e figurinhas do WhatsApp rapidamente penetram nosso vocabulário cotidiano. O esquematismo e a estereotipia nos fornecem a linguagem com a qual nos comunicamos, liberando-nos do esforço de constituir uma linguagem própria. Uma das técnicas da propaganda fascista – impulsionadas pela indústria cultural – é justamente produzir curtos-circuitos no pensamento e a autoironia, que é uma forma de distanciamento, (bem como a sugestão) são recursos fundamentais desse processo.
Por outro lado, como mostrou Sérgio de Carvalho, o estranhamento/distanciamento não se reduz ao movimento de “desnaturalização”. E, hoje, a extrema-direita não naturaliza, como fizeram seus antepassados neoliberais, o “primado” da economia e a inevitabilidade das crises, que agora tem responsáveis bem definidos: “O PT, “o pessoal do fica em casa que a gente vê depois”, etc. Bolsonaro assenta sua propaganda nos valores da família, da religião, da segurança e da propriedade privada (vale lembrar que o inexistente “programa” econômico de Bolsonaro em 2018 se resumia à figura de Paulo Guedes – embora saibamos muito bem qual era sua orientação econômica). Nesse contexto é não só possível, mas extremamente necessário expor, como faz Brecht, os interesses materiais subjacentes a esse discurso dos valores familiares (sobre isso cf. Cooper, 2017) e religiosos e acrescentar a isso, como tem feito algumas feministas, críticas antirracistas, entre outros, e mostrar como as pautas ligadas aos valores contém sim um elemento material (sobre isso cf. Gago, 2020).
Ademais, o boom das redes sociais e plataformas digitais aprofunda diversos dos elementos da indústria cultural tal como teorizou Adorno, especialmente no que se refere à “identificação”. Atores, atrizes, “influencers” são modelos para o comer, o vestir, o trabalhar, o divertir-se, o transar, o viver. O que são esses “influencers” senão os heróis contemporâneos? A prova de que a hipnose e o encantamento produzido pelas imagens das figuras que circulam nesses meios e por esses próprios meios continuam vigentes reside não só na ascensão da extrema-direita atual, mas na própria dificuldade de imaginar um mundo sem a indústria cultural hoje. Um dos maiores desafios políticos que enfrentamos hoje é o de nos distanciarmos, estranharmos, nos desfamiliarizarmos com essas formas. Muita gente prefere sacrificar o planeta ao sacrificar seu perfil do “Instagram”. A ideia marxista de “segunda natureza” é levada ao paroxismo: a vida nas redes, os perfis e as personalidades digitais tornam-se mais importante que a existência real das pessoas. Os seres humanos reais tornam-se cada vez mais apenas avatares de seus duplos virtuais mais bem-acabados.
Nesse contexto, o método Brecht atinge como uma lança o coração do fascismo e da indústria cultural, que é parte de sua construção. Vale lembrar que todos os procedimentos que compõem o teatro épico – estranhamento, crítica do heroísmo, gestus, narração etc. – articulam-se e não podem ser pensados separadamente. Mas podemos pensar, por exemplo, que o uso de técnicas e referências do teatro chinês, o uso do coro e das canções, a montagem, o deslocamento temporal de suas peças (que tratam de problemas do presente, mas sem a referência imediata a este) criam um estranhamento que produz as mediações por meio das quais trabalha o pensamento dialético, algo que foi eliminado pela indústria cultural contemporânea.
Brecht utilizava símbolos como trapos rasgados ou máscaras para designar a pobreza ou estados de espírito. Ele convocava seu público a interpretar o que se passava. E mais do que fazer atores, atrizes e o público sentirem a emoção da personagem interpretada, buscava sinalizar exteriormente essas emoções. Ele poderia, por exemplo, pintar o rosto de um determinado ator ou atriz de branco para sugerir a sensação de terror, mas de forma que a intencionalidade disso ficasse evidente. Nada de photoshop, construção de rostos e cidades e mundos ilusórios. Para Brecht, a representação era uma técnica que envolvia historicização e desnaturalização das ações mais cotidianas. Seu método guiava-se por reflexão, consciência, conhecimento, sem renunciar ao prazer. Prazer esse que não era entendido como a demissão do sujeito diante de um espetáculo que visa apenas a entreter o espectador e fazer com que ele ou ela esqueça da vida. Nada próximo da ideia de “derreter” após o trabalho em alguma plataforma de filmes e séries. Diversão para Brecht não era liberação do pensamento – como no caso da indústria cultural. Era coisa séria e devia se ocupar também de questões sociais, públicas, coletivas.
Nesse sentido, o estranhamento quer resguardar na arte o elemento não-idêntico que é aniquilado pela indústria cultural, seu momento reflexivo, negativo. Esse procedimento permite contestar que a autonomia estética é, como quer Adorno, a única a resguardar esse tipo de experiência. Brecht não defende que da arte se derive uma educação política direta e imediata no sentido conteudista do termo. Ao incluir o estranhamento como elemento interno à forma, Brecht responde muito bem à crise da autonomia da arte e ao domínio da indústria cultural. Isso confere a Brecht um poder de “dizer não” muito maior do que Adorno gostaria de admitir.
Esse é também um dos grandes traços de vanguarda de Brecht: ele não renunciou a, em certo sentido, criar seu público. Se ele o inclui em seu método, não é para aceitá-lo como é, mas para modificá-lo e ser por ele modificado. O efeito de estranhamento, as inúmeras técnicas que podem ser usadas para produzi-lo, a crítica do heroísmo são uma grande resposta de Brecht aos dilemas de seu e de nosso período. Quem é capaz de fazer mediações, de refletir, quem contesta o heroísmo, não é uma presa fácil para o fascismo – ao menos se seguirmos a cartilha de Adorno. O traço mais “adorniano” da estética de Brecht escapou a Adorno. E aquilo que Brecht desprezava na Escola de Frankfurt (como o uso da psicanálise e a tese das massas) também recebe em sua obra, ainda que não de forma consciente, uma resposta do ponto de vista da forma ou do método – prova de que essas questões impunham-se de forma objetiva.
Para terminar, vale lembrar que um dos elementos de prescrição da atualidade de Brecht, segundo Schwarz, era histórico: ela não se assentava mais, depois dos anos de neoliberalismo no Brasil, num movimento popular emancipador. Hoje, o país é terra arrasada e estamos mais uma vez às portas de um golpe. As redes sociais tornaram-se verdadeiras máquinas de destruição política e social. Nesse cenário, a luta cultural é central e Brecht pode não ser mais atual (se tomarmos como parâmetro o sentido acima descrito), mas nunca foi tão necessário. Que sejamos capazes de, nos próximos meses e anos, reabilitar Brecht – com Adorno. Algumas vezes na vida, precisamos de uma reconciliação extorquida. Que a vontade de derrotar do fascismo seja uma oportunidade para isso.
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Gostaria de agradecer a duas pessoas que, ao longo de minha trajetória, ajudaram-me a pensar as questões expostas nesse texto: Jorge de Almeida e Tércio Redondo. Meu fascínio pela obra de Adorno e minha admiração pela obra e atuação política de Brecht devem muito a eles.
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SZONDI, Peter. Teoria do Drama Moderno. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
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Bruna Della Torre é pesquisadora do Centro Käte Hamburger para estudos apocalípticos e pós-apocalípticos da Universidade de Heidelberg e pós-doutoranda no Departamento de Sociologia da Unicamp (bolsista Fapesp), onde estuda teoria crítica, indústria cultural e agitação fascista no Brasil. Editora executiva da revista Crítica Marxista, pesquisadora associada ao Laboratório de Estudos de Teoria e Mudança Social (Labemus) e membra da coletiva Marxismo Feminista. Realizou pós-doutorado no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, doutorado em Sociologia, ambos com apoio da Capes, e mestrado em Antropologia com apoio da Fapesp, todos na Universidade de São Paulo. Durante o doutorado, foi pesquisadora visitante na universidade Goethe, na Alemanha, com apoio do DAAD, e na universidade Duke, nos Estados Unidos, com apoio da Capes. Durante o pós-doutorado, realizou um estágio de pesquisa na universidade Humboldt e no arquivo Walter Benjamin/Theodor W. Adorno na Akademie der Künste em Berlim com apoio do DAAD. Escreve para o Blog da Boitempo mensalmente.
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